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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Gabriel Ferreira da Fonseca

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Academic year: 2018

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Gabriel Ferreira da Fonseca

A interpretação jurídica no Estado Regulador: da legislação racional à administração/jurisdição eficiente

MESTRADO EM DIREITO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Gabriel Ferreira da Fonseca

A interpretação jurídica no Estado Regulador: da legislação racional à administração/jurisdição eficiente

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia do Direito, sob a orientação do Prof. Dr. Celso Fernandes Campilongo.

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Gabriel Ferreira da Fonseca

A interpretação jurídica no Estado Regulador: da legislação racional à administração/jurisdição eficiente

MESTRADO EM DIREITO

Orientador: Professor Dr. Celso Fernandes Campilongo

Aprovado em:____________________

Banca Examinadora:

______________________________________________

______________________________________________

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Dedico este trabalho, com carinho, aos meus pais, à

minha família, aos meus amigos e à memória da minha

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AGRADECIMENTOS

A parte mais difícil de um trabalho acadêmico talvez seja conseguir ser justo nos agradecimentos. As dúvidas e inquietações relacionadas à “teoria do direito” são antigas e muitos foram aqueles que de alguma forma contribuíram com estímulos positivos para que eu desse prosseguimento à minha trajetória em busca de respostas e de novas perguntas.

No início, apenas poderei agradecer à minha família, que sempre apoiou e incentivou os meus sonhos. Em nome dos meus pais, Ester e João, agradeço a todos os familiares que sempre estiveram firmes em suas posições de porto seguro e de pilar de sustentação.

Em seguida, não poderei deixar de agradecer aos amigos. Alguns deles estiveram mais próximos durante o curso de Mestrado, outros mais distantes, em razão da distância geográfica entre São Paulo e Salvador. Aos que estiveram em São Paulo, devo agradecer pelo acolhimento e pelo apoio. Aos que estiveram em Salvador, devo agradecer pela compreensão e pelo companheirismo apesar da distância.

No plano acadêmico, o principal agradecimento deve ser destinado ao meu orientador, Professor Celso Fernandes Campilongo, que permitiu que este trabalho fosse escrito, por um lado, com grande liberdade, mas, por outro lado, com imensa responsabilidade. Sou muito grato ao Professor pelas sugestões de leitura, pelas oportunidades de reflexão e pelos convites para participar de atividades de monitoria.

À Professora Clarice von Oertzen de Araújo e ao Professor Luiz Guilherme Arcaro Conci agradeço imensamente pela cuidadosa leitura e pelas importantes sugestões transmitidas na banca do Exame de Qualificação deste trabalho.

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“1.

Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos.

2.

E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão.”

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RESUMO

A interpretação jurídica não escapou às recentes transformações ocorridas no Estado e no direito. Ao longo das últimas décadas, esta importante operação comunicativa do sistema jurídico sofreu metamorfoses que justificaram a realização da pesquisa que resultou no presente trabalho. Com o objetivo de compreender as profundas mudanças sofridas pela interpretação jurídica, foram investigadas as peculiaridades dos novos modelos de Estado Regulador e de direito (“pragmático”, “flexível”, “brando”, “responsivo”, “dúctil”, “heterárquico”) que se desenvolvem na contemporaneidade, contrastando-as com as características marcantes dos modelos estatais e jurídicos anteriores. O resultado da pesquisa, que tomou como principal referência a teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann, foi uma descrição acerca da realidade social investigada, que pode ser entendida como uma autorreflexão do sistema jurídico, convencionalmente chamada de “teoria do direito”. A opção por este modo teórico-jurídico de observar a realidade investigada permitiu situar a pesquisa em uma posição diferente daquelas da prática do direito e da dogmática jurídica, ligadas diretamente à necessidade de decisão, e da sociologia do direito, desvinculada desta preocupação. Esta posição ambivalente entre os pontos de vista interno e externo ao sistema jurídico contribuiu para uma investigação heterodoxa acerca de um recurso retórico útil e tradicional da dogmática jurídica: a hipótese do legislador racional. Por fim, após abordar os contornos deste ideal tradicional da hermenêutica jurídica, o trabalho refletiu acerca dos riscos, limites e possibilidade de uma nova figura retórica, que pode estar se desenvolvendo no interior do sistema jurídico: a hipótese do administrador/julgador eficiente.

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ABSTRACT

The field of legal interpretation was not immune to recent changes that took place in the State and in Law. Along the last decades, this important communicative activity of the legal system underwent a number of metamorphosis which justified the conduction of the research of which this work is a product. Aiming to apprehend the profound changes that took place in the field of legal interpretation, we investigated the singularities of the new models of Regulatory State and the Law (“pragmatic”, “flexible”, “soft”, “responsive”, “ductile”, “heterarchical”) currently in development, in contrast with the outstanding characteristics of the previous models of State and Law. The outcome of the work, which was based on Niklas Luhmann’s systems theory, was a description of the investigated social reality, which may be understood as an auto-reflection of legal system, conventionally named “legal theory”. The option for this theoretical way to observe the investigated reality allowed to place the inquiry in a different position from those of legal practice and legal dogmatics, which are directly associated to the need to decide, and from sociology of law, disassociated from the need to decide. This ambivalent position between internal and external perspectives of the legal system contributed to a heterodox investigation on a useful traditional rhetorical resource of the legal dogmatics: the rational legislator hypothesis. Finally, after having approached the characteristics of this traditional ideal of the law hermeneutics, this work reflects on the risks, limits and possibility of a new rhetoric figure, which is possibly being developed in the interior of the legal system: the efficient administrator/ruler.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ... 9

1.1 A seleção metodológica da teoria dos sistemas sociais ... 15

1.2 A seleção metodológica do Estado Regulador ... 20

1.3 A seleção metodológica da interpretação jurídica ... 23

2. MODELO DO ESTADO REGULADOR ... 27

2.1 Limites da política e esgotamento do Estado Intervencionista... 28

2.2 Configuração do Estado Regulador ... 37

2.3 Globalização econômica e governança global ... 47

3. NOVO MODELO DE DIREITO ... 55

3.1 Desgastes da racionalidade jurídica tradicional ... 56

3.2 Novos aspectos do direito ... 68

3.3 O caso do direito brasileiro ... 75

4.HIPÓTESE DO ADMINISTRADOR/JULGADOR EFICIENTE ... 84

4.1 Interpretação jurídica elegislador racional ... 86

4.2 Interpretação jurídica e administrador/julgador eficiente ... 95

4.2.1 Eficiência e segurança jurídica ... 97

4.2.2 Dogmática jurídica responsiva ... 124

5.CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 139

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1. INTRODUÇÃO

O Estado Regulador é uma realidade do nosso tempo. Ele indica um contexto de recentes mudanças na política e no direito. A interpretação jurídica, enquanto importante operação comunicativa do direito, não escapou destas transformações, o que exige reflexões teórico-jurídicas e sociológicas, cujas bases este trabalho recolherá, sobretudo, da teoria dos sistemas sociais desenvolvida por Niklas Luhmann e por diversos outros pesquisadores deste aporte teórico.

As recentes transformações na política e no direito repercutiram drasticamente no que se entende contemporaneamente por interpretação jurídica. Essas transformações podem ser objeto de uma reflexão teórica séria, pautada nos instrumentos teóricos desenvolvidos pela teoria dos sistemas sociais.

Assim, o trabalho apresentará as mudanças ocorridas, nas últimas décadas, na política e no direito, em geral, e no Estado e na interpretação jurídica, em especial. Embora ligada ao Núcleo de Pesquisa em Filosofia do Direito, o que requer uma sólida abordagem teórico-reflexiva, a investigação empreendida também tem compromisso com a prática jurídica e com a realidade estatal, particularmente no contexto brasileiro. Em lugar de um academicismo estéril, buscar-se-á o desenvolvimento de um trabalho comprometido com observações e descrições adequadas à realidade e aos problemas jurídicos brasileiros1.

Os discursos da filosofia e da teoria do direito, segundo a teoria dos sistemas de Luhmann, ocupam uma posição ambivalente entre a autodescrição (auto-observação) e a heterodescrição (hetero-observação) do sistema jurídico, razão pela qual podem caracterizar o direito de um modo não habitual, não prático e mais abstrato, mas sempre orientado para o próprio direito. Estes discursos não apresentam, portanto, a posição de

1 Embora o presente trabalho esteja situado no campo da chamada teoria do direito e, portanto, tenha uma

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independência em face ao seu objeto que possuem as investigações externas ao sistema jurídico, como aquelas da sociologia do direito2.

Ainda que diversas passagens do presente trabalho se baseiem em descrições sociológicas do sistema jurídico, a investigação acerca da interpretação jurídica que guia a pesquisa está mais bem situada na tradição teórico-filosófica do direito3, preocupada, por um lado, com uma compreensão aprofundada e aberta ao questionamento do fenômeno jurídico, mas, por outro lado, com as necessidades operacionais dos atores do sistema jurídico, já que serve de auxílio à “ciência do direito”, que nos últimos 150 anos tem se configurado como um saber de caráter dogmático4.

2 LUHMANN, Niklas. A Restituição do Décimo Segundo Camelo: Do Sentido de uma Análise Sociológica

do Direito. Tradução de Dalmir Lopes Junior. In: ARNAUD, André-Jean; LOPES JUNIOR, Dalmir (Org.).

Niklas Luhmann: Do Sistema Social à Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 53. Embora, no livro “Sistema Jurídico e Dogmática Jurídica”, Luhmann tenha situado a teoria do direito no sistema científico, e não no sistema jurídico, posteriormente, em obras como “O Direito da Sociedade”, o autor passou a considerar a teoria do direito “como forma de reflexão do sistema jurídico e, inclusive, como mecanismo de ‘acoplamento estrutural’ entre sistema científico e sistema jurídico” (GONÇALVES, Guilherme Leite; VILLAS BÔAS FILHO, O. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 150). Por outro lado, ainda que a teoria do direito constitua a “instância de reflexão do sistema jurídico” por excelência, esta teoria, quando comparada com a descrição externa da sociologia jurídica, apresenta “uma capacidade limitada de crítica em face do sistema jurídico” (NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 154). Por isso, autores como Raffaele De Giorgi entendem que a teoria do direito não apenas faria referência à realidade do sistema jurídico, mas seria a própria realidade autorreferencial deste sistema, que “[...] li maschera al sistema e li supera. Il riferimento della teoria del diritto, allora, non è una teoria della conoscenza, cosí come la sua funzione non è quella di produrre un sapere vero sul diritto, cioè di descrivere l’oggetto come un dato esterno appartenente ad una realtà sulla quale si esercita la scienza. Per la teoria dei sistema, la teoria del diritto è essa stessa una struttura della realtà autorreferenziale del diritto che ha la sua funzione nella soluzione dei problema posti dalla forma della differenziazione sociale.” A sociologia, por sua vez, “osserva il sistema dall’esterno, la sua è una forma di etero-osservazione. Essa cioè conserva la distanza che la separa dal sistema perché in questo modo può osservare e descrivere non solo il sistema, ma ache il modo in cui il sistema osserva e descrive se stesso. Ciò permette alla sociologia, come dice Luhmann, di osservare insieme di più e di meno di quanto non possa fare lo stesso sistema giuridico.” (DE GIORGI, Raffaele. Introduzione all’edizione italiana. In: LUHMANN, Niklas. La differenziazione del diritto – Contributi alla sociologia e alla teoria del diritto. Tradução de Raffaele De Giorgi e Michele Silbernagl. Bologna: Società editrice il Mulino, 1990, pp. 24-25).

3 Ver, para uma sociologia da interpretação jurídica, CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do

Direito e Movimentos Sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, pp. 123-166, e CAMPILONGO, Celso Fernandes. A observação sociológica da interpretação jurídica. In: CAMPILONGO, Celso Fernandes.

Direito e diferenciação social. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 91-98.

4 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São

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A teoria do direito é capaz de realizar a mediação entre observação externa e observação interna, empreendendo uma espécie de “second order cybernetics” (observação de segunda ordem) do sistema jurídico5, que permite o contato, ao mesmo tempo, com a teoria dos sistemas sociais e com as teorias concretas da dogmática jurídica6. Se, por um lado, a posição teórica adotada não abandona a perspectiva interna do sistema jurídico e considera irrenunciável a centralidade do conceito de norma jurídica, por outro lado, assume o papel de teoria reflexiva deste sistema e se dirige à abstração, à busca de contatos interdisciplinares e à comparação dos diferentes ordenamentos jurídicos ou famílias de ordenamentos jurídicos7.

O sistema jurídico produz os seus próprios limites e a teoria do direito funciona como uma importante instância de auto-observação e autodescrição deste sistema, isto é, como um âmbito de observação interno do direito, que deve identificar o direito e

dos casos difíceis: a dogmática jurídica e o paradoxo da decisão indecidível. 2014. 172 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2014.

5 A teoria dos sistemas de Luhmann renuncia ao termo “sujeito” (da teoria do sujeito) e adota a expressão

“observação” (da teoria da observação de segunda ordem). Parte-se da premissa de que o mundo está dividido entre sistema e ambiente e de que a localização do observador condiciona aquilo que ele pode ver (e também aquilo que ele não pode ver): “O observador é um sistema, e um sistema pode ter uma capacidade de localização flexível: o sistema pode observar a si mesmo (auto-observação), e também outros sistemas (hetero-observação). [...] A observação de segunda ordem não constitui o emprego de uma lógica formal abstrata, mas a tentativa de observar aquilo que o observador [de primeira ordem] não pode ver [o ponto cego do observador], devido à localização. A observação de segunda ordem deve fixar exatamente o ponto a partir do qual se observa como o outro observa o mundo.” (LUHMANN, Niklas. Introdução à Teoria dos Sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, pp. 163-170).

6 LUHMANN, Niklas. A Restituição do Décimo Segundo Camelo: Do Sentido de uma Análise Sociológica

do Direito. Tradução de Dalmir Lopes Junior. In: ARNAUD, André-Jean; LOPES JUNIOR, Dalmir (Org.).

Niklas Luhmann: Do Sistema Social à Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 86-87.

7 Consoante Luhmann, embora a teoria do direito não apresente ainda um perfil claro, “[...] la distinción entre

teorías dogmáticas y teoría del derecho, en sentido general, se da por aceptada. Sin embargo, no se abandona la incorporación de la teoría del derecho a la perspectiva interna del sistema. En todo caso, también en la teoría del derecho se considera irrenunciable el concepto de norma como concepto fundamental. En calidad

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distingui-lo do seu entorno (ambiente)8. Mas, assim como uma observação/descrição sociológica do sistema jurídico não poderia ignorar a teoria do direito (instância teórica e reflexiva deste sistema), uma observação teórico-jurídica não pode abster-se de realizar hetero-observações/heterodescrições da própria sociedade9.

Por isso, o presente trabalho recorre à complexa descrição da teoria dos sistemas, que permite situar a investigação proposta, preocupada com a interpretação jurídica, na linha daqueles esforços de reflexão teórica sobre o sistema jurídico que se convencionou chamar de teoria do direito. Trata-se de uma orientação teórica mais “abstrata” do que as pesquisas de caráter jurídico-dogmático, por estar mais distante da decidibilidade de conflitos concretos, porém mais “concreta” do que aquelas investigações de índole jurídico-sociológica, por estar mais próxima da necessidade de decisão dos referidos conflitos10.

8 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México:

Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 67-70.

9 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do Direito e Movimentos Sociais. Rio de Janeiro:

Elsevier, 2012, p. 134. Todas as comunicações do sistema jurídico, em razão da função específica (“estabilização de expectativas normativas”) e do código binário próprio (“conforme ao direito/não conforme ao direito”) deste sistema, estão associadas à decidibilidade de conflitos, inclusive as autodescrições, embora estas possam “evitar tomar partido” em relação a situações específicas. (LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 572-579).

10 Em verdade, Luhmann manifesta desconfiança em relação à expectativa de que a teoria sociológica em

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O presente trabalho pode ser considerado uma prestação reflexiva do sistema jurídico, que toma para si a tarefa de sistematizar todas as aquisições úteis à decidibilidade de conflitos, mediante o recurso às experiências de comparação de casos, aos conceitos dogmáticos, às normas jurídicas e, ainda, às avaliações abertas dos fenômenos sociais. Essa sistematização pressupõe a referência à unidade do direito, à identidade do sistema jurídico e aos critérios de adesão ao “direito” ou ao “não-direito”11.

Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, às antigas inquietações teóricas do autor, dos tempos de graduação em Direito, somaram-se as angústias da advocacia consultiva na área de direito regulatório, área pouco explorada pelos cursos de graduação das Faculdades de Direito. Os problemas ligados à interpretação jurídica se potencializam no contexto do Estado Regulador, mas escassas são as reflexões teóricas voltadas ao tema no Brasil. Em sua maioria, não apenas as disciplinas e as investigações dogmáticas seguem desprezando as recentes mudanças do Estado, do direito e da interpretação jurídica, mas também as reflexões orientadas a uma abordagem mais teórica ou crítico-reflexiva do fenômeno jurídico tendem a deixar escapar o tema12.

Experimenta-se um desconforto frente ao descompasso entre os discursos jurídicos predominantes no Brasil e a faticidade das relações sociais que o direito pretende regular e influir, o que levou J. J. Calmon de Passos a recordar dos versos do poeta Mário Quintana: sociedade (isto é, a abertura cognitiva mútua). No entanto, essa relação entre sistema jurídico e sistema científico não acarreta que o direito ou a ciência percam a sua autonomia (fechamento operacional), já que a noção de acoplamento estrutural tanto vincula quanto separa os sistemas. Não se defende aqui, portanto, uma “sociologização” ou “cientificização” do direito, pois os limites operacionais de cada sistema social são observados e respeitados (LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 507-513). Ver, para uma proposta de teoria do direito de inspiração luhmanniana, CARVALHO NETO, Pythagoras Lopes de.

Retórica e consistência no direito: fundamentos para uma teoria do direito de inspiração luhmanniana. 2015. 181 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2015.

11 LUHMANN, Niklas. Prefazione. In: LUHMANN, Niklas. La differenziazione del diritto – Contributi

alla sociologia e alla teoria del diritto. Tradução de Raffaele De Giorgi e Michele Silbernagl. Bologna: Società editrice il Mulino, 1990, p. 31.

12 No Brasil, como aponta Salomão Filho, “jamais houve tentativa de formulação de uma teoria geral da

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“pobres cartazes por aí afora, que ainda anunciam ALEGRIA - RISOS, depois do circo já ter ido embora!...”. Os discursos jurídicos, como os cartazes amarelados de um circo que já se foi, costumam anunciar “o que a vida real não mais nos proporciona”13.

Uma dissertação que pretende abordar um tema atual, como é o caso desta, encontra-se diante de um grande desafio: tratar de modo adequado não apenas do passado e do presente, o que por si só já traz enormes dificuldades, mas também de um pouco do futuro – tarefa ainda mais arriscada. Esta empreitada exigiu algumas opções.

O trabalho se desenvolverá a partir de três seleções metodológicas principais, responsáveis pela redução de complexidade da investigação: i) a da teoria dos sistemas sociais; ii) a do Estado Regulador; e iii) a da interpretação jurídica. De saída, outros referenciais teóricos igualmente adequados ao estudo proposto poderiam ter sido selecionados: “teoria da argumentação”, “teoria do discurso”, “análise econômica do direito”. O Estado poderia ser qualificado de outro modo: “Pós-moderno”, “Pós-social”, “Neoliberal”, “Hiper-moderno”. Outro elemento ligado à teoria do direito poderia ser objeto de análise: “norma jurídica”, “ordenamento jurídico”, “fontes do direito”, “relação jurídica”. No entanto, ainda que possam ser consideradas arbitrárias, as opções do trabalho permitem o seu desenvolvimento: traçam limites, mas também condições de possibilidade para uma análise adequada de uma realidade social complexa e contingente.

O processo de investigação se desenvolverá a partir de três grandes seleções dentre muitas outras possíveis, o que, sem dúvida, significa a opção pela autolimitação, pela redução de complexidade. Trata-se de uma exigência estrutural do objeto de investigação, um princípio metodológico compatível com a proposta de reflexão voltada para o complexo sistema social14.

13 PASSOS, J. J. Calmon de. Revisitando o direito, o poder, a justiça e o processo: reflexões de um jurista

que trafega na contramão. Salvador: Editora JusPodivm, 2012, p. 35.

14 LUHMANN, Niklas. La moral de la sociedad. Tradução de Iván Ortega Rodríguez. Madrid: Editorial

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Ao longo do desenvolvimento de todo o trabalho, ficará evidente que há fortes razões para se acreditar que: i) a teoria dos sistemas sociais, desenvolvida por teóricos como Niklas Luhmann, permite uma descrição adequada e útil da realidade social investigada, isto é, da sociedade, em geral, e dos subsistemas do direito e da política, em especial; ii) a regulação econômica, modo típico de intervenção do Estado contemporâneo no domínio econômico, pode servir como característica distintiva do modelo de Estado Regulador (em contraposição aos modelos de Estado Liberal e de Estado Intervencionista); iii) por refletir as transformações do direito no contexto do Estado Regulador, a interpretação jurídica, operação comunicativa central do sistema jurídico, demanda novas e aprofundadas investigações.

O trabalho focaliza dois momentos que, a nosso ver, são fundamentais para se compreender a realidade social investigada. O primeiro diz respeito à questão da subsistência da figura do “legislador racional” como recurso metodológico útil à interpretação jurídica. Já o segundo problematiza o surgimento de um novo ideal possivelmente mais adequado à interpretação jurídica no contexto do Estado Regulador: o do “administrador/julgador eficiente”. Neste ponto, o trabalho assume uma perspectiva propositiva.

1.1 A seleção metodológica da teoria dos sistemas sociais

A principal referência teórica deste trabalho é a teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann. A sociedade moderna é descrita por esta referência como um sistema de comunicação, que abarca em seu interior diversos subsistemas (sistemas parciais) diferenciados funcionalmente. Para este ponto de vista teórico, são vistos como subsistemas sociais, por exemplo, o direito, a política, a economia, a ciência e a religião.

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No Brasil, há uma vasta literatura acadêmica pautada por este referencial teórico, sobretudo no direito. Pesquisadores como Celso Fernandes Campilongo, Juliana Neuenschwander Magalhães, Leonel Severo Rocha, Marcelo Neves, Orlando Villas Bôas Filho, Tércio Sampaio Ferraz Júnior e Willis Santiago Guerra Filho desempenharam um importante papel na divulgação e no desenvolvimento da teoria dos sistemas no Brasil. A aplicação à realidade brasileira do instrumental desta teoria tem se mostrado promissora.

No âmbito do presente trabalho, espera-se que a teoria dos sistemas sociais forneça os instrumentos para uma descrição adequada do sistema da sociedade e, particularmente, dos subsistemas sociais do direito e da política. A consciência dos limites e possibilidades da atuação de cada um destes sistemas parciais da sociedade poderá auxiliar na compreensão dos novos modelos de Estado, direito e interpretação jurídica que se desenvolvem contemporaneamente.

Em obras como “Teoria Política no Estado de Bem-Estar”, Luhmann desenvolve uma forte crítica à configuração do Estado Intervencionista. A descrição oferecida por Luhmann do subsistema político lança luzes sobre os limites da atuação política e a sobrecarga de tarefas assumida pelo Estado Intervencionista, que levou ao colapso deste modelo estatal e à reestruturação das suas atribuições. O Estado Regulador se organiza a partir dos escombros do Estado de Bem-Estar, cujas rachaduras já eram apontadas por Luhmann no início da década de 1980. Naquela oportunidade, Luhmann constatou que uma sociedade funcionalmente diferenciada não poderia ser centrada sobre a política, sob pena de destruição15.

Ademais, apesar de não ter incluído em sua principal obra sobre o subsistema jurídico (“O Direito da Sociedade”) um capítulo específico sobre a interpretação jurídica, é inegável a importância conferida por Luhmann àquela operação comunicativa. Para ele, fica claro que, na atualidade, a interpretação jurídica não é entendida simplesmente como a revelação do texto interpretado através do recurso a outros símbolos, mas como produção de novos textos com base em textos antigos. A interpretação jurídica pode ser

15 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín.

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compreendida como uma preparação para a argumentação jurídica16, razão pela qual é importante refletir sobre essas duas operações comunicativas, que são responsáveis pela autopoiese e sobretudo pela evolução do sistema jurídico.

Embora também apresente o objetivo de fornecer contribuições para o acúmulo teórico que tem sido produzido no âmbito da teoria dos sistemas sociais, o presente trabalho não trará um capítulo específico com a finalidade de discutir o marco teórico aplicado na pesquisa. As contribuições da teoria dos sistemas sociais para o desenvolvimento da investigação (e desta para a teoria) surgem ao logo de toda a dissertação, seja de modo explícito, seja de modo implícito.

Para os fins desta breve introdução, entendemos que basta apontar para a capacidade explicativa que a teoria dos sistemas sociais apresenta em relação às variações evolutivas da sociedade. Segundo Luhmann, para uma compreensão adequada destas variações, não se deve recorrer às ações individuais ou à atividade dos intelectuais, senão ao próprio sistema da sociedade e às suas operações elementares, isto é, à comunicação. A variação se produz através de uma comunicação que rejeita ou contradiz conteúdos de comunicação. Trata-se de uma reprodução divergente e dialógica de elementos do sistema. Assim, a variação depende da memória do sistema, que informa o conhecido, o esperado, o normal17.

16 Atualmente, segundo Luhmann, “[…] la interpretación se entiende, en primer lugar, como producción de

nuevos textos con base en los viejos; como ampliación de los fundamentos del texto, a lo que, posteriormente, el texto de salida servirá únicamente de referencia. En cualquier caso la interpretación es la producción de más texto.” No entanto, no nível de observação de primeira ordem, o entendimento das doutrinas antigas acerca da interpretação, que “[...] partían del hecho de que el texto permanecía idéntico al ser interpretado [...]”, também pode ser operacionalizado. Por outro lado, a interpretação jurídica que pergunta sobre a “[...] racionalidad de la intención que creó el texto (por sobre todo, el legislador) [...]” e a argumentação jurídica já estão em outro plano de observação, que é o de uma observação de segunda ordem. Ademais, consoante Luhmann, o intérprete não busca se “autoiluminar”, mas “[...] utilizar lo interpretado en un contexto de comunicación [...]”, preparar “[...] una argumentación [...]” (LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 403-427).

17 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México:

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No entanto, a evolução depende não apenas da memória e da variação, mas também da seleção. Toda variação é acompanhada de uma seleção, ainda quando se seleciona o estado atual, e não a inovação. A seleção estabiliza, isto é, leva o sistema de volta ao estado de “equilíbrio”. A seleção positiva ou negativa eleva o grau de complexidade do sistema, que deve reagir a ele com re-estabilizações. Os mecanismos de estabilização servem, ao mesmo tempo, como motores de variações evolutivas. Trata-se de uma estabilidade dinâmica, que resulta em uma elevada frequência de transformações das estruturas sociais. Se, por um lado, a evolução começa a ocorrer mais rapidamente à medida que avança, por outro lado, surgem formas capazes de suportar essa maior velocidade de transformação. Quanto maior a complexidade alcançada pelo sistema, mais prováveis se tornam as inovações, os desvios, mas também maiores as possibilidades de suportar estes desvios18.

As características da sociedade moderna e as semânticas que representam tais características estão em frequente mudança. Esta sociedade, que se orienta “entre variação e redundância”, é marcada por uma “contínua auto-instabilização” e oscila “entre a produção daquilo que é outro e a utilização daquilo que foi.” A memória da sociedade moderna é ininterruptamente exposta às mudanças e permite “a adaptação da sociedade à realidade que ela mesma constrói para si.”19

que o sistema praticou consigo, mas um modus operandi que se redetermina continuamente e que, sempre no

presente, em cada presente, acompanha as operações do sistema. Um contínuo controle de consistência. A memória permite que o sistema saiba que ele é presente a si mesmo. Na rede de contínuos reenvios simultâneos às transformações de seu estado, a memória permite ao sistema sintetizar aquelas transformações que se revelam capazes de conexão, ou seja, capazes de fazer emergir um novo comportamento. [...] o sistema é, ao mesmo tempo, sua memória e o destinatário das operações de sua memória.” (DE GIORGI, Raffaele. Direito penal e teoria da ação entre hermenêutica e funcionalismo. In: DE GIORGI, Raffaele.

Direito, Tempo e Memória. Tradução de Guilherme Leite Gonçalves. São Paulo: Quartier Latin, 2006, pp. 148-150).

18 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México:

Universidad Iberoamericana, 2006, pp. 373-399.

19 DE GIORGI, Raffaele. O direito na sociedade do risco. In: DE GIORGI, Raffaele. Direito, Tempo e

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A teoria dos sistemas sociais permite compreender o desenvolvimento do Estado Liberal em direção ao Estado Intervencionista, bem como deste no sentido do Estado Regulador, como um processo evolutivo20. A organização estatal é o instrumento encontrado pelo sistema político para estabilizar “a sua própria instabilidade”, isto é, para se imunizar “em relação à variabilidade dos temas”21. O Estado Constitucional, em última análise, “aparece como o portador do acoplamento estrutural entre os sistemas político e jurídico” e possibilita “uma notável aceleração da dinâmica própria de cada um desses sistemas.”22

A interpretação jurídica, por sua vez, pode ser entendida como operação comunicativa que promove a autopoiese e a evolução do direito, através da promoção de redundância e variação23. A interpretação jurídica representa uma tensão produtiva entre fechamento operacional (autorreferência) e abertura cognitiva (heterorreferência) do direito, isto é, “um intercâmbio seletivo de informações do sistema jurídico com o seu ambiente”24. As distinções “texto/interpretação”, “texto/contexto” e “sentido literal/sentido implícito” se “entrecruzam fortemente” e “expõem o direito (fixado por escrito) à evolução”. Na sociedade moderna, “a legislação começa a dominar a evolução do direito”,

20 NAFARRATE, Javier Torres. Luhmann: la política como sistema. Universidade Iberoamericana;

Faculdad de Ciencias Políticas y Sociales, UNAM, FCE, 2004, p. 393.

21 DE GIORGI, Raffaele. Estado e direito no fim do século. Tradução de Juliana Neuenschwander Magalhães

e Menelick de Carvalho Netto. In: DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco – vínculos com o futuro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, pp. 74-77.

22 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México:

Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 538-552. Embora “[…] el acoplamiento estructural entre sistema político y sistema jurídico se ha desarrollado como ‘Estado’ […]”, este “[…] no está investido para llenar esta función de acoplamiento estructural bajo cualquier forma. Se necesita una solución altamente artificial que permita observar el derecho desde el punto de vista de la política, y ésta desde el punto de vista del derecho. Este arreglo artificial lo conocemos nosotros con el nombre de ‘Constitución’. […] La prestación que logra es que por una parte aumenta los grados de libertad tanto del sistema político como del sistema jurídico, de tal suerte que en ambos es posible la autopoiesis y la autoorganización y, por otra, que canaliza la irritación mutua de estos sistemas.” (NAFARRATE, Javier Torres. Luhmann: la política como sistema. Universidade Iberoamericana; Faculdad de Ciencias Políticas y Sociales, UNAM, FCE, 2004, p. 368).

23 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do Direito e Movimentos Sociais. Rio de Janeiro:

Elsevier, 2012, p. 161.

24 VESTING, Thomas. Teoria do direito: uma introdução. Tradução de Gercélia B. de O. Mendes. São

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ou seja, os processos evolutivos do direito se tornam possíveis especialmente em razão da “diferença entre texto e interpretação”25.

Assim, a teoria dos sistemas sociais valoriza igualmente o texto e a interpretação, a recordação e o esquecimento, a estabilização e a mudança, o não e o sim, o consenso e o conflito, enfim, a rejeição e a aceitação das propostas de sentido. Estas alternativas formam uma unidade paradoxal, que permite as mudanças sociais. O presente trabalho busca justamente compreender as mudanças do Estado, do direito e da interpretação jurídica e encontra na teoria dos sistemas sociais um importante ponto de apoio para a descrição do passado, do presente e das possibilidades de futuro.

1.2 A seleção metodológica do Estado Regulador

A opção por denominar o Estado que desponta no ocaso do Século XX e na aurora do Século XXI de “Estado Regulador” delineia os caminhos da pesquisa aqui desenvolvida. Sem deixar de notar a existência de outros atributos típicos do Estado contemporâneo, elege-se a “regulação econômica” como característica central da análise, em razão de este atributo ter a capacidade de representar uma das principais transformações ocorridas no Estado contemporâneo, marcado por privatizações, pluralismo jurídico, novos modelos de governança e de cooperação entre velhos e novos atores sociais, globalização, transnacionalização, especialização técnica, ênfase na ideia de eficiência etc.

O presente trabalho opta por investigar as recentes transformações do Estado de Direito contemporâneo e, por isso, produz não apenas observações internas do sistema jurídico (auto-observações), mas também observações direcionadas ao sistema político (hetero-observações)26. A política e o direito encontram na fórmula “Estado de Direito” uma expressão para a “relação parasitária” que mantêm entre si, isto é, para a possibilidade

25 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México:

Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 317-318.

26 Embora apresente a ambição teórica de propiciar contatos interdisciplinares e de manter diálogos com

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que possuem de “crescer graças a uma diferença externa”. Por um lado, a política “se beneficia com o fato de que em outra parte (no direito) se encontra codificada e administrada a diferença entre o que é conforme ao direito/e o que é discrepante.” Por outro lado, o direito “se beneficia com o fato de que a paz – a diferença de poderes claramente estabelecida e o fato de que as decisões se podem impor pela força – está assegurada em outra parte: no sistema político.”27

A escolha da expressão “Estado Regulador”, que confere destaque à noção de “regulação econômica”, decorre da constatação de que, a partir dos anos 1980 e 1990, a maior parte dos Estados contemporâneos passa a amalgamar características que despontaram inicialmente nos países anglo-saxões, ligadas a uma acentuada mudança na atuação política. O Estado deixa de apresentar um papel hegemônico na sociedade e, especialmente, na economia, passando a optar pela ênfase em intervenções mediante a produção de regulação econômica28.

O poeta e cronista Carlos Drummond de Andrade ensinava que o ofício “de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza – essa natureza que não presta atenção em nós”. Como um cronista que se dedica a observar e descrever a surpreendente gradação de cores das folhas de uma amendoeira no outono (verdes, amareladas, vermelhas, marrons)29, o jurista que escreve sobre as coisas do seu tempo deve dedicar alguma atenção à sociedade – enquanto grande sistema social, que

27 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México:

Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, p. 492.

28 O desenvolvimento de um Estado Regulador, segundo La Spina e Majone, está associado ao “[...]

abbandono di un modello di Stato quale gestore diretto, dispensatore di beni, ingegnere sociale [...]”, em favor da ideia de um “[...] nuovo stile di intervento pubblico [...]”. Consoante estes autores, “[l]’affermarsi di uno Stato Regulatore, e dunque l’incremento dell’attività regolativa pubblica, potrebero sembrare a prima vista correlati all’espansione delle politiche e degli apparati amministrativi dello Stato sociale, interventista, keynesiano.” Em verdade, a intervenção pública na economia através da “regolazione del mercato” não é uma novidade do Estado Regulador, mas este modelo estatal tende a priorizar o referido modo de intervenção pública, ao invés de enfatizar os outros dois tipos principais de intervenção do Estado Moderno na economia, que são a “redistribuzione del reddito” e a “stabilizzazione macroeconomica”. Assim como a regulação econômica também esteve presente no Estado Intervencionista, estas duas outras formas de política também se manifestam no Estado Regulador, mas apresentam uma importância relativa menor: “Uno Stato regolatore, intuitivamente, è uno Stato che svolge per lo piú un'attività regolativa, che si referirà di norma ad ambiti di attività svolte dai privati, di cui attraverso la regolazione vengono poste condizioni di funzionamento efficiente. Lo Stato regolatore serà altresì responsabile della valutazione dell'efficacia delle proprie misure, nonché della prevenzione di eventuali effetti indesiderabili su altre sfere sociali delle misure medesime.” (LA SPINA, Antonio; MAJONE, Giandomenico. Lo Sato regolatore. Bologna: Il Mulino, 2000, pp. 7-38).

29 ANDRADE, Carlos Drummond de. Fala, Amendoeira. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e

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abarca em seu interior subsistemas como o direito, a política, a economia, a ciência, a religião e a arte.

A resposta que a sociedade dará ao jurista pode não ser muito diversa daquela que o cronista ouviu da amendoeira em seu início de outono: “Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação da primavera e mesmo, se reparares bem [...], uma suspeita de inverno.”30

O Estado Regulador é como um ramo desta amendoeira em seu início de outono: carrega ainda as marcas de um “Estado Intervencionista” (“Social” ou “de Bem-Estar”), a antecipação de um “Estado Pós-Intervencionista” e a suspeita de, no fundo, representar uma espécie de retorno ao “Estado Liberal”, sob a alcunha de “Neoliberal”.

Embora apresente atributos que permitem a sua distinção em face dos modelos de Estado Liberal e de Estado Intervencionista, o Estado Regulador não rompe totalmente com determinadas características típicas dos referidos modelos estatais. O Estado Regulador se apresenta como uma espécie de “síntese superadora”, e não como uma pura e simples superação das características do Estado Liberal e do Estado Intervencionista.

Todas as observações e descrições, segundo Luhmann, devem encontrar sustentação em uma distinção. Afinal, para que algo seja designado, ressaltado ou tematizado precisará antes ser distinguido. Os conceitos, neste sentido, são resultados de distinções realizadas mediante noções contrárias em contraste31. Deste modo, o presente trabalho, sob o pretexto de apresentar as principais características do Estado Regulador, discorrerá também sobre os modelos de Estado que lhe precedem (Estado Liberal e Estado Intervencionista), propondo, assim, uma distinção a partir da ênfase conferida ou não às políticas voltadas para a intervenção no domínio econômico por meio da regulação econômica, conforme se verá no Capítulo 2.

30 ANDRADE, Carlos Drummond de. Fala, Amendoeira. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e

Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1979, pp. 1073-1074.

31 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México:

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Assim, a descrição aqui empreendida carrega o ônus de tentar “organizar” e “simplificar” o que se apresenta na sociedade como “desorganizado” e “complexo”, isto é, de buscar reduzir a complexidade do recorte da realidade social investigado, com o objetivo de compreendê-lo do melhor modo possível. Uma compreensão adequada do Estado contemporâneo poderá trazer importantes contribuições para a teoria e para a prática do direito, inclusive no que tange a uma importante comunicação do sistema do direito: a interpretação jurídica.

1.3 A seleção metodológica da interpretação jurídica

Em paralelo às transformações ocorridas no modelo estatal, o paradigma do direito codificado entra em esgotamento. A preocupação hermenêutica, que pressupõe o ideal do “legislador racional”, cede espaço, gradativamente, para a preocupação da justificação da decisão jurídica, da aplicação do direito e, em última análise, da argumentação jurídica. Do primado da lei, passa-se à centralidade da jurisdição e da administração; da ênfase no “legislador racional”, caminha-se para a busca do “administrador/julgador eficiente”.

Embora na literatura jurídica o tema da “teoria da interpretação” praticamente tenha sido substituído pelo da “teoria da argumentação jurídica”32, o presente trabalho, de certo modo, navega na contramão do seu tempo neste ponto. Não negamos aqui a importância da argumentação jurídica, mas, para atender aos fins a que nos propomos, desviamos o foco do trabalho para o problema da interpretação jurídica.

Apesar de os tribunais interpretarem de modo argumentativo, esta característica não acompanha todas as interpretações jurídicas produzidas na sociedade. Legisladores, agentes de regulação e contratantes, por exemplo, interpretam o direito vigente num sentido diferente, apenas com a finalidade de “circunscrever os limites do espaço criativo”, respectivamente, da lei, da regulação e do contrato, e não como fazem os tribunais, com o objetivo de “demonstrar a racionalidade de sua própria decisão”33.

32 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Prefácio de um Posfácio. In: FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. O

Direito, entre o futuro e o passado. São Paulo: Noeses, 2014, p. XI.

33 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México:

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Embora a dogmática jurídica, como “herança do pensamento jurídico” do século XIX, esteja preponderantemente ligada à aplicação do direito e, portanto, acentue a visão do juiz na compreensão dos problemas34, a nosso ver, atores sociais como advogados, contratantes, administradores e legisladores também desempenham importantes funções no sistema jurídico e, na atualidade, merecem uma maior atenção da dogmática jurídica e da teoria do direito. Daí a importância de ampliarmos a análise para a operação comunicativa da interpretação do direito, não nos restringindo apenas ao estudo da argumentação jurídica.

Ao lado da argumentação jurídica, a interpretação do direito também é uma das importantes operações do sistema jurídico. Por isso, é necessário desenvolver uma visão atualizada a respeito dela, o que pressupõe uma abordagem adequada da própria transformação da racionalidade jurídica vivida nas últimas décadas. Neste contexto, é útil apresentar as principais mudanças ocorridas nas observações e descrições do sistema jurídico que têm levado à discussão de um novo modelo de direito (“pragmático”, “flexível”, “brando”, “responsivo”, “dúctil”, “heterárquico”), o que será levado a cabo no Capítulo 3.

A interpretação jurídica no paradigma da codificação se valeu do recurso metodológico à ficção do legislador racional35. No entanto, esse recurso já se mostra claramente insuficiente, sobretudo diante do atual quadro jurídico-político, em que se verifica a passagem da centralidade da legislação à centralidade da jurisdição (em sentido amplo) dos tribunais judiciais, das câmaras arbitrais, das agências administrativas e dos órgãos da administração direta36.

Embora ainda integrem grande parte dos manuais de introdução ao estudo do direito, há uma descrença crescente em relação à capacidade de a adoção dos velhos

34 FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2015,

pp. 79-80.

35 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São

Paulo: Atlas, 2010, p. 247.

36 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Prefácio de um Posfácio. In: FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. O

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métodos ou cânones de interpretação (gramatical, lógica, sistemática, histórica, sociológica, teleológica etc.) oferecer um caminho seguro para a produção de decisões consistentes e socialmente adequadas37. Assume-se, ao invés disso, uma perspectiva “fático-intensiva” do direito, que recorre, por exemplo, a técnicas e análises econômicas, para solucionar questões jurídicas relacionadas a fatos econômicos. A racionalidade jurídica se abre, em grande medida, para o ambiente econômico do direito, mas por meio de um complexo processo de tradução ou reconstrução, mediante critérios operativos próprios do sistema jurídico38.

Se, de um lado, o direito ainda requer da hermenêutica uma função racionalizadora, de outro lado, a complexidade desta tarefa se elevou consideravelmente nas últimas décadas: à figura do legislador racional somou-se o ideal do administrador/julgador eficiente. Exigências nem sempre convergentes passam a guiar a atividade dos intérpretes do direito: segurança e eficiência, consistência jurídica e adequação social, autorreferência e heterorreferência, dogmaticidade e responsividade.

Diante do contexto contemporâneo de transformações dos modelos de Estado e de direito, o ideal do legislador racional precisa ser revisitado e, por fim, emparelhado com o ideal do administrador/julgador eficiente. Feito isso, as hipóteses do legislador racional e do administrador/julgador eficiente devem ser analisadas de forma crítica, para que seja possível compreender o potencial e o limite de cada um desses instrumentos retóricos que conferem racionalidade à fundamentação metodológica da interpretação jurídica.

O desenvolvimento de um modelo de Estado Regulador e de um novo modelo de direito é acompanhado de profundas mudanças na interpretação jurídica. A metamorfose desta operação social e a constatação da necessidade de reobservá-la e redescrevê-la, inclusive no plano de observação/descrição de uma dogmática jurídica responsiva, serão abordadas no Capítulo 4.

37 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do Direito e Movimentos Sociais. Rio de Janeiro:

Elsevier, 2012, pp. 123-124.

38 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Concorrência: entre o Direito e a Economia. In: MOTTA, Massimo;

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2. MODELO DO ESTADO REGULADOR

O Estado contemporâneo pode ser denominado de muitos modos. Uma das maneiras possíveis de apresentá-lo, sem dúvida, é por meio da expressão “Estado Regulador”. Trata-se, no âmbito do presente trabalho, de uma opção metodológica, que, deixando outros aspectos do Estado contemporâneo em segundo plano, permitirá uma análise mais detida de uma característica importante para a compreensão desta nova realidade estatal: a ênfase na intervenção estatal no domínio econômico através da regulação econômica.

Uma análise adequada dos atributos do Estado Regulador exige algumas reflexões acerca da arquitetura estatal que entra em desgaste nas últimas décadas do século XX e que pode ser denominada de Estado Intervencionista, Social ou de Bem-Estar. Em seu livro “Teoria Política no Estado de Bem-Estar”, Luhmann tece críticas à configuração do Estado Intervencionista. A descrição oferecida por Luhmann do subsistema político, nesta e em outras obras, ajuda a compreender o colapso do modelo estatal intervencionista e a reestruturação das suas atribuições. O Estado Regulador se organiza a partir de reformulações do Estado de Bem-Estar, cujas deficiências já eram apontadas por Luhmann no início da década de 1980.

Após analisar a descrição oferecida pela teoria dos sistemas sociais dos limites do sistema político e das deficiências do Estado Intervencionista, o presente Capítulo abordará as configurações do novo modelo estatal que se desenvolve a partir dos escombros do Estado Intervencionista. Por fim, o contexto da globalização em que essa nova forma de Estado se desenvolve será objeto de reflexões, com a finalidade de situar as transformações ocorridas na política em um complexo movimento de escala mundial.

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poder com o Estado. Mas antes de abordar as características e o contexto do novo modelo de Estado, faz-se necessário analisar, a partir de uma proposta luhmanniana de descrição dos limites da política, o esgotamento do modelo que lhe precedeu: o Estado Intervencionista.

2.1 Limites da política e esgotamento do Estado Intervencionista

O Estado Regulador pode ser apresentado sumariamente como uma espécie de “síntese superadora” dos Estados predecessores. Ele se apropria das aquisições evolutivas do sistema político, mantendo elementos desenvolvidos pelo Estado Liberal e pelo Estado Intervencionista, mas também apresenta as suas peculiaridades, que permitem uma distinção em face dos modelos estatais anteriores. Estes atributos distintivos se desenvolvem, em grande medida, como contrapontos ligados à difusão das críticas ao intervencionismo estatal.

O Estado Liberal surgiu como contraponto ao Estado absolutista, que centrava no corpo sagrado do monarca a política, a religião, o direito etc. Por isso, no Estado Liberal, os direitos burgueses de liberdade passaram a limitar o poder governamental39. Não apenas a atuação dos cidadãos mas também dos governantes passou a ser limitada pelas regras jurídicas. A limitação do poder se tornou a marca do Estado Moderno, que, por isso, passou a ser chamado de “Estado de Direito”40. A imposição do princípio da separação dos poderes surge neste contexto justamente como resposta à ideia de que o Estado absolutista teria sido governado mediante o uso arbitrário do poder monárquico41.

39 LUHMANN, Niklas. La religión de la sociedad. Tradução de Luciano Elizaincín. Madrid: Trotta, 2007,

pp. 189-190.

40 CHEVALLIER, Jacques. O Estado de Direito. Tradução de Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo e Augusto

Neves Dal Pozzo. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 52. O fenômeno histórico do “Estado de Direito”, consoante Ferraz Junior, “[...] está ligado ao aparecimento, no Ocidente, de sistemas funcionais, não voltados à segmentação conforme a lógica da inclusão/exclusão. Até o advento da Revolução Francesa era ainda possível perceber que os indivíduos se distribuíam socialmente conforme categorias estamentais do tipo nobre/burguês, cristão/pagão, varão/mulher etc., o que marcava sua inclusão (pode negociar, pode casar, pode apropriar) ou sua exclusão social (nacional, estrangeiro, plenamente capaz, incapaz etc.).” (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. São Paulo: Atlas, 2009, pp. 312-313).

41 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México:

Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, p. 139. O desenvolvimento do chamado “Estado de Direito”, segundo Nonet e Selznick, está historicamente vinculado ao surgimento de um “regime de direito

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Esse modelo liberal de Estado, que se situou historicamente no século XIX, era caracterizado pelas regras da não intervenção e da liberdade das atividades sociais. A atuação estatal era excepcional e residual, especialmente no campo econômico, deixando espaço para o livre curso da iniciativa privada42.

O modelo intervencionista de Estado, por sua vez, está situado historicamente no século XX e assume outra postura em relação à intervenção nas atividades sociais. Este modelo de Estado representa uma transformação profunda do Estado Liberal, sob a influência ideológica do socialismo. Embora conservando a sua adesão ao capitalismo, o Estado Intervencionista toma para si a tarefa de mitigar os conflitos sociais e pacificar a relação entre capital e trabalho43.

O Estado Intervencionista traz claras mudanças relacionadas à intervenção nos âmbitos econômico e social. O constitucionalismo social do século XX, capitaneado pela Constituição Mexicana (1917) e pela Constituição de Weimar (1919), é marcado pelo caráter diretivo dos textos constitucionais. As constituições deste período positivam tarefas, políticas e objetivos, exigindo atuações estatais no domínio econômico e social44.

No entanto, o desgaste vivido pelo Estado Intervencionista nas últimas décadas do século XX levou não apenas políticos mas também cientistas sociais, como Niklas Luhmann, a refletirem sobre a possibilidade de uma atuação mais modesta do Estado e da adoção de um conceito mais restrito de política. A teoria dos sistemas sociais desenvolvida por este sociólogo oferece uma rica descrição da sobrecarga de tarefas do Estado

repressão. Do ponto de vista histórico, pode-se creditar a esse fato a instalação do ‘estado de direito’ ou ‘império da lei’, expressões cujo significado vão além da mera existência do direito, pois dizem respeito a uma aspiração política e jurídica – a criação de ‘um governo das leis e não dos homens’. Nesse sentido, o estado de direito nasce quando as instituições judiciárias adquirem autoridade e independência suficientes para impor limites ao exercício do poder governamental.” (NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Direito e sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 99).

42 CHEVALLIER, Jacques. O Estado de Direito. Tradução de Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo e Augusto

Neves Dal Pozzo. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 51.

43 BONAVIDES, Paulo. DoEstado Liberal ao Estado Social. 9. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009,

pp. 183-185.

44 BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição

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Intervencionista, que levou à redefinição do papel estatal e, consequentemente, ao surgimento do modelo de Estado Regulador.

Partindo do pressuposto de que os subsistemas do sistema global da sociedade, como o direito, a economia e a política, são autônomos e diferenciados funcionalmente, bem como de que a sociedade é um sistema sem centro ou vértice, Luhmann defende que não se deve atribuir à política uma responsabilidade global pela sociedade – tampouco ao direito, à economia ou a qualquer dos demais subsistemas sociais45.

O direito e o dinheiro, segundo Luhmann, apresentariam claros sintomas de utilização excessiva no Estado Intervencionista. Esta sobrecarga conduziria a problemas como: excesso de leis, hiperjuridicação, problemas financeiros e expansão dos orçamentos públicos46. O Estado Intervencionista seria muito caro e promoveria tendências inflacionárias. Diante dos elevados gastos que requer, este Estado imporia questões relativas ao motivo de se gastar tanto dinheiro com algumas tarefas, mas não com outras igualmente (ou até mais) legítimas. O Estado Intervencionista tende também a propiciar uma grande quantidade de regulamentação, o que traria problemas de conhecimento e de aplicação das normas jurídicas, bem como questionamentos relativos aos limites do que seria possível realizar por meios jurídicos47.

O Estado capitalista, conforme Campilongo, sempre interveio na vida social, mas, a partir do século XX, essa intervenção atingiu patamares inimagináveis: o Estado passou a atuar diretamente em campos antes reservados à esfera privada, como a educação, o planejamento familiar e a iniciativa econômica. Perdeu-se, em grande medida, o sentido das clássicas dicotomias público e privado, Estado e indivíduo. O Estado passou a marcar

45 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín.

Madrid: Alianza Universidad, 2007, pp. 43-44.

46 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín.

Madrid: Alianza Universidad, 2007, pp. 153-154.

47 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín.

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presença na ordem econômica e tornou-se o “supremo regulador do processo de reprodução e acumulação capitalista”48.

O desenvolvimento do Estado Intervencionista, segundo a perspectiva luhmanniana, tenderia a uma inclusão crescente de temas e interesses como próprios da política49. Este Estado levaria a uma juridificação de muitos âmbitos da vida, sem atenção aos limites do que seria possível realizar por meios jurídicos50. No entanto, as possibilidades de intervenção da política seriam limitadas, não apenas por motivo de incapacidade, mas, também, em razão dos legítimos motivos do Estado Constitucional e da liberdade burguesa51.

A teoria política tem reiteradamente concebido o Estado ou a política como o centro de controle de tudo que se relaciona com o âmbito político. Recorre-se frequentemente, para tanto, ao conceito grego, platônico ou aristotélico, de política. Mas, conforme Luhmann, não seria possível conferir ao sistema político posição de centralidade em uma sociedade funcionalmente diferenciada sem destruí-la52.

Uma concepção restritiva da política, como a defendida por Luhmann, apenas vê neste subsistema social uma função dentre muitas outras e consegue tornar possível que se determine com maior precisão em que aspectos a economia, a educação, a ciência, a vida familiar etc. dependem dele. Os problemas que não podem ser resolvidos pelos instrumentos políticos devem ser solucionados pelos meios de outros subsistemas sociais53.

48 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Representação política e ordem jurídica: os dilemas da democracia

liberal. 1987. 147 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 1987, pp. 18-21.

49 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín.

Madrid: Alianza Universidad, 2007, p. 65.

50 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín.

Madrid: Alianza Universidad, 2007, pp. 106-107.

51 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín.

Madrid: Alianza Universidad, 2007, p. 148.

52 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín.

Madrid: Alianza Universidad, 2007, p. 44.

53 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín.

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A técnica moderna de comunicação política baseada na “difusão de boas intenções” é descrita com ironia por Luhmann, que afirma que seria bom recordar aos políticos que apenas os deuses são capazes de transformar a realidade através de palavras54. O discurso político tende a supervalorizar o potencial da política de fornecimento de prestações aos demais subsistemas sociais. Por isso é necessário observar com cautela as observações e descrições produzidas pelo sistema político acerca de si próprio. A teoria dos sistemas oferece uma observação de segunda ordem que permite que os paradoxos da comunicação política sejam trazidos à tona, através de uma descrição verossímil deste sistema.

A concepção restrita de política extraída da teoria dos sistemas de Luhmann pode ser adequadamente compreendida através da análise da função específica deste subsistema e das prestações que tem capacidade de fornecer aos demais subsistemas sociais.

A teoria dos sistemas, segundo Luhmann, não traz a pretensão de encontrar a “essência” da política, que autores têm apontado como sendo a “justiça”, a “paz”, o “bem comum” etc., mas, sim, de lançar luzes sobre a função específica da política. Pressupõe-se, assim, uma teoria da diferenciação estrutural da sociedade em subsistemas (sistemas parciais), que se orientam por funções específicas. Foi na sociologia política desenvolvida por Talcott Parsons que Luhmann encontrou uma teoria do sistema político com a pretensão de clarificar a função da política55.

A partir da teoria dos sistemas sociais de Luhmann, a função específica da política – isto é, a relação que este subsistema mantém com o sistema global da sociedade – pode ser descrita como o emprego da capacidade de impor decisões coletivamente vinculantes. Esta função pressupõe que se disponha do poder político e, em última instância, da força física. Mas a habitual discussão sobre o Estado de Bem-Estar, segundo Luhmann, teria perdido de vista este pressuposto indispensável que é capacidade de imposição efetiva56. A função específica do sistema político não está relacionada com toda a complexidade social,

54 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México:

Universidad Iberoamericana, 2006, p. 301.

55 LUHMANN, Niklas. Sociología política. Tradução de Iván Ortega Rodríguez. Madrid: Editorial Trotta,

2014, pp. 36-38.

56 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Tradução de Fernando Vallespín.

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