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Capítulo 2 A evolução da biopolítica

3. Vida nua, poder soberano e império

Giorgio Agamben apresenta seu projeto no primeiro volume de Homo sacer

– o poder soberano e a vida nua, apontando uma conexão entre o poder soberano

e a biopolítica, em uma extensão do trabalho de Foucault. Ele inicia seu livro com uma distinção que remete à Grécia antiga: a separação entre a vida nua (zoé), “que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos”, e a existência política (bíos), “que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo” (AGAMBEN, 2010, p. 9).

Essa relação binária entre zoé e bíos é o ponto de partida para um fundamento oculto da soberania, que remete ao direito romano: Homo sacer, segundo o qual podia-se matar impunimente, desde que se fosse banido da comunidade político-jurídica. Para Agamben, essa figura representa o outro lado da lógica da soberania, “vida nua”, que é considerada marginal e parece ser mais afastada da política, tornando-se um corpo político. Segundo Costa (2011, p. 8),

A vida nua, tal como Agamben a define, emerge como fundo de uma violência, ela é produzida ou induzida pelo poder que se exerce sobre ela, seja o poder de um soberano que pode retirar a vida, seja o poder do saber médico que coloca a vida a nu diante de si. Por isso ela é resultado de uma relação de forças, as forças que produzem uma vida na miséria, a vida de um sobrevivente, de um doente ou aquela do prisioneiro. São as forças que retiram o indivíduo de sua forma-de-vida, ao instalar um estado de exceção, que suspende seus direitos, que o coloca em vulnerabilidade.

Agamben faz um paralelo a essa força e violência da “vida nua” com o campo de concentração11, que representa um lugar que simboliza e fixa a fronteira entre a “vida nua” e a existência política ‒ os campos, não só os nazistas, mas qualquer espaço onde a “vida nua” é produzida de forma sistemática, como os campos de exceção para refugiados. Citando Hannah Arendt, Agamben relata o nexo entre domínio totalitário e a condição particular de vida, que é o campo sendo “laboratório para experimentação da dominação total” (ARENDT, 1994, p. 240 apud AGAMBEN, 2010, p. 117), um espaço onde o estado de exceção torna-se uma regra, um paradigma do Ocidente.

11 Os historiadores discutem a primeira aparição dos campos nos campos de concentraciones

criados pelos espanhóis em Cuba, em 1896, para reprimir a insurreição da população da Colônia, ou nos concentration camps nos quais os ingleses, no início do século XX, mataram os bôeres (descendentes de colonos calvinistas).

Agamben percebe um deslocamento do poder soberano para além dos limites do estado de exceção, onde, ao contrário de Foucault, a decisão sobre a vida torna-se decisão sobre a morte. O campo é “também o mais absoluto espaço biopolítico que jamais tenha sido realizado, no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer medição” (AGAMBEN 2010, p. 167); um espaço onde a política torna-se biopolítica, que opera na absoluta indiferença de fato e direito. A autoridade soberana não reconhece nada fora de si mesma, o que seria mais do que uma exceção, e a soberania, segundo Agamben, esgota-se por meio da determinação decisionista do estado de exceção e a exposição mortal da “vida nua” (AGAMBEN, 2010, p. 181-183).

Ainda na tentativa de atualizar o conceito de biopolítica, Michael Hardt e Antonio Negri relatam em seus livros Império (2001) e Multidão: Guerra e

Democracia na Era do Império (2005) que a biopolítica não representa a

sobreposição de regra e exceção, como descrito por Agamben, mas sim um novo estágio do capitalismo, caracterizado pelo desaparecimento das fronteiras entre a economia e a política, produção e reprodução (LEMKE, 2011, p. 65).

Hardt e Negri, em Império, acreditam que vivemos em uma nova ordem mundial, caracterizada pelo bloqueio das estruturas econômicas, com mudanças jurídico-políticas. “Império” significa uma nova forma de soberania e um sistema global de dominação. Uma metáfora que resgata os impérios da Antiguidade:

O conceito de império caracteriza-se fundamentalmente pela ausência de fronteiras: o poder exercido pelo Império não tem limites. Antes e acima de tudo, portanto, o conceito de Império postula um regime que efetivamente abrange a totalidade do espaço, ou que de fato governa todo o mundo “civilizado”. Nenhuma fronteira territorial confina o seu reinado. [...] O conceito de Império apresenta-se não como um regime histórico nascido da conquista, e sim como uma ordem que na realidade suspende a história e dessa forma determina, pela eternidade, o estado de coisas existentes. (HARDT; NEGRI, 2001, p. 14)

Essa nova concepção de soberania imperial é uma rede sem limites, em um novo estágio de produção capitalista. A partir dos anos 1970, segundo Hardt e Negri, ocorreu uma mudança significativa nos modos de produção e um novo engendramento de forças, constitutivas de uma nova soberania expansiva de dominação da vida. E justamente dessa percepção surge o conceito de biopolítica dos autores.

O conceito de biopolítica de Foucault é revisado por Hardt e Negri dentro de uma transição histórica de uma sociedade disciplinar para a sociedade de controle, o que é desenvolvido por Gilles Deleuze no ensaio “Post-scriptum sobre a sociedade de controle”12 (2013, p. 223-230). A sociedade disciplinar seria aquela

em que o comando é constituído mediante uma rede de dispositivos que regulam os hábitos, práticas e costumes, com mecanismos como a prisão, o asilo, a fábrica, o hospital e a escola, dentre outros. A sociedade do controle deve ser entendida como um ambiente “democrático” imanente do corpo social, que é distribuído por cérebros ‒ por meio de máquinas em sistemas de comunicação e informação ‒, e corpos ‒ por meio de sistemas de bem-estar, atividades monitoradas de saúde, etc (HARDT; NEGRI, 2001, p. 42). Caracteriza-se

Por uma intensificação e uma síntese dos aparelhos de normalização de disciplinaridade que animam internamente nossas práticas diárias e comuns, mas em contraste com a disciplina, esse controle estende bem para fora os locais estruturados de instituições sociais mediante redes flexíveis e flutuantes (HARDT; NEGRI, 2001, p. 42-43).

Nesse contexto, o biopoder se manifesta com controle das profundezas da consciência e dos corpos da população. O Império se manifesta como uma estrutura onipresente no sujeito, correlata a um novo paradigma de controle, e o biopoder se refere a uma situação em que está em jogo a produção e reprodução da vida.

Nessa nova articulação, aparece uma nova forma de pensar a biopolítica como forma emancipatória, refletindo-se sobre uma nova subjetividade que se chama multidão, uma alternativa viva para o Império. Ao longo do livro Multidão –

guerra e democracia na era do império, Hardt e Negri desenvolvem as bases

ontológicas, sociais e políticas do poder constituinte desta multidão, que seriam baseadas na biopolítica.

Os autores apresentam, então, uma distinção entre biopoder e biopolítica. O biopoder situa-se acima da sociedade, é transcendente como uma autoridade

12 Deleuze, nesse artigo publicado em Conversações (2013, p. 223-230), relata que as sociedades

disciplinares, que atingiram seu ápice no início do século XX, passam a ser sociedade de controle. Todas as formas de confinamento passam por crises, como prisão, hospital, fábrica, escola, família, e são retomadas e geridas pelo Estado para manter o controle. Controle seria um novo monstro, vital para a sobrevivência dos governos, engajados em novas formas de confinamento, como dívidas, fronteiras, monitoramento da saúde e o mercado capitalista.

soberana que impõe sua ordem. Os meios de produção do capitalismo produzem bens materiais, e a sociedade, seus chamados bens imateriais, como ideias, conhecimento e formas de comunicação. Esse tipo de produção Hardt e Negri chamam de produção biopolítica, que é imanente à sociedade, criando novas relações de trabalho. Tal produção é que dá início ao projeto da multidão (HARDT; NEGRI, 2014, p. 135). Nesse contexto,

[...] o biopoder é uma imagem do capitalismo industrial e a biopolítica uma imagem do capitalismo pós-industrial. Enquanto o biopoder articula uma reificação do social, a biopolítica [...] significa uma abertura para criatividade (MILOVIC, 2011, p. 169-170).

A produção biopolítica tem seu lado ontológico quando cria um novo ser social e reproduz a vida, produzindo, por meio da multidão, o comum. A multidão é um conjunto de singularidade difusas que produz uma vida comum; nesse tecido biopolítico, multidões se entrecruzam com multidões em milhares de intersecções e rizomas, formando “uma espécie de carne social que se organiza num novo corpo social” (HARDT, NEGRI, 2014, p. 436).

Essa carne da multidão produz o comum de uma maneira monstruosa e pode formar uma nova sociedade. Os monstros surgiram fortemente nos séculos XVII e XVIII como seres que podiam destruir a ordem. O monstro deixa de ser um acidente para tornar-se uma possibilidade de destruir o poder e refazê-lo. Em tempos de biopolítica, o efeito monstro se multiplicou, e pode alterar a ordem social de várias maneiras.

O conceito de multidão nos obriga a entrar em um novo mundo, onde nós nos entendemos como monstros, como uma dissolução dos corpos sociais tradicionais na pós-modernidade. No artigo El monstro político. Vida desnuda y

potencia (2009, p. 93-140), Negri fala sobre os monstros comunistas e sobre os

monstros biopolíticos; o monstro sendo tratado desde a Grécia Antiga como uma

metáfora da política. Em um primeiro momento, Negri destaca a genealogia

monstruosa iniciada na eugenia, e depois desvenda os monstros comunistas (NEGRI, 2009, p. 93-112) que assediam o mundo. Em um segundo momento do texto, Negri apresenta os monstros biopolíticos e suas indagações sobre o poder posto pela eugenia. Segundo Negri,

Mas o monstro, lentamente, na história do mundo, passa de "fora" para "dentro". Melhor dito: o monstro está sempre dentro, porque a sua

exclusão política não é o resultado, mas a premissa de sua inclusão produtiva. Está dentro da ambiguidade com que os instrumentos hierárquicos do biopoder se encarregaram de definir e determiná-lo: a força de trabalho no interior do capitalismo, a cidadania dentro do Estado, o escravo no âmbito da família. E isso funciona e se mantém enquanto a biopotência do monstro não quebra as ligações hierárquicas13 (2009, p. 118, tradução nossa).

O monstro biopolítico estaria, então, na insubordinação da vida (a potência da vida) contra o poder (o domínio sobre a vida) incluído na vida, sempre em luta. O monstro e a multidão podem ser associados aos primeiros híbridos e autônomos, como a criação de Victor Frankenstein, que trouxe medo e influenciou toda uma geração de escritores, cineastas e artistas sobre as consequências de se criar monstros.

Quando o monstro se ocupa da vida, Negri desconstrói o conceito de vida nua de Agamben, chamando-a de uma grande ilusão, uma fantasia ideológica que mistifica o social contemporâneo (NEGRI, 2009, p. 119; MILOVIC, 2011, p. 162):

Então o que mais pode significar "vida nua" quando o que queremos é reconhecer onde se pode apoiar os nossos corpos para lançar não só a resistência, mas também o ataque, não só a força de oposição, mas o poder de transformação. Não há vida nua na ontologia, como não há estrutura social sem ordem, ou palavra sem significado. O universal é concreto. Tudo o que nos precede no tempo, na história, apresenta-se sempre de novo como condição ontológica e, em relação ao homem, como uma figura antropológica (consistente, qualificado, irreversível). A ideologia da "vida nua" (bem como a indústria do genoma, a engenharia biogenética e as pretensões de domínio sobre as espécies) é uma mistificação que deve ser combatida14 (NEGRI, 2009, p. 120, tradução nossa).

A vida nua, para Negri, é, então, ideológica, sendo ao mesmo tempo falsa e verdadeira, pois nega a potência do ser e sua capacidade de avançar no tempo.

13 No original, “Pero el monstruo, poco a poco, en la historia del mundo, pasa de “afuera” a

“adentro”. Mejor dicho: el monstruo está desde siempre adentro, porque su exclusión política no es consecuencia, sino premisa de su inclusión productiva. Está dentro de la ambigüedad con la que los instrumentos jerárquicos del biopoder se encargaron de definirlo y de fijarlo: la fuerza de trabajo dentro del capital, la ciudadanía dentro del Estado, el esclavo dentro de la familia. Y esto funciona y se mantiene mientras la biopotencia del monstruo no rompa los nexos jerárquicos”.

14 No original, “Entonces, qué cosa puede significar “vida desnuda” cuando lo que nos interesa es

reconocer dónde se pueden apoyar nuestros cuerpos para lanzar no sólo la resistencia sino también el ataque, no sólo la fuerza de oposición sino la potencia de transformación. No hay vida desnuda en la ontología, como no hay estructura social sin orden, o palabra sin significado. El universal es concreto. Todo lo que nos precede en el tiempo, en la historia, se presenta siempre de nuevo como condición ontológica y, en lo que respecta al hombre, como figura antropológica (consistente, cualificada, irreversible). La ideología de la “vida desnuda” (así como la industria del genoma, la ingeniería biogenética y las pretensiones de dominio sobre la especie) es una mistificación que debe ser combatida”.

Por meio da vida nua, o capitalismo retoma às suas origens e produz uma transferência dos direitos dos indivíduos ao soberano, promovendo a alienação. Por fim, a vida nua deixa os humanos impotentes perante as mudanças e transformações da vida diante do monstro (NEGRI, 2009, p. 122-125).