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Capítulo 1 Artefatos e representações do ciborgue

5. A construção do próximo humano

A gênese do próximo humano certamente passa pelas discussões que se dão na metade do século XX, lideradas por Gregory Bateson, Heinz von Foester, Kurt Lewin, Claude Shannon, Norbert Wiener, entre outros, lançando bases sobre o funcionamento da mente humana, da cibernética, da teoria dos sistemas e da ciência cognitiva (SANTAELLA; FELINTO, 2012, p. 26-27). Desde que os livros sobre cibernética de Wiener e as teorias da informação de Shannon unificaram o maquínico ao ser vivente, foram jogadas luzes sobre o pensar humano como algo que pode ser reparado com a substituição de uma peça, sendo este ser, ao mesmo tempo, composto por informação.

Popularizou-se, em diversos estudos (muitos deles citados neste trabalho), os termos “pós-humano”, “pós-orgânico” e “pós-humanismo”, que podem ser associados à superação do sujeito liberal humanista e também à superação de um corpo para algo maquínico: o ciborgue. Utilizar o prefixo “pós” é de certa forma admitir a decadência ou superação de algo. É admitir que algo ficou obsoleto.

Hayles, em seu How we became posthuman (1999), defende esse argumento, colocando o humano em novas frentes do pensamento: a informação teria perdido sua corporeidade ao ser conceitualizada como uma entidade separada das formas materiais nas quais está enraizada; o ciborgue teria sido criado à maneira de um artefato tecnológico e ícone cultural; certa construção específica, chamada humano, estaria cedendo passagem para uma construção distinta, que querem chamar de pós-humano (HAYLES, 1999, p. 2):

Se foram ou não feitas intervenções no corpo, novos modelos de subjetividade emergentes de campos como a ciência cognitiva e a vida artificial implicam que mesmo um Homo sapiens biologicamente inalterado conta como pós-humano. As características definidoras envolvem a construção da subjetividade, não a presença de componentes não biológicos8 (HAYLES, 1999, p. 4, tradução nossa).

O pós-humano surge como a possibilidade de criar um novo ser, menos orgânico, potencializado pela ficção e com o avanço tecnológico de dispositivos

8 No original, “Whether or not interventions have been made on the body, new models of

subjectivity emerging from such fields as cognitive science and artificial life imply that even a biologically unaltered Homo sapiens counts as posthuman. The defining characteristics involve the construction of subjectivity, not the presence of non-biological components”.

móveis, comunidades virtuais e interferências no corpo, culminando em um ser maquínico-informático que estende o humano para além de si. Segundo Santaella (2007, p. 129),

[...] a condição pós-humana diz respeito à natureza da virtualidade, genética, vida inorgânica, ciborgues, inteligência distribuída, incorporando biologia, engenharia e sistemas de informação. Por isso mesmo, os significados mais evidentes, que são costumeiramente associados à expressão “pós-humano”, unem-se às inquietações acerca do destino biônico do corpo humano.

Esse novo ser (que muitos propõem) é tão complexo que envolve vários conhecimentos técnicos e culturais, como nanotecnologia, microbiologia, realidade virtual, vida artificial, neurofisiologia, inteligência artificial e ciência cognitiva, entre outros, mas ainda continua corpo.

Para Sibilia (2015, p. 14) “o corpo humano, em sua antiga configuração biológica, estaria se tornando obsoleto”, necessitando de um upgrade tecnológico para sobreviver na chamada sociedade da informação, aprofundando a sua fusão com a máquina. Não obstante, o pós-humano torna-se um ser digitalizado por seu DNA e Genoma, por biomodelagem rumo à otimização, possibilitando uma nova eugenia e o olhar sobre a doença como falha e prevenção de riscos.

Esse corpo em ebulição estaria marcando um novo período do humanismo, que vem sofrendo profundas mudanças pela tecnologia e que poderia tornar-se irreconhecível no futuro, tanto por meio da nanotecnologia quanto pelas redes neurais, algoritmos genéticos e vida artificial, passíveis de superarem as fragilidades e vulnerabilidades humanas.

Dentro de uma lógica de ciborgue e pós-humano, o corpo passa a receber elementos inorgânicos, que se misturam com orgânicos sem nenhuma distinção. Por meio de reações enzimáticas, a matéria inorgânica se adapta, reduzindo a possibilidade de rejeição de órgãos e viabilizado um corpo completo e reconstruído. Segundo Regis, “à luz da cibernética o corpo passa a ser um sistema que processa informações, executa programas e troca mensagens sob forma de interações bioquímicas, formando uma rede de comunicação” (REGIS, 2007, n.p.). O resultado é a criação de um pós-humano híbrido, com componentes inorgânicos, superando os limites do humano, considerado obsoleto.

O corpo será irreconhecível, mas, ao mesmo tempo, reconhecível e aceito, sem estranhezas. O que parecia uma ameaça à continuidade da vida torna-se uma solução embrenhada de nuances e novas possibilidades, que trazem bem-estar, superações e até levam o ser humano a acreditar na possibilidade de vida ininterrupta.

Seriam essas as bases para um pós-humano? Se o corpo é sempre o mais recente em transformação, não deixaríamos de ser corpo se sofrêssemos alterações? Será que estamos nos tornando pós-humanos só porque aumentamos nossa capacidade de estimular e aumentar as eficiências do corpo com artifícios protéticos? O corpo artificialmente incrementado não é menos biológico. As novas tecnologias são alterações de dentro para fora, remodelando suas capacidades; “o humano torna-se não menos biológico, mas ainda mais biológico” (ROSE, 2013, p. 27).

Os novos corpos serão menos ciborgues, como se presumia, mesmo com todo o aparato maquínico que se pretende utilizar. As novas tecnologias de edição de DNA pretendem transformar o nível orgânico e remodelar a vitalidade a partir de seu interior, transformando o humano em um ser mais biológico ainda (ROSE, 2015, p. 37). É evidente que a substituição de partes do corpo por máquinas irá continuar, inclusive dentro da proposta da robótica, na qual se substitui uma parte que não funciona, troca-se por outra e reestabelece-se a harmonia do ser.

Dentro de uma tradição darwinista de evolução, em que a trajetória dos seres biológicos é pela adaptação ao ambiente, auxiliado pela seleção natural, o corpo continua corpo porque a evolução pode não ter terminado. O corpo passa, então, por uma distensão, no sentido de esticar-se e expandir-se para abraçar esses aparatos maquínicos, num igual processo de adaptação. Os próximos humanos seriam híbridos, baseados em estruturas orgânicas, mas continuando humanos.

Essa postulação pode colocar em dúvida o corpo acabado, que passa a ser pós quando o corpo está, na verdade, em transformação. Da mesma maneira, pode-se questionar se existe, de fato, um pós-humano – se as interferências no corpo estão nos transformado em algo além do humano ou se continuamos humanos. Katz discute essa questão, identificando que “o corpo é sempre durante, não resulta de um pré-corpo onde a cultura realiza suas inscrições para singularizá-

lo. E nem tampouco se torna pós-corpo. Pré e pós indicam a existência de um modelo de corpo com forma pronta” (KATZ, 2006, p. 16).

Mas estaríamos emergindo em uma nova era? De novos corpos e pós- humanos? O ser humano, homo sapiens, é uma novidade recente diante da idade do planeta (com mais de 4 bilhões de anos): em torno de 100 mil anos. Seu corpo foi modelado dentro da evolução biológica e plasmado pelas mudanças climáticas e pela necessidade de adaptar-se. Sua capacidade cultural é bem mais recente, 38 mil anos, quando aprendeu a falar, escrever e produzir tecnologia, como a roda e utensílios para caça, instrumentos musicais, pinturas rupestres e toda sorte de artefatos que nos define hoje.

As alterações no corpo vieram, por muitos anos, por meio da evolução genética e, posteriormente, pela ação sexual para recombinação genética. Para gerar filhos mais fortes ou mais parecidos com os padrões de cada época histórica, algumas famílias escolhiam as pessoas que deveriam “cruzar”. Outras, para manter uma raça, tinham filhos entre irmãos e parentes consanguíneos, uma atitude praticada até hoje, principalmente em culturas como as da Índia, onde as relações sexuais entre parentes são realizadas para manter as castas “puras”.

Todavia, nada se compara aos experimentos genéticos das últimas décadas, sem precedentes na história. A recombinação genética, que começou com os vegetais, passou pelos animais e, realizada nos laboratórios contemporâneos, chegou ao ser humano. São técnicas que prometem revolucionar a ciência, propondo a prevenção de doenças e “correções” de certos “erros” genéticos.

Chamadas de “ferramentas genéticas”, estas implicam que é possível eliminar partes indesejadas do genoma que causam doenças e, se necessário, inserir novas sequências no lugar. É possível atuar diretamente no gene defeituoso, alterando suas características e “curando” doenças como fibrose cística, distrofia ou propensão ao diabetes ou à obesidade.

Esse percurso de bioprogramação leva a uma digitalização do corpo por meio do DNA, ao mesmo tempo em que aposenta o híbrido e pretende gerar novos corpos, modelados de acordo com os gostos e interesses de cada pessoa. Individualizando o humano, inserindo partes orgânicas e inorgânicas, como silicone e silício, surge uma metáfora do homem-máquina, que, desde o século XV, no

processo de mecanização do mundo (relógios, moinhos, autômatos, etc), desperta o interesse da ciência em saber quem somos e como podemos ser tão perfeitos quanto máquinas.

Quase duzentos anos após o nascimento do monstro do Dr. Frankenstein (1818), que inaugurou essa criação do ser maquínico, a ciência constrói corpos bem mais elaborados e precisos, sem o contorno cadavérico que propôs Mary Shelley. Para Sibilia (2015, p. 163), “nas mãos de engenheiros genéticos e de outros pesquisadores que se dedicam à reprogramação da vida, cuja precisão e assepsia parecem se inspirar na lógica digital, aquelas rudezas analógicas da era industrial estão claramente superadas”.

As criaturas produzidas pela literatura, cinema e outras artes tinham características que tentavam parecer humanas e que, com sua ambiguidade, dificultavam a diferenciação. Isso foi apontado, neste trabalho, nos filmes Blade

Runner, A.I., Matrix, O Exterminador do Futuro e O Homem Bicentenário, entre

outros, figurando seres cujas qualidades não humanas ficam menos evidentes e que até mesmo oferecem sentimentos. Nada comparado com os novos corpos que a ciência vem produzindo, deixando de lado o temor da revolta da criatura pelo criador, como o monstro de Frankenstein, e apostando na salvação da humanidade por meio da bioprogramação.

Essa bioprogramação, segundo Rose (2013, p. 23-25), começou com a própria mudança da medicina. O avanço tecnológico na manutenção da saúde criou a chamada tecnomedicina, altamente depende de equipamentos de diagnóstico e de terapia sofisticadíssimos:

Os médicos perderam o olhar diagnóstico e do cálculo terapêutico: a avaliação clínica do médico no exercício de sua profissão está confinada e limitada pelas exigências na medicina baseada em evidências e pelas exigências do uso de diagnósticos e procedimentos de prescrições médicas padronizadas, emolduradas corporativamente (ROSE, 2013, p. 25).

Essa mudança na medicina ‒ dentro de uma lógica capitalista ‒ incentiva a pesquisa e o descobrimento de novos produtos e serviços para serem “vendidos” aos laboratórios e à classe médica como solução para a precisão no diagnóstico e no tratamento, vislumbrando um presente e um futuro baseados na medicina biomolecular.

O percurso da “molecularização” é a gênese de uma nova vida. Munidos de todos os aparatos informatizados e tecnológicos, biólogos, médicos, engenheiros e matemáticos atuam juntos para modelar o sistema genético e elementos não orgânicos no aperfeiçoamento do corpo humano, que parece obsoleto. A preocupação desses cientistas não está mais nas ações para remediar os problemas do corpo, combater a anormalidade, restabelecer o funcionamento ou amenizar os efeitos das doenças, dando sobrevida ao paciente. Suas preocupações prosperam na possibilidade de recalcular o material genético, extirpar a possibilidade de doenças e quiçá produzir um humano com todos os ajustes possíveis no DNA, quer dizer, eliminar tudo que está “errado” no corpo:

Isto está ligado a uma crença de que na maioria dos casos, talvez em todo eles, se não agora, então no futuro, as pessoas que oferecem riscos, danificadas, defeituosas ou afligidas, uma vez identificadas e avaliadas, podem ser tratadas ou transformadas mediante intervenção no nível molecular. Isso não implica tanto que agora pensamos o corpo como uma máquina, mas, antes, que os seres humanos se tornem ainda mais orgânicos, ao mesmo tempo que a vitalidade do corpo se tornou cada vez mais aberta à mecanização (ROSE, 2013, p. 352).

Isso parece assustador, mas técnicas recentes propõem interferir na hélice do DNA, abrindo espaço para a inserção de um novo trecho, artificial ou não, denominado edição genômica. O procedimento abriria um terreno fértil para a exploração do capital em tratamentos de alto custo para a média da população mundial, criando uma nova era de exclusão para aqueles que não teriam acesso a essa bioprogramação.

Esses modelos computadorizados e mecanizados devem expandir-se sem limites, esbarrando no campo ético e superando-o. Seria ingênuo pensar que essas pesquisas irão parar por discussões éticas, posto que a manutenção e aperfeiçoamento da vida sempre falará mais alto dentro da lógica do capitalismo e dos ganhos que isso irá proporcionar.