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Interpretação jurídica e legislador racional

4. HIPÓTESE DO ADMINISTRADOR/JULGADOR EFICIENTE

4.1 Interpretação jurídica e legislador racional

A figura do legislador racional surge como um dos importantes instrumentos da teoria jurídica que se desenvolve nos países da família romano-germânica, cujo caráter é eminentemente dogmático. A tradição jurídica brasileira está associada a esta família e a este modo dogmático de lidar com o conhecimento jurídico, razão pela qual uma tentativa de compreensão da interpretação jurídica produzida no Brasil exige reflexões orientadas para a tradição do direito codificado, da dogmática jurídica e do legislador racional.

Os juristas dos países que integram o chamado “direito continental europeu”, como a França, a Alemanha, a Itália e a Espanha, bem como da maior parte dos países latino- americanos, apresentam, historicamente, uma atitude formalista ante as normas jurídicas. Esses países contam com uma ampla codificação do direito, o que deu margem para que os juristas imputassem aos seus sistemas jurídicos, e às normas que os compõem, propriedades formais, que nem sempre possuem realmente: precisão, univocidade, coerência, completude etc. Como os juristas da denominada common law não tiveram historicamente códigos à sua disposição, não costumam prestar esta profissão de fé em face dos seus sistemas jurídicos, cuja maior parte das normas não é produto do ato de deliberação de um legislador, mas dos fundamentos das decisões judiciais, dos precedentes. Há nestes países, ao contrário daqueles do direito continental europeu e do direito latino-americano, uma tendência à atitude cética dos juristas diante das normas jurídicas194.

A teoria jurídica que se desenvolve atualmente nos países de tradição jurídica ligada à Europa Continental costuma ser chamada de “dogmática jurídica”. Esta teoria é típica dos países de predomínio do direito legislado e codificado, como é o caso do Brasil195. A configuração dessa concepção teórica foi fortemente influenciada pelos pressupostos e métodos do jusnaturalismo racionalista, cujos teóricos buscavam formular detalhados sistemas de direito natural, inferindo logicamente as normas de supostos

194 SANTIAGO NINO, Carlos. Introducción al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2003, p. 44.

195 SANTIAGO NINO, Carlos. Introducción al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2003, pp. 320-321.

axiomas autoevidentes para a razão humana196. Outra perspectiva teórica que influenciou consideravelmente esse tipo de teoria de caráter dogmático foi o formalismo jurídico, segundo o qual: i) o direito seria composto exclusiva ou preponderantemente por normas legislativas, e não consuetudinárias ou jurisprudenciais; ii) a ordem jurídica seria sempre completa (sem lacunas), consistente (sem contradições) e precisa (sem vaguezas ou ambiguidades)197.

A dogmática jurídica, consoante Santiago Nino, seria uma modalidade de ciência198 que se caracterizaria por certas atitudes ideológicas e ideais racionais acerca do direito positivo, pelas funções que cumpriria em relação a este direito e pelas técnicas de justificação de soluções que proporia. A primeira dessas características seria a adesão dogmática ao direito positivo, isto é, a atitude típica desta modalidade de ciência do direito seria a aceitação dogmática da força obrigatória do direito positivo. No entanto, apesar dessa atitude de adesão dogmática ao direito posto, a dogmática jurídica também cumpriria a importante função de reformular esse direito, precisando termos vagos, preenchendo lacunas, solucionando incoerências e ajustando as normas a determinados valores199.

A subtração à crítica dos pontos de partida arbitrários (“proibição da negação”, “não-negabilidade dos pontos de partida”) é normalmente considerada a característica mais importante da dogmática jurídica. No entanto, embora essa disciplina realmente abandone o postulado da investigação independente, o mais importante, consoante Luhmann, não seria esta limitação, mas as suas consequências: os “resultados de abstração” e as “liberdades de interpretação”. A dogmática tem a função positiva de permitir um nível adequado de flexibilidade na utilização de textos e experiências. Em verdade, a imunização

196 SANTIAGO NINO, Carlos. Introducción al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2003, p. 29.

197 SANTIAGO NINO, Carlos. Introducción al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2003, pp. 36-37.

198 Como já foi pontuado neste trabalho, embora seja comum tratar a ciência do direito como um saber de caráter dogmático (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2010, pp. 24-25), autores como Luhmann discordam das tentativas de identificação da dogmática jurídica com o sistema científico, situando este modo de sistematização e de conhecimento do material jurídico no interior do próprio sistema jurídico (LUHMANN, Niklas. Sistema

Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios

Constitucionales, 1983, pp. 20-21).

199 SANTIAGO NINO, Carlos. Introducción al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2003, pp. 321-326.

à crítica dos pontos de partida não indica em que consiste a dogmática jurídica, mas apenas do que depende a sua função. Esta função estaria ligada ao “aumento nas liberdades de

lidar com experiências e textos”, à “tomada de distância também e precisamente ali onde a sociedade espera vinculação”, ao “aumento das inseguranças suportáveis”. Este aumento

das inseguranças, no caso da dogmática jurídica (em oposição, por exemplo, à dogmática teológica), deve ser compatível com “duas exigências centrais do sistema jurídico: com a vinculação às normas jurídicas e com a necessidade de tomar uma decisão em caso de conflitos jurídicos.”200

A reformulação do direito positivo pela dogmática jurídica, assim como ocorre no caso da reformulação judicial deste direito, não é realizada de forma aberta, mas encoberta. Adota-se um aparato conceitual retoricamente efetivo, que faz com que as soluções originais propostas pareçam derivar de algum modo do próprio direito positivo. Com isso, o direito é ajustado a certos ideais racionais e axiológicos, uma vez que se transmite a sensação de que a segurança jurídica está sendo preservada, sob a crença de que as soluções propostas derivam, ao menos implicitamente, do direito positivo, sem modificá- lo201.

A atribuição ao legislador de determinadas propriedades racionais é uma das técnicas que permitem à dogmática jurídica reformular o direito positivo. O discurso jurídico trata do legislador racional como se este fosse: i) um único indivíduo que ditasse todas as normas do ordenamento jurídico; ii) dotado de uma vontade imperecível; iii) consciente das normas que edita; iv) operativo, como se ditasse normas que tivessem sempre alguma aplicabilidade; v) justo, como se imputasse as soluções axiologicamente mais adequadas; vi) munido de uma vontade coerente; vii) onicompreensivo, como se não

200 LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p. 27-31.

201 SANTIAGO NINO, Carlos. Introducción al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2003, pp. 326-327. Não se pode deixar de notar a estreita relação entre o desenvolvimento da dogmática jurídica como uma teoria autônoma e a neutralização do Poder Judiciário no século XIX, sob a égide da teoria clássica da divisão dos poderes, que, consoante Ferraz Junior, “irá garantir de certa forma uma progressiva separação entre Política e Direito, regulando a legitimidade da influência política na administração, que se torna totalmente aceitável no legislativo, parcialmente aceita no executivo e é fortemente neutralizada no judiciário, dentro dos quadros ideológicos do Estado de Direito.” (FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio.

deixasse situações jurídicas sem regulação; e viii) provido de uma vontade precisa/unívoca202.

Essas propriedades confirmam dois princípios fundamentais da hermenêutica dogmática: o da inegabilidade dos pontos de partida e o da proibição do non liquet. A figura do legislador racional está assentada na ideia de que deve haver um sentido básico ou um padrão mínimo de racionalidade do direito e de que não deve haver conflitos sem decisão203. Com isso, a hermenêutica possibilita uma espécie de domesticação ou neutralização dos conflitos sociais, projetando-os em uma dimensão harmoniosa, em que se tornam decidíveis: o mundo do legislador racional204.

Bourdieu é muito preciso ao afirmar que, quando se está no jogo jurídico, não se pode transgredir o direito sem reforçá-lo. A força específica do direito seria algo muito paradoxal, que, segundo o sociólogo, remontaria à teoria da magia, desenvolvida por Marcel Mauss. A magia apenas atua no campo da crença, em que os atores pensam que o jogo que jogam deve ser jogado205. A pressuposição da ficção do legislador racional, por exemplo, contribui para a criação de efeitos reais no discurso e na racionalidade jurídica: não se pode modificar interpretativamente o direito positivo sem reforçá-lo. Assim, a figura retórica do legislador racional tem sido uma das regras operativas importantes do jogo jurídico.

O legislador racional apresenta fortes semelhanças com a figura religiosa do Deus supremo. Ao descrever a religião, Luhmann aponta a figura de Deus como fórmula de contingência deste subsistema social. As auto-observações e autodescrições do sistema religioso encontram na figura de Deus o seu ponto de referência. As religiões monoteístas têm situado na pessoa de um Deus supremo o cumprimento dos atributos totais da transcendência, como a onipresença e a ausência de limites. Um observador externo

202 SANTIAGO NINO, Carlos. Introducción al análisis del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 2003, pp. 328-329.

203 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2010, p. 246.

204 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2010, p. 284.

205 BOURDIEU, Pierre. Los juristas, guardianes de la hipocresía colectiva. Tradução de J. R. Capella. Jueces

(observador de segunda ordem) pode ver que a função desta fórmula de contingência é a construção da transcendência como pessoa, como observador206.

A doutrina da criação contínua explicita o alcance dos dogmas da onisciência e onipotência do Deus observador. A subsistência do mundo em todos os seus detalhes e momentos, segundo essa doutrina, depende da observação de Deus207. A doutrina da criação contínua do mundo apresenta aspectos que permitem uma associação com a doutrina da criação contínua do ordenamento jurídico pela figura onisciente e onipotente do legislador racional. Assim como o Deus supremo, para o sistema religioso, apresentaria os atributos totais da transcendência, o legislador racional, para o sistema jurídico, apresentaria os atributos totais da justiça.

A comparação com o sistema religioso pode ajudar a compreender como funciona a fórmula de contingência do sistema jurídico. Luhmann não identifica no ideal do legislador racional a fórmula de contingência do direito, mas na noção de justiça. A justiça prescreve que os casos sejam decididos de modo consistente com a dupla exigência de tratar de maneira igual os casos iguais e de maneira desigual os casos desiguais. Esta fórmula de contingência oferece o esquema de observação igual/desigual, que permite que se busquem pontos de vista comparativos no sistema jurídico, ainda que não determine como é possível encontrá-los208.

O sistema jurídico tende à orientação segundo decisões precedentes, isto é, à repetição. Mas há mecanismos de correção para essa tendência, como a mudança no fundamento de validade das decisões (leis e contratos). No entanto, esses mecanismos dependem de pressupostos incertos sobre um futuro incerto, razão pela qual se faz necessário que haja um modo de correção de maior alcance na tendência à repetição do direito, encontrado justamente na fórmula de contingência justiça. Através do esquema

206 LUHMANN, Niklas. La religión de la sociedad. Tradução de Luciano Elizaincín. Madrid: Trotta, 2007, pp. 129-138.

207 LUHMANN, Niklas. La religión de la sociedad. Tradução de Luciano Elizaincín. Madrid: Trotta, 2007, pp. 140-141.

208 LUHMANN, Niklas. La religión de la sociedad. Tradução de Luciano Elizaincín. Madrid: Trotta, 2007, p. 131.

igual/desigual, os casos concretos são situados no contexto dos casos já ocorridos, o que permite a verificação da consistência das mudanças do direito209.

Essa noção de justiça pressupõe que todas as decisões jurídicas têm que situar a si próprias no contexto de outras decisões, observando como o direito é observado por outros observadores. A justiça passa a ser vista como uma observação de segunda ordem produzida, sobretudo, pelos tribunais, que observam as observações de outros atores210.

A decisão de casos no interior do sistema jurídico passa inevitavelmente pela interpretação. O ponto de referência desta operação comunicativa é a busca de solução justa para os casos. A interpretação permite que se prove a consistência de uma resolução de conflito ao examinar qual a compreensão de uma norma que cabe no contexto de outras normas. Assim, a interpretação jurídica serve de apoio para a evolução do direito211.

O recurso ao legislador racional é o modo como o sistema jurídico consegue promover, por meio da interpretação jurídica, a mudança no direito. O legislador racional, nos países de tradição romano-germânica, representa, em grande medida, a própria memória do sistema jurídico. A referência ao legislador racional permite que as mudanças promovidas pelos tribunais e demais aplicadores do direito façam referência à consistência da decisão. Assim, um dos modos tradicionais de recorrer à fórmula de contingência

209 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 298-299.

210 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 298-299. A participação de advogados, administradores e legisladores neste processo é compreendida tradicionalmente pela dogmática jurídica como sendo meramente auxiliar ao trabalho dos juízes (FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2015, pp. 79-80). A partir da teoria dos sistemas de Luhmann, pode-se afirmar que os tribunais funcionam como o centro do sistema jurídico, enquanto as demais atividades não judiciais deste sistema (como aquelas de advogados, administradores, legisladores e contratantes) operam na periferia deste sistema. Os tribunais estão diretamente submetidos à obrigatoriedade de decidir todos os casos que surgem (proibição da denegação de justiça) e possuem a tarefa de supervisionar a consistência das decisões jurídicas (leis, contratos, decisões judiciais). Já os legisladores, contratantes, administradores, advogados etc. não têm a obrigação de decidir, mas possuem o importante papel de permitir o contato do direito com outros sistemas, fornecendo-lhe irritações ambientais (LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 372-389). Como será abordado na Seção 4.2 deste Capítulo, esse contato do sistema jurídico com o seu ambiente também é fundamental para a tarefa de busca da justiça, razão pela qual, a nosso ver, merece receber maior atenção da dogmática jurídica e da teoria do direito.

211 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, p. 340.

justiça, ao menos nos países de tradição romano-germânica, pode ser identificado no apelo à figura do legislador racional.

A hipótese do legislador racional, implícita na atividade hermenêutica, serve historicamente a uma ideologia estática, a uma visão de mundo que valoriza a certeza, a segurança, a previsibilidade e a estabilidade normativa. No entanto, esta mesma figura pode servir a uma ideologia dinâmica, favorecendo uma visão de mundo que não perca de vista a adaptação das normas212. Caso sirva a uma ideologia dinâmica, a figura do legislador racional favorecerá a justiça, não apenas enquanto privilégio dos aspectos mais formais do sistema jurídico (isto é, da consistência jurídica), mas também enquanto busca da adequação à complexidade social.

Evidentemente, o modelo dogmático do legislador racional é fictício (“heróico”, “divino”, “mitológico”). Mas, através da pressuposição dessa figura retórica, os juristas conseguem, com base em uma ideologia dinâmica, conciliar, em suas interpretações, a consistência jurídica e a adequação à complexidade social, isto é, preencher lacunas, eliminar contradições, precisar termos indeterminados ou vagos, sem que com isso deixem de produzir comunicação jurídica, com base no código binário do sistema jurídico (conforme ao direito/não conforme ao direito), estabilizando as expectativas normativas.

A noção de legislador racional caracterizou-se, ao longo da história, pelo reforço ideológico da primazia do Poder Legislativo. É inegável a importância dos textos jurídicos produzidos por esta instância de poder estatal para o direito e a interpretação jurídica. No entanto, conforme abordado nos Capítulos anteriores deste trabalho, as profundas transformações nos modelos de Estado e de direito permitem que se questione a suficiência de um enfoque tão centrado na figura do Poder Legislativo.

A interpretação jurídica deixou de ser pensada apenas como uma reconexão com a unidade codificadora do legislador racional. Há uma forte tendência contemporânea no sentido de se buscar na interpretação jurídica algo mais do que a vontade da lei ou do

212 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. O Direito, entre o futuro e o passado. São Paulo: Noeses, 2014, pp. 138-139.

legislador. A referência ao administrador e ao julgador passa, gradativamente, a fazer mais parte do discurso jurídico sobre a interpretação do direito.

A interpretação do direito carrega a peculiaridade de ser orientada a uma finalidade prática, que transcende a mera compreensão de textos. O teórico ou prático do direito que interpreta busca não apenas estabelecer o sentido dos textos normativos, mas também determinar a sua força e alcance, confrontando-os com os dados de um problema atual ou potencial. A interpretação jurídica tem a finalidade de decidir conflitos213.

Os problemas de interpretação jurídica já não se limitam à solução de possíveis lacunas, contradições e ambiguidades da legislação. Como aponta Luhmann, a interpretação é responsável não apenas pelas partes pouco claras, mas pela totalidade do direito. Todo o direito escrito pode ser interpretado214.

Isso não significa que a hermenêutica jurídica perca o seu caráter dogmático, pois continua partindo do dogma da norma positiva. No entanto, este ponto de partida pode ser questionado não apenas do ponto de vista da sua justiça, mas também de outros ângulos, como o da sua efetividade. Ao mesmo tempo em que há pontos de partida inegáveis para a atividade interpretativa do direito, não deixa de existir também certa margem de liberdade na apreciação dos dogmas jurídicos215.

A dogmática jurídica de estilo hermenêutico, segundo Ferraz Junior, ao contrário da dogmática jurídica de estilo analítico, volta-se para as expectativas sociais em conflito e busca os critérios de decisão não apenas nas premissas inegáveis, mas também nas consequências da ação. Esta orientação para as consequências, que reflete um caráter dominante do direito contemporâneo, representa “uma orientação para o futuro ainda incerto”216.

213 FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 73-74. 214 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, p. 318.

215 FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006, pp. 72-73. 216 FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2015, pp. 140-143.

Desde o advento do Estado Intervencionista, a atividade jurisdicional deixa de ser voltada apenas para o julgamento e a responsabilização de pessoas, pelo que fizeram no passado, e passa também a avaliá-las e julgá-las prospectivamente, projetando o sentido do direito para o futuro. A eficiência dos resultados e a elevada probabilidade da sua realização se tornam os valores máximos das fórmulas de governo da “sociedade tecnológica”217.

A justificação das decisões jurídicas passa a depender, em última análise, das consequências, e não apenas do acervo de dados normativos ou fáticos. A orientação social básica deixa de ser centrada apenas no passado, voltando-se agora também para o futuro218. O direito, no contexto do Estado contemporâneo, passa a ter o seu quadro de projeção de sentido direcionado “para a sua realizabilidade mais do que para a sua consistência pré-constituída”219. Isso permite que se cogite a possibilidade de se estar desenvolvendo no interior do sistema jurídico uma espécie de mudança na fórmula de contingência justiça, que tradicionalmente tem sido associada à diferença igualdade/desigualdade (orientada para o passado, para a redundância). Esta mudança no ponto de referência do sistema jurídico pode estar ligada ao apelo à diferença eficiência/ineficiência (orientada para o futuro, para a variação). Ao invés de servir como

217 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Prólogo. In: FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Argumentação