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Meditando a Vida

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Academic year: 2021

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Meditando a Vida

Padma Samten

Prefácio

Introdução

I. Breve apresentação do budismo

II. Prática na vida cotidiana

III. Propósito da educação no budismo

IV. Meditação

V. Superação de crises

VI. Paz no dia-a-dia

Glossário

Conclusão

Prefácio

Do Caos ao Lama

Um ponto de partida surpreendente e uma frase ressoante – eis o desejo imediato de todo o escritor (ou pelo menos daqueles que fingem não saber que o desejo é a raiz do apego e que seus frutos mais genuínos são a infelicidade).

De todo o modo, deixando momentaneamente de lado a busca por uma abertura sentenciosa (nem que seja para diminuir o apego, o desejo e a infelicidade), concentremo-nos na procura pelo ponto de vista imprevisto. Ei-lo: um couro cabeludo, no topo da respectiva cabeça, que descansa recostada a um tronco, logo abaixo de um galho, no qual está dependurada uma ... maçã. A maçã desprende-se e cai. Está caindo, caindo e... boing – bem no alvo.

Mas então, trezentos anos e três mil quilômetros depois de Isaac Newton, a nova maçã e a velha gravidade não mais arrancam o fisico do mundo natural, nem o fazem vislumbrar, num insight e num instante, as regras que regem o mundo mecânico. O que acontece agora é a trajetória inversa – quer dizer, não a da maçã que caiu, nem a da gravidade, que continua a atraí-la a 9,8 quilômetros por segundo. A direção oposta se dá é na mente do “cientista”, que, num súbito despertar, abandona o mundo mecânico, cartesiano e lógico, para mergulhar de volta no mundo natural, no caminho natural, na “religião” natural, onde tudo se dissolve e se torna como realmente é. Vazio.

Não se trata de uma metáfora gratuita. A “parábola” acima faz algum sentido. Afinal, quando estava preso no século (nos dois sentidos da palavra) e ainda se chamava Alfredo, o lama Padma Santem gostava de árvores (ainda gosta), gostava de maçãs (ainda gosta; até deve ter plantado algumas macieiras na Serra gaúcha), gostava de descansar, meditabundo, com a cabeca recostada a um tronco e, acima de tudo, ...era físico. Vivia no mundo do cálculo infinitesimal, conhecia a mecânica das águas e

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a mecânica dos sólidos, e isso no tempo em que eles aparentemente ainda não se desmanchavam no ar. Era um fiel discípulo de Aristóteles. Um “filósofo da natureza”, por assim dizer (que, aliás, é o que “físico” significa...).

Então, Alfredo viu a uva e provou a maçã. E, no entanto, talvez tenha sido justamente ela, a maçã de Newton, a responsável pela nossa expulsão do “paraíso” budista. Conforme o inglês Richard Gard, autor de um belo texto introdutório ao budismo, se a mentalidade européia e a asiática se distanciaram tanto uma da outra, deve-se incriminar muito mais o espírito científico da Renascença do que o dualismo cristão homem-Deus. Afinal, como é que os ocidentais podiam tratar como ilusão e inexistência o mundo da experiência sensível se as chaves fornecidas por Bacon, Bruno, da Vinci, Kepler e Galileu – coroadas pela chave-mestra de Newton – abriram tantas portas e permitiram sucessos tão retumbantes e tão, digamos, palpáveis?

Você ainda não sabia em quem jogar a culpa? Pois aí está: jogue-a nos físicos.

Mas Alfredo Aveline, por esses azares da sorte, deu de nascer noutra época – “a melhor das épocas e a pior das épocas”, segundo Dickens. Assim sendo, a busca inicial por um ponto de partida inesperado talvez tenha nos conduzido a uma paisagem (ou paisagens: tanto a “física” quanto a mental) inapropriada. Suponhamos, por exemplo, que, ao invés de visualizá-lo como um Newton de bombachas sendo desperto pela queda de uma maçã sem agrotóxicos plantada em uma comunidade meio hippie da Serra gaúcha, tivéssemos imaginado nosso físico-que-vai-virar-lama na pele de Fritjof Capra, sentado – estático, quase extático – em frente às águas translúcidas de uma baía recôndita, numa praia de areias faiscantes, vendo uma chuva de estrelas cadentes e, com uma pequena ajuda de generosas doses de substâncias obtidas a partir de “plantas de poder”, conseguindo vislumbrar, naquele espetáculo cósmico, o desvendamento de todos os mistérios da Dança de Shiva. A Verdade em cada folha tremeluzente e em cada grão de areia. Bilhões de universos sumindo e ressurgindo em cada onda que se esvanece. O monte Meru vestindo um chapéu de nuvens. O casamento do céu e do inferno, da religião com a ciência – tese, antítese e síntese reluzindo num átimo, num átomo. Que ótimo: a mente mais cheia que nunca de Vazio.

Bem, é provável que estivéssemos então nos aproximando mais da trilha biográfica que devemos seguir desde o caos até o lama. Aveline, afinal, mais do que um “sir”, como Newton, era um físico quântico, como Capra. Dessa forma, seus paradigmas científicos já não possuíam aquela solidez tão rígida quanto vulnerável: assemelhavam-se mais aos alicerces de prédios japoneses erguidos em zonas de terremoto – preparados para o abalo. O imaginário lisérgico – sólidos céus de marmelada hospedando improváveis sóis azuis – tão pouco era um elemento estranho à sua paisagem mental. Incenso, I Ching, hinduísmo, plantas de poder, praias secretas de Santa Catarina, chapéus de nuvens e chapéus de cobra – o futuro lama estava preparando seu próprio salto quântico. Conhecia os tais Capra e Castañeda e a tal da Física. Sua vida, como a de todos nós daquele bando disperso, era meio Ying, Yang, Jung, etc e Tao.

Nesse sentido, Padma Samten estava – como talvez sempre tenha estado – afinado com o seu tempo. Ele ia reproduzindo, no privado, a trajetória que tornara o budismo um fenômeno “público” no Ocidente. Sim, porque, antes da figueira bodhi, dos templos e pagodes às margens do Ganges ou à sombra do Fuji, antes dos jardins zen e das encostas nevadas do Himalaia, antes da estátua luminescente de Padmasambhava ou das fotos do Potala radioso como um pote ao final do arco-íris, as primeiras imagens que os ocidentais viram do budismo surgiram na Califórnia beat e proto-hippie. O doutor D.T. Suzuki desembarcando em San Francisco com a roupa do corpo e o poder da mente. Pôsteres de monges ardendo em chamas no Vietnã.

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Mestres tibetanos cruzando o Pacífico para lançar as bases de um império atlântico. De repente, tudo Zen: Timothy Leary lendo o Bardo Thodol sob efeito de LSD, Allen Ginsberg recitando sutras e tentando levitar o Pentágono, Allan Watts revelando a um mundo multicolorido o poder da flor e O Significado da Felicidade, Gary Snyder descobrindo, “numa bela tarde”, que ele “e o excelso ganso” eram “apenas Um”. Todo mundo comendo arroz integral. Ok, as misses liam O Pequeno Príncipe –, mas os hippies liam Sidharta, de Herman Hesse.

Estranho pensar como, de certa forma, a triha sonora mais apropriada (no sentido histórico) para esse movimento talvez seja o som das botas militares chinesas marchando sobre Lhasa. O mundo é que nem aquela marca de cerveja: desce redondo. O budismo nasce na Índia, cruza os Himalaias, chega ao Tibete, se espraia até o Japão. Japoneses cruzam o Pacífico trazendo o Zen para a Califórnia, o limite mais ocidental do Ocidente. A China invade o Tibete, e os monges tibetanos seguem a trilha dos monges japoneses auto-exilados. A Califórnia os acolhe.

Mas, como aprendizes de meditação, estamos perdendo o foco em meio ao turbilhão de imagens. Tratemos de reencontrar Alfredo Aveline. Sim, lá está ele, fundando, junto com um bando de gente que, olhando assim de longe parecem hippies, uma cooperativa para a produção e distribuição de alimentos ecológicos, estabelecida, não por acaso, ao lado de uma sociedade de proteção ao meio-ambiente, a qual ele também esteve sempre ligado. Agora podemos vê-lo comprando uma terra na Serra gaúcha, outra vez em grupo. Se um destino glorioso não estivesse reservado para aquele lugar, seus primeiros habitantes europeus não o teriam batizado de Rodeio Bonito, não é mesmo?

Aveline vai virando um desobediente civil. Um Thoreau sem lago, mas menos ranzinza também. É evidente que em breve o veremos em zazen, comendo só arroz, meditando em salas nuas, sorvendo chá que não leva cogumelos – leva mais longe. A maçã começou a despregar-se do galho. Já está em queda livre, pronta para arrastar consigo o mundo da Física. Então, o Vazio se instala onde antes havia uma biblioteca de Babel. Como Newton, quando viu a luz branca dispersar-se em fachos luminosos de todas as cores após passar pelo prisma, Aveline viu – outra vez na direção inversa – toda uma sabedoria e uma vivência multicoloridas tornarem-se, subitamente, brancas. É isso: deu-lhe um branco. O branco total radiante.

O Zen levou-o assim tão longe. Mas não era o bastante. Afinal, ele nunca foi um sujeito assim tão zen, sabe? Nos anos 60, ele não ia ficar só naquele de “se senta, se senta”. Certo, a piadinha é infame, mas foi contada com um propósito nobre: para revelar que Aveline percebeu que a solidão e o recolhimento típicos do Zen não eram – pelo menos não para ele – o veículo mais apropriado para levar benefícios para todos os seres. O Zen adquiria, talvez, um aspecto excessivamente individualista. O budismo tibetano reluzia, por outro lado, como um portal de Internet instantaneamente acessível, um Napster espiritual, por assim dizer: o download é gratuito. Você jamais arrancaria essas afirmações do lama – nem desse sobre o qual estamos falando, nem de nenhum outro. Afinal, se nada existe e nada importa, como alguma coisa pode ser melhor do que a outra?

De todo modo, com certeza foi melhor para nós – aqueles que o ouvem – que o lama Padma Samten tenha feito a transição do Zen para o budismo tibetano. Porque agora ele está lá em Viamão, nos arredores de Porto Alegre, entre figueiras solenes e seres silentes (e sencientes), dando ensinamentos, gerando benefícios, acumulando méritos. O lugar, como o Rodeio Bonito – que agora abriga Chagdud Tulku Rinpoche, que se materializou em Três Coroas por influência das Três Jóias, do cosmos e do lama Samten –, também tem um nome aproriadamente transcendente: Caminho do Meio. As ressonâncias são múltiplas: não apenas uma das vias do budismo é o

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Caminho do Meio, como, em seus ensinamentos, transcritos nesse livro, o lama Padma Samtem obtém a preciosa alquimia do meio-termo. Ele consegue estabelecer uma ponte entre incompreensibilidade e mediocridade, no sentido mais luminoso dessa palavra em geral tão mal empregada.

É isso: o lama nos revela um budismo tibetano pret-à-porter. Um budismo para a vida cotidiana, para uso diário, sem contra-indicações. Não um budismo alta-costura para momentos especiais, mas um budismo que nos dá o pão espiritual nosso da cada dia, o trivial variado. Um budismo plenamente medíocre, para seres medíocres como nós. Tudo bem se os Engenheiros do Hawaii já disseram que o Papa é pop – o lama Padma Samten com certeza também é. Seus exemplos prosaicos, luminosos, sua “devoção” ao “mestre” Charles Bronson, suas tiradas, suas piadas, seus “potes defeituosos” – tudo é muito claro, muito palpável.

Se Stephen Hawkins conseguiu elucidar para os não-iniciados os mistérios do tempo, se Fritjof Capra desvendou para nós a física quântica, se Stephen Jay Gould compartilhou conosco as complexidades da evolução biológica –, e todos o fizeram com clareza irreparável –, acabou-se o tempo dos livros impenetráveis. Quando você ler alguma coisa e não entender, não duvide mais: a culpa não é sua – é do autor. Leia Meditando a Vida e perceba como o lama Padma Samten se junta àqueles que vieram ao mundo sabendo que quem não se comunica, se trumbica.

Estava pensando em terminar esta apresentação, já longa demais, com alguma imagem futebolística – já que o lama, tão moderno e tão bacana, adora o velho esporte bretão. Cheguei a imaginar algo que me desse o gancho para descrever a torcida gritando: “Ucho, ucho, ucho, o lama é gaúcho.” Mas concluí que estava incumbido de uma missão superior: a de revelar ao mundo, a plenos pulmões que: “Ista, ista, ista, o lama (além de tudo) é gremista!” Provavelmente, o único lama do mundo que consegue explicar o sentido da vida descrevendo um gol do Grêmio – num Gre-Nal, é claro.

Eduardo Bueno

Introdução

As práticas espirituais só adquirem sentido na vida cotidiana. A relação com nossos pais, esposa, marido, filhos, colegas de trabalho e demais seres em todos os planos da existência, material e sutil, é o verdadeiro termômetro da prática. Um sinal de que há algo errado é nos considerarmos espiritualizados, praticantes disciplinados e zelosos e, ainda assim, sermos tomados por desinteresse e falta de compaixão em relação aos seres que nos rodeiam.

No sentido último, o isolamento e a prática formal são artificialidades – só se justificam por eventualmente proporcionarem a remoção de obstáculos. São remédios, têm princípios ativos e, por isto, têm também efeitos colaterais. Quanto antes nos livrarmos dos remédios e atingirmos nossa condição natural de saúde, tanto melhor. Todas as construções espirituais, ainda que meritórias, são esponja, água e sabão; ou seja, dispensáveis ao final da limpeza.

Na primeira das seis partes de "Meditando a Vida", vamos examinar as várias formas de introdução aos ensinamentos do Buda. Trata-se de uma abordagem geral, apontando os aspectos sutis contidos nas diferentes maneiras de apresentar o pensamento budista.

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Em algumas introduções ao budismo a ênfase é colocada em duka, ou seja, no sofrimento, e também no que dispomos de positivo para superar duka – as capacidades latentes de nossa vida humana preciosa. Outras vezes, o foco está no exemplo do Buda. Pode-se também compreender o budismo examinando diretamente o que o Buda ensinou, ou seja, as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho Óctuplo. Outros mestres introduzem os ensinamentos através de instruções sobre meditação e prática formal; há os que fazem a abordagem através da natureza de bondade, amor e compaixão naturalmente presentes em nosso coração, explicando a transcendência e como isso espelha a essência de Buda.

Há ainda o método Vajraiana, no qual o foco da meditação é dirigido às deidades que manifestam as qualidades da natureza de Buda, inseparáveis de nossa natureza – os Yidams. Outros grandes mestres desenvolveram a habilidade de apresentar o budismo como o reconhecimento direto da natureza ilimitada presente em todas as manifestações.

Na segunda parte aprofundamos a experiência de nosso cotidiano. "Todos os seres desejam ser felizes e evitar os sofrimentos", diz Sua Santidade, o XIV Dalai Lama; se tomarmos esta motivação como referencial, teremos um instrumento seguro para avaliar nossas ações cotidianas. Reconhecendo com profundidade e sabedoria o que de fato estamos fazendo e a forma de ação que estamos usando, poderemos nos direcionar para agir como geradores de equilíbrio e felicidade. O tema desta segunda parte é a maneira como os ensinamentos budistas proporcionam aprendizado incessante a partir da vida cotidiana.

A terceira parte de “Meditando a Vida” é dedicada ao processo de educação à luz do Darma. O processo da educação em nossa cultura apresenta um paradoxo. Quando a educação tradicional se estabelece em nossa mente, surgem estruturas cognitivas que nos permitem raciocinar e reconhecer de forma correta a realidade circundante. Estas estruturas, entretanto, não são totalmente abrangentes; ao se estabelecerem, criam um processo automático de construção da experiência de realidade, deixando-nos aprisionados em suas opções.

A estreiteza das opções só é percebida quando as estruturas cognitivas não mais proporcionam resultados satisfatórios, ou seja, quando a impermanência desaba sobre o conhecimento que antes parecia seguro e permanente – como acontece quando teorias científicas e paradigmas envelhecem. Vemos aqui que o problema não está num determinado tipo de estrutura, mas no fato de que o conhecimento baseado em quaisquer estruturas separativas é naturalmente frágil e precisa manter claro o reconhecimento do limite de suas verdades.

O processo automático, involuntário e, em geral, completamente oculto de atribuição de sentido estabelece uma sutil forma de prisão. No budismo, educar é libertar. Libertar das estruturas que conduzem nossa forma de manifestar a experiência de realidade e que criam nossos impulsos de ação sem nos consultar e sem nos avisar. A quarta parte de "Meditando a Vida" apresenta de forma breve e direta as várias etapas do caminho da meditação. A meditação não consiste de um único tipo de prática, existem diferentes formas de meditar. O conjunto de práticas constitui um caminho com várias etapas. Cada estágio leva a um processo mais sutil que o anterior. O objetivo é o refúgio final e perfeito na natureza de Buda.

A quinta parte de “Meditando a Vida” explica como lidar com as crises e conflitos. Todos os ensinamentos budistas tratam da superação de obstáculos e crises através da percepção da liberdade da mente. As crises fazem parte do mundo dual, elas se manifestam nas identidades separativas criadas por nós mesmos. Criamos identidades e estabelecemos pontos que não queremos que se alterem nunca. A crise

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acontece quando a impermanência atinge um destes aspectos rígidos.

O budismo considera as crises benéficas por permitirem que nos flexibilizemos, que aumentemos nossa percepção de liberdade. Quanto maior a liberdade, menor a quantidade e intensidade das crises. Quando se atinge a liberação, as crises cessam, porque a natureza absoluta não entra em crise.

Na sexta parte analisa-se a paz no cotidiano. A paz faz parte de nossa essência, é o nosso estado natural. Perdemos a paz quando criamos identidades, quando nos fixamos em referenciais, estabelecendo coisas que não queremos que mudem. Cada vez que a impermanência se manifesta nestas fixações, nossa paz transitória é abalada. A verdadeira paz só é obtida com a iluminação; mas, antes disso, é possível experimentar momentos de paz. Para isso, é necessário cultivar a flexibilidade, trabalhar contra as fixações.

“Meditando a Vida” é uma compilação de palestras. O trabalho de organização, gravação, transcrição, revisão e edição do texto foi realizado generosamente por muitas pessoas de diferentes cidades, todas com o coração compassivo dos bodisatvas e brilho no olhar. Gostaria de agradecer especialmente a Nelson Padma Yeshe, Angelita Padma Palmo, Eduardo Padma Dorje, Eliane Padma Prajna, Bruno D’Avanzo e Sueli, Gustavo Guerra, Fabiane Padma Iatsen, Maria Bernadete Brandão e Mara Rejane Russel. A edição final do livro é de Lúcia Brito, com sugestões de Eduardo “Peninha” Bueno.

A motivação para a transformação destas palestras em textos foi a percepção de que o cotidiano traz incessantes e maravilhosas oportunidades para praticarmos lucidez e profundidade. Entretanto, para que isto aconteça, é necessário observarmos alguns pontos através dos quais nossa visão e ação passam a incorporar a sabedoria budista de trazer benefícios a todos os seres. Apresentamos o caminho que consiste em parar, serenar o corpo, a fala e a mente e desenvolver lucidez progressiva sobre nossa natureza e sobre a natureza de todas nossas experiências. No início nossas experiências são vistas como internas ou externas, no fim do caminho elas são reconhecidas de modo incessante como manifestações do brilho e silêncio da unidade primordial.

Prostro-me diante dos mestres que, inseparáveis da natureza do silêncio, refugiados no reconhecimento do brilho e liberdade primordial, vivem a inseparatividade compassiva, manifestando a inesgotável energia de ação que brota da motivação de trazer beneficio a todos os seres. Sua natureza é tão ampla que nenhum ser deixa de ser alcançado. Esta natureza ampla é a natureza ilimitada de Buda, além de espaço e tempo, além de vida e morte, além de forma, reconhecimento e nome. Prostro-me diante de todos os mestres vivos que, em carne e ossos, manifestam milagrosamente a natureza incessante de todos os Budas.

Lembrando a experiência cíclica de sofrimento pela qual os seres passam quando perdem o reconhecimento de sua natureza original, volto a mente e o coração a todos os Budas que trabalharam incessantemente e seguem produzindo benefícios incomensuráveis, ilimitados e incessantes, e refaço o voto de trabalhar para que o caminho do nobre sentar silencioso possa seguir produzindo o fruto direto da lucidez ilimitada, mesmo em tempos de degenerescência. Que os seres possam, da forma mais rápida, reconhecer-se na experiência original que nunca perderam – pois esta não tem início, nem tempo, nem fim – e, assim, libertar-se da experiência onírica de existir em uma roda da vida, imersos na impermanência.

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Caminho do Meio, Viamão, fevereiro de 2001

I. Breve apresentação do budismo

O Buda da Compaixão é algumas vezes apresentado com mil braços. Estes braços representam suas qualidades ilimitadas para socorrer os seres. Sua motivação de trazer benefícios é tamanha que ele desenvolveu a capacidade de utilizar os múltiplos aspectos da experiência convencional limitada como portas para a experiência final do reconhecimento da natureza ilimitada.

Segundo a cosmologia budista, estamos vivendo uma era afortunada, na qual mil budas surgirão em seqüência. Em contraste aos tempos afortunados, há longas eras de escuridão, nas quais nenhum ser consegue ultrapassar a névoa da ilusão e do sofrimento.

Dentro de nossa era afortunada, estamos vivendo os tempos do Buda Sakiamuni. Estes tempos estão caracterizados pelo fato de que os ensinamentos de como ultrapassar o véu de ilusão que se apresenta diante de nossos olhos estão presentes e preservados desde o período histórico da manifestação do Buda na Índia.

Numa era anterior à nossa, havia um praticante chamado Sumeda. Certa vez, correu a notícia de que o Buda daquela época, chamado Dipancara, em breve passaria pela aldeia de Sumeda. Todos se colocaram em atividade para arrumar as estradas e embelezar os locais por onde o Buda passaria. Mas não houve tempo. Enquanto eles trabalhavam, o Buda chegou a pé, com sua comitiva. Sumeda percebeu que o Buda teria que cruzar por um trecho enlameado da estrada e colocou seu manto sobre a lama.

Quando o Buda passou diante de Sumeda, parou e olhou para ele. Neste momento, Sumeda percebeu a bondade e a capacidade ilimitadas de produzir benefícios aos seres que Dipancara emanava. Silenciosamente, Sumeda fez para si mesmo o voto de praticar incessantemente a bondade, de modo a manifestar as qualidades do Buda no futuro. Dipancara, percebendo o voto de Sumeda, reconheceu-o como bodisatva e disse que, numa vida futura, ele atingiria a condição de Buda com o nome de Sakiamuni.

Sumeda manifestou-se vida após vida como um bodisatva, praticando compaixão, bondade, generosidade e humildade. Muitas vezes ofereceu sua vida e seu corpo para benefício e alimento de outros seres. Na última vida como bodisatva, manifestou-se no mundo dos deuses da felicidade. Com sua visão abrangente, estes deuses perceberam o sofrimento dos seres humanos, presos à impermanência, insatisfatoriedade, doença, decrepitude e morte. Então cantaram ao bodisatva, pedindo que fosse ao mundo dos humanos para socorrê-los em suas aflições.

O bodisatva concordou e disse que completaria a profecia de Dipancara, tornando-se o Buda Sakiamuni. Nesta ocasião, voltou-se para o bodisatva Maitrea e disse-lhe que, quando os ensinamentos que ele desse no reino humano desaparecessem, seria a vez de Maitrea manifestar-se como Buda. A seguir, o bodisatva desceu do céu dos deuses mundanos por uma escada luminosa, acompanhado de uma comitiva.

Neste momento, no reino dos Sakias, na Índia, a rainha Maya teve um sonho, no qual um elefante branco penetrava em seu ventre pelo lado direito. Ela acordou o marido, o rei Sudodana, e lhe disse: “Estou grávida.” O príncipe Sidarta nasceu apresentando sinais extraordinários. Viveu nos palácios reais em grande felicidade, até o momento em que, defrontando-se com as evidências de doença, decrepitude e morte, o voto

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feito perante Dipancara amadureceu, produzindo no príncipe o impulso de se dedicar à vida espiritual. Assim, foi viver na floresta.

Após um período de vida ascética, Sidarta libertou-se completamente de todos os padrões automáticos que produzem as experiências convencionais de realidade, extinguindo o sofrimento e atingindo a onisciência – a condição idêntica de todos os Budas do passado e do futuro. Enquanto meditava sob a figueira sagrada, desafiando Mara, o senhor da ilusão, Sidarta enfrentou e superou muitos desafios. No último encontro com Mara, este disse a Sidarta que a condição de liberdade que ele havia atingido só ele poderia conquistar, que ele guardasse aquele conhecimento para si, pois ninguém mais entenderia. Compreendendo que todos os seres têm a natureza ilimitada, Sidarta colocou-se de pé para levar sua experiência de liberação a todos os seres. Tornou-se então o Gautama (o Abençoado), o Buda Sakiamuni (o sábio silencioso da família dos Sakias).

A partir dali, o Buda Sakiamuni dedicou-se a socorrer os seres incessantemente. Até o fim da vida, aos 80 anos, proferiu 84 mil ensinamentos. Ao longo dos 25 séculos que nos separam daquela época, a transmissão de sua experiência foi preservada, praticada e ensinada de forma ininterrupta, geração após geração. Adaptando-se às diferentes mentalidades dos seres, os ensinamentos do Buda foram apresentados de forma variada. A seguir, alguns destes enfoques.

Remédio para duka

O budismo pode ser apresentado como um remédio para tratar a perda do reconhecimento de nossa natureza ilimitada. Seu efeito é nos curar da experiência de existência limitada, com etapas de nascimento, crescimento, envelhecimento, doença e morte.

Quando o Buda era um príncipe, percebeu que todos os seres sofriam de uma mesma doença. No Oriente esta doença tem um nome específico – duka –, mas não existe termo correspondente nas línguas do Ocidente. Embora todos tenhamos a doença, podemos não perceber. Trata-se de algo como alegria e sofrimento inseparáveis. Na visão budista existe uma única palavra para estes dois conceitos, eles não podem ser separados. Em nossas línguas acontece o contrário, os conceitos estão separados e não podem ser unificados em um único termo.

Duka pode ser explicado de forma simples a partir do fato de que, quando temos alegrias, elas constituem-se sementes de sofrimento. Esta é uma experiência cíclica – é como uma roda girando entre as polaridades de estar bem e estar mal. Gostaríamos de encontrar o freio quando estamos na região de felicidade, e gostaríamos de acelerar quando estamos infelizes. Às vezes achamos que encontramos um regulador de velocidade, mas logo surgem problemas nessa tentativa de controle.

Um exemplo é o da mulher que deseja ter um filho. Quando o bebê nasce, ela pensa: "Que maravilha!" Depois ela percebe que tudo que acontece ao filho a perturba intensamente. O sofrimento surge na exata medida daquela alegria. É assim em todas as relações humanas.

Outro exemplo: uma pessoa vê um ser maravilhoso, fantástico, inacreditável. Ela pede aos deuses: "Por favor, deixem-me chegar perto daquele ser maravilhoso." Se os deuses estão de bom humor, podem até conceder alguma interação… E logo a pessoa se descobre vigiando aquele ser, absolutamente insegura em relação à sua tênue conexão com ele. O mais curioso é que a intensidade da vigilância, a intensidade do sofrimento causado pela vigilância e a intensidade da insegurança quanto aos rumos da relação correspondem exatamente à atração exercida por aquele ser. Ou seja,

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quanto maior a atração, maior a vigilância, o sofrimento e a insegurança.

Chamamos isto de duka. Não há como evitar esta inquietação. Para cada característica favorável que percebemos no mundo, existe um problema correspondente, exatamente no mesmo grau.

Outro exemplo: olhamos para uma caixa de doces deliciosos e pensamos: "Que delícia!" Podemos contemplar os doces e examinar cuidadosamente nossos apegos, ver como surgem as reações condicionadas. Tiramos a tampa da caixa, e surgem energias nítidas dentro do nosso corpo; tapamos, e as energias se vão. É um exercício interessante.

Cada pequeno objeto, cada pedrinha na paisagem, tem uma correspondência interna em nós na forma de energias que percorrem nosso corpo e nervos. A isto chamamos ventos internos. Nosso apego não é às coisas, mas aos ventos internos que elas provocam. Os ventos internos são a experiência íntima dos objetos e também dos seres. Esta dependência e apego são a base de duka.

Os problemas ecológicos são exemplos de duka. Não desejamos destruir a natureza. Queremos apenas meios de transporte, adubos, plásticos, papel, refrigeradores... Mas isso gera problemas. Cada uma das ações humanas tem um objetivo, mas cada uma delas tem um resultado também. Isso é resumido por duka.

No sentido geral, cada um dos seres sente duka em seu corpo. Cada um nasce, envelhece, adoece e morre. No sentido budista, quando a morte vem, não é o fim. Dentro do círculo representado pela palavra duka, há uma semente de intenção que perdura, o que morre é um personagem. É como um filme que acaba no cinema; outras imagens vão surgir na tela após a projeção do filme. Se há um cinema, outro filme sempre entra em cartaz.

Temos um processo infindável de vida, nascimento, decrepitude, morte, vida. Não precisamos acreditar no renascimento. Pode-se ficar em uma morte apenas, mas ainda assim não conseguimos frear a doença de duka.

Todos os aspectos do budismo são propostos como remédios para esta doença. É por causa dela que surgiu o budismo. Observando de forma ampla o sentido de duka, percebemos que o Buda estudou a doença detalhadamente e descobriu uma natureza que está além de toda esta complicação.

Podemos ter uma noção disto da seguinte forma: reconhecemos que fomos bebês, criancinhas, crianças maiores, adolescentes, adultos – e em cada etapa é como se houvesse toda uma visão de mundo correspondente. Temos uma identidade, olhamos com estranheza as vidas que os outros levam. Do nosso ponto de vista, nunca entendemos completamente o que os outros fazem.

Lembro de minha adolescência; eu olhava para as outras pessoas e achava suas vidas muito estranhas, não conseguia entender por que as pessoas se portavam daquela forma. Via crianças sendo maltratadas e tinha uma sensação de grande vantagem por ter minha própria mãe. Quando estamos imersos em nossa forma de ver as coisas, só podemos ver de forma estranha o modo de vida dos outros.

Então percebemos que nossas visões anteriores eram visões particulares. Ao examinarmos as várias fases de nossa vida, percebemos que as várias visões são perfeitas enquanto acontecem, mas não são de forma alguma estáveis, permanentes. Quando elas mudam, pode surgir uma pergunta: "O que permaneceu ao deixarmos de ser crianças e nos tornarmos adultos?" O que permanece é um misterioso brilho interno. O Buda usou o exemplo da criança, do adolescente e do adulto. Ele apontou esta essência que vai transitando de um para outro, esta capacidade de discriminar, como a qualidade que está mais próxima do permanente.

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Se quisermos ver o que é budismo de fato, a partir deste processo, não devemos pensar em épocas, pois a experiência de duka não está limitada pelo tempo. O Buda histórico, Buda Sakiamuni, não foi o primeiro Buda. Conforme seu relato, ele serviu a incontáveis Budas no passado e deles ouviu instruções.

Ao aprofundarmos o significado da palavra Buda, percebemos que os primeiros Budas surgiram quando as complicações surgiram. O budismo não é messiânico, o Buda não veio anunciar coisa alguma, ele veio manifestar uma liberdade que a maior parte dos seres não vê. O budismo surge à medida que os Budas periodicamente aparecem e dão ensinamentos.

Algumas vezes as pessoas questionam os ensinamentos espirituais da seguinte forma: "Quem foi o fundador do budismo? Quando e onde surgiu o budismo? O budismo acredita em reencarnação? Que tipo de preceitos morais são praticados pelo budista? Qual a diferença entre tal e tal escolas budistas?" Esta análise do budismo em forma de questionário talvez não ajude muito.

Para o cristianismo existe o Antigo Testamento e a tábua de Moisés, que ele recebeu de Deus no topo do Monte Sinai. Os ensinamentos cristãos surgem quando Deus se apresenta a Moisés e revela a verdade. Esta verdade é vista como eterna, imutável e exprimível em palavras. O cristianismo depende da Bíblia, ela expressas a verdade para o cristão.

No budismo não existe uma bíblia. Os ensinamentos visam a remover o sofrimento originado por duka; quando isso acontece, quando o sofrimento gerado por duka realmente cessa, atinge-se uma situação além de espaço e de tempo, de escrituras e profetas. Atinge-se a liberação da existência cíclica. E o que fazemos quando estamos liberados? A primeira coisa é abandonar o remédio que nos curou – os ensinamentos. O budismo se extingue com seu efeito. Quando a liberação acontece, o budismo some completamente.

Existem várias imagens para descrever este processo. A imagem do barco, por exemplo. Existe o rio do sofrimento, a margem do sofrimento e o barco da liberação, que leva à margem da liberação. Tudo o que fazemos é atravessar o rio e abandonar o barco. Não teria sentido ficar no barco. Quando chegamos ao destino, saímos do barco. O que fazemos numa viagem de ônibus? Será que pensamos em ser fiéis ao ônibus? Não. Ao final da viagem abandonamos o ônibus.

Quando a pessoa se vincula aos ensinamentos budistas, não está se filiando a uma experiência sectária. Está apenas em busca da liberação da existência cíclica – o Buda é somente um guia. Sua função é ajudar as pessoas a percorrer o caminho até a liberação do sofrimento de duka. O Buda completou o trajeto. Depois, durante mais de quarenta anos, ensinou como cruzar para a outra margem.

Durante a vida do Buda, as pessoas guardavam de memória o que ele falava. Quando Buda desapareceu, elas registraram em papel. E surgiu uma vasta obra escrita baseada nos ensinamentos orais do Buda. Muitos seguidores escreveram muitos livros, sempre lembrando que "a sabedoria não está nos livros". Estudamos os textos minuciosamente e sabemos de cor que "a sabedoria não está nas palavras".

Agora os ensinamentos chegaram à língua portuguesa. Traduzimos do tibetano, chinês, japonês, sânscrito ou páli, para o português. Parece contraditório traduzir textos sabendo que a sabedoria não está lá. É que, ainda que não esteja, os textos podem umedecer as sementes de sabedoria que temos naturalmente. Esta é a sua função.

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Outra apresentação do budismo pode ser de forma positiva. Em vez de começar com o sofrimento de duka, explicamos o budismo através da palavra buda. O que é buda? A natureza completamente liberta dos hábitos, dos condicionamentos grosseiros e sutis. Como sabemos que somos presas de tais comportamentos? Basta olharmos para uma caixa de doces. Pensamos: "Muita gordura, muito açúcar, isso não faz bem." Mas, ainda assim, percebemos que os doces seguem nos atraindo, independentemente de nossas convicções e tratados médicos a respeito, ou de sabermos por experiência própria que doces nos deixam enjoados após comermos alguns a mais.

Cada vez que decidimos não mais fazer alguma coisa, dizer não a algo, existe uma região – onde surgem os impulsos – que parece não ser afetada pelas decisões. Podemos dizer não ao cigarro, ao álcool, ao videogame, mas estas coisas seguem nos atraindo. Podemos dizer não à inveja, ao desejo/apego, ao cansaço, à ganância, à raiva ou ao orgulho. Mas parece que tudo continua funcionando da mesma forma, apesar de nossa decisão.

Algumas vezes brinco que Charles Bronson é meu mestre. Faço o teste, lembrando: "Lamas não podem matar"; daí ponho a fita no vídeo, coloco uma estatuazinha do Buda sobre a TV e fico rezando durante o filme, mas dez minutos depois surge o impulso: "Mata, mata logo, vai!" Por isto Charles Bronson é um mestre, ele aponta a violência oculta, mas presente. Aponta a fragilidade latente.

Isso quer dizer que temos emoções perturbadoras. E então descobrimos o sentido de uma palavra muito importante – carma. Porque, se estudamos a liberação, temos que estudar o processo oposto, o aprisionamento, que chamamos de carma.

Ao observar as grandes poesias e músicas, vemos que são sempre sobre nossos impulsos: "Eu não deveria fazer tais coisas, mas elas são mais fortes." São sempre sobre duka, e há duas correntes opostas: "Aqueles cinco minutos valeram a pena", e "não, aquilo nunca mais, o custo é demasiado". Por que esses poemas, músicas e ficções nos atraem? Por que vivenciamos aquilo? Por que aquela energia percorre nossas veias? Isso acontece porque estamos presos no mesmo tipo de situação mental. Então, quando falamos do Buda, inevitavelmente temos que falar de carma. Estamos inevitavelmente presos no mesmo tipo de situação descrita na música ou no romance.

Quando olhamos nossa experiência e reconhecemos tudo isso, vemos que nossa vida tem sido sempre composta de muitos ciclos desse tipo. E de novo voltamos àquele mesmo lugar: "Por que fui atropelado?", "por que ela me deixou?", "por que sempre faço tudo errado?". E então começa tudo de novo, e dizemos: "Ah, agora já sei como é." E as coisas vão assim.

Um mestre já falecido dizia: "Se você culpa seu marido por seus problemas, você tem uma condenação perpétua – os próximos vão ter a mesma cara, os mesmos problemas do primeiro." Com namoradas é assim também. Podemos resumir este processo em uma palavra – carma. É um processo muito sutil, não é uma lei que nos condena. Se fosse assim, não existiria a palavra Buda. Buda não é o ser, não é uma pessoa. Buda é uma condição de libertação de todos esses impulsos.

O Buda Sakiamuni disse: "Não acreditem no que eu digo, testem por si próprios." Os ensinamentos não devem ser vistos como uma verdade a ser aceita. Devemos escutar e testar à nossa maneira.

Ensinamentos

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uma terceira forma de apresentação do budismo. É uma apresentação através das Quatro Nobres Verdades e do Nobre Caminho Óctuplo.

As Quatro Nobres Verdades são: a experiência de existência cíclica; o reconhecimento de que a experiência cíclica é criada artificialmente; a afirmação da possibilidade de dissolução da experiência da existência cíclica; o Caminho Óctuplo, que leva à dissolução da fixação na experiência de existência cíclica. Podemos apresentar o budismo através destas quatro verdades, e o caminho para descobrir a liberdade é o Nobre Caminho Óctuplo.

O primeiro passo do Nobre Caminho é a decisão de abandonar a existência cíclica e a impermanência. É muito difícil chegar a este ponto. A maior parte do tempo estamos preocupados em ganhar jogos. Significaria dizer a um gremista que, se abandonasse o time, não sofreria mais. Mas a pessoa diria: "Se eu abandonar o Grêmio, não sou mais eu. E aí? Vou desaparecer!" A primeira etapa é muito difícil, é como saltar de um abismo. Parece haver um grande sofrimento. Se temos coragem para ultrapassar este obstáculo aparente, nossa vida muda por completo. Curiosamente, é o oposto do que costumamos pensar.

Apenas se liberarmos nossa conexão com a roda da vida é que estaremos livres de fato. Presos à roda, podemos querer reconhecimento, dinheiro, uma dúzia de CDs – buscamos essas coisas. É como falar com alguém que está torcendo por seu time num campeonato de futebol. A pessoa quer ser campeã da Libertadores, campeã do mundo, ou, como naquele decalque muito engraçado que vi um dia: "Grêmio, Campeão do Planeta". Se tiramos isso da pessoa, parece que a vida perde completamente o sentido. O amadurecimento desta etapa tem certa conexão com outras tradições religiosas.

Se a pessoa realiza o segundo passo do Nobre Caminho, vê-se liberada dos três impulsos que produzem as ações negativas da mente: pensamentos heréticos, carência e aversão.

Quando atinge a liberdade correspondente ao terceiro passo, o praticante está livre dos quatro defeitos da fala e das emoções: falar inútil, mentira, maledicência e agressão verbal.

Quando atinge a realização do quarto passo, a pessoa liberta-se das três formas de manipulação de corpo e das identidades, que causa mal para si e para os outros: matar, roubar e manter conduta sexual imprópria.

No quinto passo o praticante se vê amparado pelo que poderíamos chamar de sorte. É como se o universo inteiro começasse a conspirar a seu favor. Isto se dá pela prática das quatro qualidades incomensuráveis e das seis perfeições. As quatro qualidades são: compaixão, amor, alegria e equanimidade. As seis perfeições são: generosidade, moralidade, paciência, energia constante, concentração e sabedoria. Ao vivenciar a amplidão natural da mente, as qualidades e perfeições se tornam naturais e não exigem esforço. As ações realizadas dentro desta experiência de inseparatividade produzem a natural retribuição positiva do universo.

A maturidade do sexto passo – a meditação – dá à pessoa grande estabilidade, saúde, vigor físico e energia. Esta energia estável significa também grande destemor. Quando a pessoa atinge a maturidade relacionada ao sétimo passo do Nobre Caminho, consegue conceber a natureza divina de todas as coisas. Ela atingiu a perfeição da atenção e vê com nitidez o aspecto convencional e o aspecto ilimitado como inseparáveis no mesmo fenômeno. Percebe o aspecto ilimitado dos grãos de poeira, das estrelas, da mente, da aparência física dos seres, dos carrapatos, de tudo. Também percebe o aspecto ilimitado presente nas manifestações abstratas.

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O oitavo passo significa a liberação completa de todos os sentidos convencionais. Alcança-se a percepção estável do aspecto ilimitado e da inseparatividade de todas as coisas, sem as limitações da visão convencional.

No sétimo passo ainda existe uma dupla verdade, pois há um aspecto convencional em contraponto a um aspecto absoluto. Esses dois últimos passos são a iluminação. No oitavo apenas não há mais a percepção dual.

Por curioso que possa parecer, existe um passo adicional ao Nobre Caminho Óctuplo. Após percorrer as oito etapas sentado sob a árvore bodhi, a figueira sagrada, o Buda levantou-se para ir ao encontro dos seres e ajudá-los. Foi a manifestação da compaixão. O Buda levantou-se para o benefício de todos. Não é uma etapa de liberação – a liberação está concluída no oitavo passo –, é o momento da ação iluminada. Sidarta venceu os oito passos em seis anos de vida na floresta; como Buda, exerceu a ação iluminada pelas aldeias e estradas por mais de quarenta anos. Existe uma divisão comum de três modos de praticar o budismo. Começamos ouvindo ensinamentos, depois meditamos sobre eles e a seguir agimos de acordo.

Se quisermos explicar de outra forma, ainda dentro desta perspectiva descritiva, o budismo pode ser resumido em três palavras. A primeira é Buda, já explicada. A segunda é Darma, os ensinamentos que surgem na mente de um Buda para beneficiar os seres – como as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho Óctuplo. Como um Buda tem liberdade perante o que para nós é dificuldade, examina o duka dos outros seres e resolve os problemas, manifestando soluções. A terceira palavra é Sanga, e está relacionada ao Buda.

A Sanga surgiu há 25 séculos, junto com o Buda. Se isto não tivesse ocorrido, não estaríamos estudando estes ensinamentos hoje. A Sanga é como uma fogueira; a chama não pertence a um ou dois dos paus queimando. É algo que surge a partir do conjunto: se separamos um dos paus da fogueira, o fogo termina naquele pedaço. Temos dificuldade em seguir o caminho da liberação sozinhos, mas quando estamos juntos é mais fácil. Chamamos isso de Sanga. Ela é capaz de queimar nossos problemas. No Zen a Sanga é comparada a um recipiente e um pilão. Um centro de Darma, um grupo de praticantes, é o recipiente, e a vida cotidiana é o sucessivo bater do pilão. Cada pessoa do grupo é um grão de arroz com casca. Dentro do recipiente (o grupo de praticantes), o pilão (a vida) vai batendo, e as cascas do arroz (nossas dificuldades) caem. Este é o efeito da Sanga.

Meditação

Uma das formas tradicionais de introduzir os ensinamentos, apresentada pelo Buda, é o caminho da meditação tranqüilizadora. Simplesmente sentamos e praticamos o primeiro dos oito passos, e os outros seguem-se sucessivamente. Com a mesma aparência externa, sentados na posição de lótus, seguimos etapa por etapa.

Neste caminho a pessoa entra, senta e vai colhendo as experiências profundas sentada. É o caminho que o Buda ensinou. Podemos chamar de diana, shine, shamata, vipassana ou samadhi; podemos chamar de samassati, mahasandi, mahamudra. De acordo com o conteúdo, com o que acontece por dentro. O Buda descreve minuciosamente estes passos e diz: "Não acreditem!", ou: "Nos textos não está a verdade! Testem!” Mas ainda assim o Buda descreve. O Buda diz que a verdade não está nos textos, mas, dependendo da realização da pessoa, o texto pode impulsionar essa realização, e aí pode ser útil de alguma forma.

Temos então o aspecto discursivo, que pode ser misturado com a prática formal e com a prática no cotidiano. Cada um deles precisa dos outros. Se a pessoa só fica

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sentada, pode ficar apenas em confusão, é preciso algum tipo de instrução. O obstáculo da meditação nunca é resolvido apenas na meditação. A pessoa precisa ouvir os ensinamentos e meditar; mas só ouvir também não adianta, ela precisa aplicar o que ouviu na vida cotidiana; aí a meditação funciona.

Bondade

Existe uma abordagem do budismo que consiste simplesmente em praticar bondade. A bondade é uma capacidade de ir além da própria identidade e olhar os outros seres a partir da perspectiva deles mesmos. É uma prática de transcendência ativa.

Usualmente, quando olhamos os outros seres, o fazemos desde a perspectiva do agrado ou desagrado que nos causam. Isso é olhar os outros a partir de nós mesmos. A prática da bondade é um exercício de transcendência ativa, vamos além de nós mesmos, surge um esquecimento das nossas tendências usuais, e aí nos tornamos capazes de efetivamente auxiliar os outros. É o que faz um psiquiatra, por exemplo. Se ele se perguntar se gosta ou não gosta da companhia de pessoas perturbadas, responderá que prefere estar no meio de pessoas estáveis. No entanto, ele tem a capacidade de transcender sua preferência pessoal e olhar os seres no contexto mental e emocional onde estão imersos. E é por isso que pode ajudá-los.

Os chineses estão destruindo a cultura tibetana tradicional, mas Sua Santidade, o Dalai Lama, olha para eles como um médico e é capaz de entender o que se passa em suas mentes, dedicando-lhes a bondade que manifesta com todos os demais seres. Como um professor espiritual poderia rejeitar algum ser? Este acolhimento incondicional é o que possibilita os professores serem professores e auxiliarem verdadeiramente. Isso é bondade.

O Buda diz: “A impossibilidade de ajudar surge das obscuridades mentais.” E as obscuridades devem ser entendidas como emoções que brotam do autocentrismo.

Yidams

Outra forma aparentemente diferente de se aproximar do budismo é olhar as deidades e suas qualidades e procurar de imediato estas qualidades em si mesmo e vivenciá-las. Em vez de estudar a roda da vida, praticar a estabilização meditativa ou focar a atenção diretamente na bondade, praticamos sadanas (preces e visualizações) referentes a Yidams, as deidades de sabedoria, e as qualidades naturalmente se manifestam.

A partir da conexão com as deidades, a compreensão da roda da vida, a bondade e a estabilidade surgem como formas de praticar a compaixão para com todos os seres e a sabedoria transcendente. É um outro caminho, pode ser praticado sozinho, e caracteriza uma abordagem completa em si mesma.

Natureza ilimitada

Existe ainda outra forma, na qual resumidamente se compreende o primeiro passo do Nobre Caminho Óctuplo e se utiliza a vontade de superação da experiência da existência cíclica como combustível poderoso para penetrar nas práticas de meditação na perfeição de todas as coisas. Não vamos usar conceitos de amor e compaixão, não vamos praticar virtudes nem a supressão das não-virtudes; focamos diretamente a natureza ilimitada. O reconhecimento da natureza ilimitada produz a superação de todas as prisões e carmas, nada mais é necessário.

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Esta prática pode ser realizada na meditação formal ou na vida cotidiana. Não se trata de uma prática construída, é a prática natural e fácil de todos os Budas. É a manifestação não-elaborada e sem esforço de nossa natureza ilimitada. Seria como entrar diretamente na oitava etapa do Nobre Caminho.

Todos os métodos têm superposições uns com os outros, e cada um apresenta características e dificuldades específicas. Neste último método, por exemplo, o foco não está na prática, no trabalho, na família ou nos centros de atendimento. A ênfase está especialmente nos retiros.

Compreensão

Existem muitas formas de praticar os ensinamentos, mas muitas lições podem ser necessárias antes mesmo de se conseguir entrar no Nobre Caminho Óctuplo. Talvez 90% a 95% dos seres não possam praticar imediatamente as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho Óctuplo porque estes pareceriam demasiado sofisticados ou fora de propósito.

As pessoas estão presas a ideologias, formas de compreensão, hábitos mentais, soluções aparentes e prioridades invasivas que impedem a compreensão. Ajudar estes seres é o foco da maior parte dos ensinamentos dos mestres. Se os alunos apenas praticarem a bondade, o amor e a compaixão, será maravilhoso.

É como o Buda disse: “Pratiquem a bondade, não criem sofrimento, dirijam a própria mente.” Esta é a essência do budismo.

(Ensinamento proferido no Centro de Estudos Budistas Bodisatvas, em Viamão, Rio Grande do Sul, em outubro de 1999)

II. Prática na vida cotidiana

Sua Santidade, o XIV Dalai Lama, diz que todos os seres se movem buscando a felicidade e tentando evitar o sofrimento. Ele lembra que as religiões preenchem sua função ao auxiliarem as pessoas nesta aspiração.

Quando desejamos uma casa na praia, estamos buscando felicidade. Ainda que nos falte clareza quanto a isto, esta é a motivação verdadeira, o elemento mental que cria o desejo pela casa. Na busca da felicidade, a casa de praia é uma boa opção?

Não há dúvida de que passar o fim de semana na praia é ótimo, mas quando chega o domingo, a felicidade acaba. A casa da praia nos traz um tipo de felicidade que necessita de um certo esforço e trabalho para se concretizar, e o benefício é curto – longo, só o engarrafamento na viagem de volta...

No budismo, sentimos que trabalhos longos e felicidades curtas não são muito interessantes, buscamos felicidade de longo alcance. Um exemplo é superar o orgulho internamente: a pessoa que o fizer imediatamente melhorará sua relação com a família e com os amigos; todos ao redor serão beneficiados.

Existem vários tipos de felicidade. Um emprego, por exemplo. Neste caso, nossa felicidade implica na frustração de outros (aqueles que não conseguiram a vaga); além do mais, tão logo começamos a trabalhar, surge a insatisfação, e então pensamos nos feriados ou no tempo que falta para a aposentadoria.

O benefício de conseguir um bom emprego é muito diferente do que se alcança ao superar um dos cinco venenos – orgulho, inveja, obtusidade mental, carência e raiva.

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No instante em que superamos a carência, nos tornamos ricos. Descobrimos uma fonte de satisfação permanente, e tudo que brota desta fonte e que podemos oferecer aos outros é motivo de alegria para nós. Quem dá alguma coisa nunca perde essa alegria; quem recebe, pode vir a esquecer.

Motivação correta

A prática budista requer um cuidadoso foco na motivação. Realizar práticas formais, recitar mantras ou entrar num templo sem motivação correta envelhece aos poucos a tradição. A falha é nossa, e não dos ensinamentos. Olhando as práticas sem o olhar correto, não há benefícios, e ficamos progressivamente insensíveis às palavras de sabedoria.

A motivação correta – trazer benefícios aos outros seres – tem o poder de transformar ações aparentemente comuns em prática espiritual. Muitas vezes mães e pais não têm tempo para praticar formalmente, mas a motivação de ajudar seus filhos e sustentar a casa transforma tudo que fazem em prática espiritual. O autocentrismo foi substituído pela natural amplitude do coração. Dependendo da motivação, a pessoa pode se sentir aprisionada a condições hostis no seu cotidiano, ou se sentir como um sol, irradiando benefícios para seres em sofrimento.

Certa vez visitei um hospital psiquiátrico e percorri as alas onde muitos seres debatiam-se presos a mundos de sofrimento. Suas aparências mostravam bem os mundos internos em conflito. Após a visita, a diretora do hospital disse: "Este é um local maravilhoso, se fico um dia sem vir aqui, surge um vazio no meu coração." Logo pensei: “Eis um Bodisatva. Sua conexão a este lugar se dá exclusivamente pelo benefício que traz continuamente a estes seres. Ela descobriu a natureza ilimitada de manifestação amorosa e compassiva.”

As situações externas são um espelho do que temos internamente. Sempre podemos optar. Um dia morreremos, e esse não será propriamente um momento feliz, mas mesmo nessa hora poderemos irradiar amor, compaixão por todos os seres e atravessar o colapso do corpo com equanimidade na mente.

Nosso carma geralmente nos leva a ver tudo através dos cinco venenos, mas temos a possibilidade de praticar o olhar dos bodisatvas, que tudo vêem com compaixão, amor, alegria e equanimidade. Utilizar esta capacidade de opção define a prática espiritual budista.

Mesmo em meio a uma enorme desgraça, como a morte de um filho, é possível e desejável praticar o olhar de bodisatva. Há um grande sofrimento, é um momento muito difícil, mas só existe uma forma de produzir benefícios aos que nos circundam e ao ser que morreu: manter a percepção na natureza luminosa, divina e estável que é nossa identidade e a essência de todos os seres, que está além de qualquer transformação, além de nome e forma, de vida e morte, de esperança e medo, de espaço e tempo. Somente esta experiência ilimitada permite o surgimento do amor, da compaixão, da alegria e da equanimidade verdadeiros.

Sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoche diz que não adianta meditar formalmente uma hora por dia e ter 23 horas de más ações e maus pensamentos. É necessário praticar 24 horas por dia. A prática do cotidiano é a base, a prática formal é um complemento que intensifica nossa qualidade de atenção nas outras horas do dia. Se depositamos nossa segurança em objetos e circunstâncias, as motivações que nos conectam à busca da felicidade e ao afastamento do sofrimento são mundanas. Nossas motivações religiosas também são limitadas se, mesmo fazendo práticas, continuamos buscando segurança em elementos e circunstâncias impermanentes. As

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motivações só serão efetivamente religiosas, no sentido ilimitado do termo, se nossa segurança estiver baseada em fatores situados além da roda da vida, além do alcance da impermanência.

Em qualquer caso, sem exceção, os seres buscam a felicidade e tentam evitar o sofrimento. Esta é a chave unificadora. Todos os seres, dos elefantes às pulgas, se movem nesta direção. Em nossa relação com as pessoas também é assim; mesmo quem nos agride quer felicidade e não quer sofrimento. Se nos aproximamos com intenção de prestar benefício, todos nos acolhem; mas, se nos aproximamos querendo sugar o que o outro tem, somos repelidos, não há dúvida. Mesmo numa relação afetiva ou com amigos é a disposição de dar, e não a de receber, que produzirá resultados. Todos os mestres budistas dizem isto. A origem do sofrimento está em colocar a experiência de felicidade na dependência de algo externo. Não haverá escapatória: nossa felicidade flutuará junto com o objeto ao qual está vinculada.

Refúgio nas Três Jóias

O budismo pode ser resumido pelas expressões Buda, Darma e Sanga – os Três Refúgios, ou as Três Jóias. Cada um de nós é um buda, nossa natureza é perfeita. Nossa mente é um diamante, mas, por operarmos a partir de certos referenciais, ela parece contaminada. É como se o diamante estivesse coberto de barro.

Darma são os ensinamentos do Buda, os métodos para remover o barro que recobre o diamante. Num sentido interno, Darma é a compreensão que brota da mente iluminada. Quando repousamos na natureza liberta, além do espaço e tempo, podemos olhar as atividades da mente sem flutuar.

Sanga é a comunidade daqueles que praticam, é onde praticamos a moralidade, que consiste em se mover sem causar malefícios e buscando o benefício dos outros. Com o tempo reconheceremos todos os seres como parte da Sanga.

Moralidade e meditação vêm juntas. Se a pessoa pratica uma hora de meditação e 23 horas de iniqüidades, não adianta. A meditação é inseparável de nosso cotidiano e da motivação de nossas ações. É ela que trará profundidade à visão, permitindo a transformação de qualquer ação em prática espiritual.

Usualmente nos portamos como mendigos, colocando a felicidade como dependente de algo externo. No momento em que olhamos para fora em busca de felicidade, esquecemos que nossa natureza é uma jóia que realiza todos os desejos, e nos tornamos mendigos, dependentes de situações externas. É como se fôssemos muito ricos, mas não tivéssemos consciência de nossa riqueza. Quando adotamos uma atitude de mendigo, nos relacionamos com os outros como quem espera ganhar uma esmola de vez em quando.

Quando uma pessoa entra nesta situação, os horizontes da mente se fecham, e ela não sabe mais como sair desta armadilha; ela esquece a experiência de liberdade de sua natureza luminosa básica. O budismo tem por função unicamente revelar esta natureza básica. A experiência de liberdade não é uma teoria, é algo completamente prático. É como um carro atolado: basta tirá-lo da lama para ele andar; o carro não está danificado, só está preso. O ponto básico para a liberação é a motivação, pois é ela que comanda o aspecto sutil da energia da ação. A motivação mais sutil é tomar refúgio no Buda, no Darma e na Sanga para benefício de todos os seres.

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Já vimos que a motivação básica de todos os seres é buscar felicidade e se afastar do sofrimento. Há então uma harmonia, todos buscam a mesma coisa. Mas existem diferenças. Existe a felicidade permanente e as felicidades passageiras.

Dentre as passageiras, podemos ter felicidades curtas com longos pagamentos, ou felicidades de média duração e longo sofrimento. Podemos ter felicidades mais ou menos intensas. A felicidade de um casamento termina com o fim do casamento, por exemplo. Também podemos ter felicidade à custa de outros seres, como no caso de um churrasco.

Mas há um tipo de felicidade que, quando obtida, traz benefícios para a pessoa que a alcançou e para todos os demais, instantaneamente. Mais que isso: essa felicidade é permanente, não tem fim. Um exemplo é libertar-se do orgulho: isso é bom para a pessoa que se liberta e para todos à sua volta, permanentemente. Ou então se libertar da raiva, é uma grande felicidade! A pessoa pode olhar com carinho para os outros, vê-los como pais, como irmãos. Trata-se de uma liberação, é algo que não termina.

As qualidades que brotam na liberação não são passíveis de perda. Esta é a felicidade de liberar as seis emoções perturbadoras – orgulho, inveja, desejo/apego, obtusidade mental, carência e raiva/medo. Quando se consegue isto, o mundo muda, passa a ser uma fonte de felicidade radiante, que não depende de fatores externos, nem de objetos. É a felicidade permanente.

As outras felicidades existem, não há dúvida. Algumas dependem de objetos, são as felicidades mundanas. Outras podem ser obtidas à custa de terceiros, que perdem ou são prejudicados.

Existem tradições religiosas que usam a palavra Deus para seres que produzem benefícios para uns e malefícios para outros. No passado havia sociedades cujas religiões ensinavam como destruir outros povos para benefício próprio. Temos que olhar para isso com cuidado. A natureza do absoluto não pode ser descrita por conceitos relativos. Os seres capazes de produzir benefícios para uns em detrimento de outros podem ser muito poderosos, mas não têm a experiência de sabedoria transcendente. Estes seres pertencem aos reinos de existência condicionada. Como nós, eles têm uma natureza intrínseca perfeita, mas operando sob condições limitadas.

Não há benefício dual permanente, mas, como nossos olhos estão perturbados, quando nos voltamos para estes seres poderosos só pedimos coisas impermanentes. Isto parece religião, mas não é – embora possa lidar com coisas sutis. Estas ações estão dentro da roda da vida, dominadas pela impermanência e instabilidade.

Generosidade

Parece que nossa felicidade material só ocorre com esforço e luta, mas essa visão é equivocada. A generosidade cria méritos que impedem a pessoa de viver uma situação de miséria.

Se a pessoa se acha miserável e acredita que não tem nada para oferecer, assim é. A situação melhora imediatamente quando ela oferece algo, nem que seja um sorriso, um olhar de carinho. No entanto, se a atitude mental é de avidez, há um poço sem fundo, a pessoa sempre se sentirá miserável. Com esse sentimento de carência, ela só vê o que falta. A avidez independe do quanto temos; é uma atitude mental. Quem vive na pobreza mas é generoso não se sente pobre, sempre tem algo a oferecer. Um dos remédios do Buda para a transformação da experiência dos seres é a tigela

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que segura na mão esquerda. Ele e os monges ofereciam-na para ricos e pobres, dando a eles a oportunidade de gerarem méritos. Mérito traz resultados imediatos: alimentar um cachorro traz satisfação imediata. Sustentar a Sanga produz grande mérito e felicidade.

Uma mente miserável não oferece nada, pensa que, se der algo, aquilo fará falta mais adiante. Estamos em meio a seres que buscam a felicidade sugando os outros. A maneira de lidar com eles é desejar que se liberem dessa condição de miséria; se usarmos apenas noções de justiça e injustiça, será impossível. Estes seres miseráveis não podem ser acusados ou condenados por se manifestarem desta forma. Além das circunstâncias externas, há uma atitude interna a ser transmutada. Neste caso, o meio mais poderoso é proporcionar condições para que pratiquem a generosidade, livrando-se da experiência de dependência, incapacidade e miséria.

Estados mentais transitórios

As felicidades mundanas, que são finitas, podem ter curta, média ou longa duração, mas existe um aspecto comum: a felicidade mundana traz consigo uma infelicidade potencial. Por exemplo: a pessoa bebe e depois fica de ressaca. Ter um filho é uma maravilha, mas ele também é impermanente, se morre é uma tragédia. A pessoa se alegra porque comprou um carro, depois se preocupa com que não seja arranhado, roubado etc. São alegrias na dependência de outros fatores; sujeitas, portanto, à impermanência. Há situações nas quais entramos e depois, por pior que seja, não conseguimos sair. Primeiro rezamos para conseguir, depois para nos livrarmos.

Existe uma grande alteração de qualidade em nossa vida quando percebemos que, independentemente da situação objetiva externa, podemos dirigir nossos estados mentais na direção que desejarmos. Focando a mente num estado mental específico a infelicidade cessa, e a felicidade surge. Podemos ouvir música ou acender incenso, por exemplo. Ainda que haja aí uma certa liberdade, não é completa, pois, tão logo a música e o incenso terminam, o estado de felicidade perde seu substrato. No entanto, enquanto permanecemos naquele estado mental, estivemos tranqüilos.

Se temos um pouco mais de habilidade, podemos fazer relaxamento ou meditação de tranqüilização. Mas estas experiências também têm início, meio e fim. Não podemos ficar relaxando o tempo inteiro, e por isso voltamos aos velhos conflitos de sempre. Vendo essa situação, queremos isolamento, desejamos morar num ashram em meio à natureza, nos Himalaias. Olhamos ao redor e achamos tudo terrível. A felicidade através de estados mentais particulares também é finita.

Em geral, nossa motivação está oculta. Ela tem o poder de transformar qualquer atividade em atividade de mérito – e também o poder de estragar tudo. Se fazemos prática espiritual, mas com a motivação de ser melhor do que alguém, ou porque estamos numa disputa, nossa mente está imperfeita, mal colocada; mais adiante colheremos os frutos dessas ações e diremos que aquela prática não funciona. Por outro lado, se a motivação é correta, podemos transformar toda nossa atividade cotidiana em prática espiritual. A motivação definirá se nossa vida funcionará, se nossa prática frutificará.

Já vimos que nossa motivação básica é buscar felicidade. Todos os seres se movem nesta direção, então podemos entendê-los. Não há atividades erradas. Todos buscamos, de forma mais ou menos hábil, nos aproximar do que consideramos bom. Todas as religiões brotam disso. Como isto se dá de forma prática no budismo?

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Certa vez, o Buda Sakiamuni chegou ao país dos kalamas. As pessoas se aproximaram e lhe pediram que desse ensinamentos. Naquele momento alguém se levantou e disse: "Senhor, muitos mestres têm passado por nosso país, oferecendo-nos seus sábios ensinamentos. Porém, eles sempre dizem: “Esqueçam o que vocês já ouviram antes, agora vou ensinar a verdade definitiva.” Como devemos ouvir suas palavras?" O Buda disse: "É muito simples. Ouçam com cuidado e testem. Experimentem em suas vidas. Se o ensinamento trouxer benefício, sigam-no diligentemente. Se não trouxer nenhum benefício, abandonem-o."

O Buda continuou: "Todos os seres buscam felicidade e querem se afastar do sofrimento. Se usamos como método de buscar felicidade matar outros seres, por exemplo, isto é interessante?" Todos disseram: "Não, não!" O Buda perguntou: "E roubar é um método para encontrar a felicidade?" Todos repetiram: "Não, não!" O Abençoado seguiu enumerando: conduta sexual inadequada, mentir, criar discórdia, agredir com palavras, falar inutilmente, ter aversão por outros seres, dar conselhos que resultem em sofrimento aos outros, ser avarento. E todos repetiram: "Não, não!" Assim, todos concordaram que estas dez ações são fontes de sofrimento e não de felicidade e entenderam por que são chamadas de ações não-virtuosas.

O Buda então indagou: "Uma pessoa dominada pela ignorância pode ser levada a matar?" Todos concordaram: "Sim, sim, Abençoado!" O Buda questionou: “Uma pessoa dominada pela ignorância pode ser levada a roubar?" Todos concordaram novamente e responderam: "Sim, sim, Abençoado!" O Buda enumerou as dez ações não-virtuosas e todos concordaram que a ignorância poderia causar cada uma delas. Depois o Abençoado citou a avareza e o ódio, perguntando se poderiam causar, uma a uma, as dez ações não-virtuosas. A cada pergunta os kalamas responderam: "Sim, sim, Abençoado!"

Ao final, o Buda explicou: "Esta é a razão pela qual a ignorância, a avareza e o ódio são chamados de os três venenos – são a raiz de todos os sofrimentos."

Emoções perturbadoras

Causar mal aos outros talvez tenha um resultado vantajoso de curta duração, mas as conseqüências danosas são de quatro níveis: imediatas, de curta, média e longa duração. Não é que algum ser superior sinta-se afetado, nós é que nos sentimos imediatamente afetados. Quando praticadas, as dez ações não-virtuosas podem produzir vantagens aparentes, mas geram infelicidades imediatas e de curta, média e longa duração para quem as pratica e para as pessoas ao redor.

Quando alguém pensa: "Seria bom que tal ser morresse", isso é sofrimento imediato. No momento em que pensa isso, ela dá ao outro ser o poder de perturbá-la, ela se fixa na forma de percebê-lo como um ser perturbador que deve morrer. A curto prazo, a pessoa se torna sensível à toda menção, lembrança, sonho ou encontro com aquele ser. Em cada um destes eventos ela se sente atingida e reage com amargor interno. A médio prazo, a pessoa pode desenvolver uma doença física. Pode manifestar também uma atitude herética que leve à violência, que a faça descrer da paz. A longo prazo, isto pode se manifestar como uma atitude não-consciente de aversão a tudo que é religioso, ético e moral ou que parece elevado e digno. Na linguagem budista, isto pode levar a pessoa ao renascimento nos reinos inferiores.

Observe: estas são conseqüências de apenas desejar a morte de alguém. Os efeitos negativos são muito mais intensos se, depois de desejar a morte, a pessoa passa a planejar a forma de realizar isto. Mais ainda, se ela executar a ação planejada. O pior de tudo – o que completará o carma negativo – é se a outra pessoa morrer. Neste caso, o executante não terá mais sossego, com medo de alguma punição. O mesmo

Referências

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