• Nenhum resultado encontrado

3. NOVO MODELO DE DIREITO

3.2 Novos aspectos do direito

O esgotamento da racionalidade jurídica formal ensejou uma reformulação do modelo tradicional de direito. O novo modelo de direito que se desenvolve traz características muito diferentes daquelas do modelo liberal. Embora as transformações no direito contemporâneo ainda estejam em curso, já há mudanças significativas no modo de entender e produzir o direito, que justificam a proposta de investigação deste trabalho, preocupada com os reflexos da metamorfose do direito na interpretação jurídica.

Ainda que não se entendam as recentes transformações do direito como uma ruptura total com o modelo da racionalidade jurídica formal, não se pode deixar de notar que há indícios do surgimento de uma nova racionalidade jurídica. O novo modelo de direito tende a ser caracterizado como “pragmático”, “flexível”, “brando”, “responsivo”, “dúctil”, “heterárquico” etc. Ademais, descreve-se a passagem de um “modelo piramidal” de direito a um modelo de “direito em rede”158.

A partir do final da década de 1970, os ataques à regulamentação herdada do Estado Intervencionista tornaram-se frequentes. Mas as políticas de desregulamentação tiveram impacto limitado em face à expansão do direito. Em verdade, a “juridicização” crescente de diversos domínios da vida social, caracterizada pela inflação normativa,

158 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 124-125.

passou a conviver com uma transformação do conteúdo do direito, que se hipersubjetivizou159.

A concepção “monista” e “monológica” do direito, que via no Estado o único gerador da normatividade jurídica, é substituída por uma perspectiva “pluralista” e “dialógica”, já que a regulação jurídica passa por diversos atores e por diversos espaços, sem a coordenação do princípio da hierarquia e sem repousar na transitividade. A dinâmica da globalização requer um direito “global” e “extraestatal”, construído, em grande medida, pela iniciativa dos operadores econômicos, pelos usos do comércio internacional, pelo recurso à arbitragem para a composição de lides, pelas padronizações técnicas, pelas cartas éticas das empresas (“autorregulação”), pelos códigos de conduta emitidos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE – e pela Organização Internacional do Trabalho – OIT – (“corregulação”). A associação entre o direito supraestatal e o direito extraestatal produz uma espécie de “colapso do direito estatal”. Outros modos de regulação e outras ordens jurídicas suprem e suplantam o direito estatal, que também passa a ser substituído através da delegação de competências regulatórias. Além de um direito extraestatal e de um direito supraestatal, desenvolve-se um direito infraestatal, a partir da produção de regulação jurídica de origem privada ou de autoridades estatais locais e independentes160.

A emergência de fontes múltiplas de produção jurídica e a substituição de uma lógica vertical por uma lógica horizontal não implicam o fim do princípio da ordem e a instauração do completo caos. Embora diferentes níveis de regulação (local, estatal e global) coexistam, o pluralismo emergente é ordenado, sobretudo por meio de “mecanismos difusos de ajustamento”, como a consolidação de “princípios comuns”, a pressão de instituições financeiras pela “good governance”, a expansão do modelo de direito anglo-saxão e do fenômeno da “hibridação”, a concorrência dos sistemas jurídicos e a imposição e difusão das “soluções mais eficazes para enfrentar os problemas”161.

159 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 125-144.

160 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 144-154.

161 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 154-160.

O novo modelo de direito é “pragmático”162, pois é direcionado à preocupação com a eficácia e, consequentemente, com a substituição da rigidez e da estabilidade da concepção tradicional da normatividade pela flexibilidade, adaptabilidade e ductilidade. O direito pragmático é marcado pela expansão do procedimento contratual, “fundado sobre o diálogo e a procura do consenso”, e da cultura de negociação, baseada na consulta dos grupos de interesse e na participação dos cidadãos. Este direito não recorre mais apenas aos comandos jurídicos tradicionais, marcados pela coercitividade e pela unilateralidade, mas também a técnicas mais brandas (“soft law”), que apenas indicam objetivos, diretivas, recomendações, requerendo a adesão dos destinatários. O direito brando é inevitavelmente impreciso, pois recorre a termos vagos e a princípios ou “standards”. Trata-se de um direito flexível e, por isso mesmo, incerto163.

O “soft law” ou “direito brando” é entendido como uma forma de direito que, embora implique algumas obrigações e compromissos, não é acompanhada do elemento sancionador. Ademais, este direito orienta-se pela busca de efeitos práticos e pela suposição da capacidade de produção de resultados. O direito passa a ser pensado primeiramente como função, resultado, efetividade, capacidade de assegurar determinadas prestações, e não como estrutura, formulação normativa, articulação coerente de normas em um tecido unitário164.

162 A partir de uma perspectiva semiótica da interpretação jurídica, consoante Neves, é possível observar no Estado Democrático de Direito atual “uma tendência no sentido de enfatizar cada vez mais a dimensão pragmática, após a ênfase dada às dimensões sintática e semântica.” (NEVES, Marcelo. Entre Têmis e

Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas.

Tradução do autor. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 196).

163 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 160-170. Diante deste quadro, surgem propostas teóricas que associam o direito à imagem da “ductilidade”. A coexistência de valores e princípios (pluralismo) e o compromisso (em oposição à imposição pela força) seriam as características típicas da chamada “ductilidade constitucional”. A partir de perspectivas teóricas como estas, a dogmática constitucional poderia ser associada à ideia de uma “dogmática jurídica líquida ou fluida”: La dogmatica constitucional debe ser como el líquido donde las sustancias que se vierten – los conceptos – mantienen su individualidad y coexisten sin choques destructivos, aunque con ciertos movimientos de oscilación, y, en todo caso, sin que jamás un solo componente pueda imponerse o eliminar a los demás. […] El único contenido solido que la ciencia de una Constitución pluralista debería defender rigurosa y decididamente contra las agresiones de sus enemigos es el de la pluralidad de valores y principios. El único valor simple es el de la atemperación necesaria y el único contenido constitucional que no se presta a ser integrado en otros más comprensivos y que, por consiguiente, puede asumir la dureza de un concepto constitucional combatiente es el de necesaria coexistencia de los contenidos.” (ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos e justicia. 7. ed. Trad. Marina Gascón. Madrid: Trotta, 2007, pp. 14-18).

Ainda no contexto do Estado Intervencionista, Bobbio já constatava que, ao lado da imagem tradicional do direito protetor-repressivo (que poderíamos chamar de “hard law”), surgia uma nova imagem: a do direito promocional. Enquanto o primeiro modelo de direito estaria centrado nos comportamentos socialmente indesejados e no impedimento da sua prática, o segundo se voltaria aos comportamentos desejáveis e à sua realização165. O advento da discussão acerca da função promocional do direito levaria à percepção de que o direito é responsável pela “organização social” não apenas do poder coativo, do uso da força (“função repressivo-protetiva”), mas também do poder econômico (“função promocional”). O ordenamento jurídico, por um lado, teria a função tradicional de controlar os comportamentos dos indivíduos, por meio de técnicas como a das sanções negativas (“ordenamento coativo”), por outro lado, teria a função de direcionar os comportamentos no sentido de determinados objetivos, mediante técnicas como a das sanções positivas e a dos incentivos (“ordenamento diretivo”)166.

Como apontado no Capítulo 2 deste trabalho, a noção de “direito da regulação”, que tem sido utilizada para sintetizar as novas características adquiridas contemporaneamente pelo direito, está ligada à interação entre atores políticos e econômicos. Trata-se de um direito que se desenvolve em um contexto de diluição das fronteiras entre Estados e mercados e de emergência de comunidades de regulação, compostas por atores governamentais e não-governamentais, que compartilham a autoridade de tomar decisões. Novas formas de regulação jurídica se desenvolvem para atender às demandas geradas pelas mudanças no relacionamento “Estado-mercado” (ou seja, na relação “política-economia”), revertendo, assim, as fronteiras do Estado Intervencionista. Desenvolvem-se várias formas de “desregulação” do Estado Intervencionista, abrindo-se espaço para uma nova regulação estatal, não associada ao incentivo de dispêndios públicos, mas às agências reguladoras independentes e à preocupação com a conformidade do exercício de poderes públicos com a racionalidade de

165 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. Barueri, SP: Manole, 2007, pp. 13-15.

166 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. Barueri, SP: Manole, 2007, pp. 75-79.

mercado, expressa pelos princípios da eficiência, efetividade e economicidade167. Assim, em paralelo ao desenvolvimento de um Estado Regulador, o direito sofre profundas transformações na contemporaneidade.

Este novo direito pode ser caracterizado também como um “direito responsivo”. Há o surgimento de uma espécie de direito de caráter “responsivo”, que assume o risco e a necessidade da promoção de adaptações responsáveis. Conforme Nonet e Selznick, “[u]ma instituição responsiva conserva a capacidade de compreender o que é essencial à sua integridade e ao mesmo tempo leva em consideração as novas forças do ambiente social”. O direito responsivo tem como base a sustentação mútua entre “integridade”/“fechamento” e “adaptação”/“abertura”, mesmo quando conflitantes. As pressões sociais servem como fontes de conhecimento e oportunidades de autocorreção deste direito, o que deixa claro que a transição para o sistema jurídico responsivo é uma estratégia evolutiva que pode ser considerada de “alto risco”168.

O “ideal maior” do direito responsivo continua sendo o da legalidade, mas despido de “formalismos” e voltado para a “justiça substancial”. Neste contexto, surge a regulação como uma função paradigmática deste direito, enquanto processo de elaboração e correção de “políticas necessárias à concretização de uma finalidade jurídica”, isto é, como “um mecanismo de clarificação do interesse público”169.

Embora as linhas arquitetônicas do novo modelo de direito ainda estejam em processo de consolidação ou mesmo de gestação, já é possível apontar para alguns dos seus contornos. Muitas das suas características estão associadas aos atributos do novo modelo de Estado que tem se desenvolvido nas últimas décadas. Trata-se de um modelo de direito “heterárquico”: “em cujo âmbito não há vértice nem centro, motivo pelo qual ninguém tem condição de pretender ser o gestor único e exclusivo de toda a sociedade”. A ordem

167 LANGE, Bettina. Regulatory spaces and interactions: an introduction. Social & Legal Studies, v. 12, n. 4, p. 411-423, dez. 2003, pp. 412-413.

168 NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Direito e sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010, pp. 124-127.

169 NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Direito e sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010, pp. 163-165. A noção de “responsividade” desenvolvida por Nonet e Selznick será retomada no Capítulo 4 deste trabalho, quando abordarmos a hipótese do administrador/julgador eficiente e a necessidade do desenvolvimento de uma dogmática jurídica responsiva.

jurídica “heterárquica” é caracterizada por decisões que “tendem a se desdobrar numa pluralidade seqüencial de outras decisões decorrentes das primeiras ou atreladas a elas, conforme o curso dos acontecimentos”. O modelo se destaca por suas feições pluralistas: a produção normativa se dá, cada vez mais, através de decisões não-governamentais e de instâncias não-legislativas. Surgem espécies de “redes de legalidade justapostas ou paralelas”170.

Este novo modelo de direito está diretamente ligado à emergência de uma governança global, analisada no Capítulo 2 desta dissertação. A característica heterárquica da chamada “governança de rede” gera a desestabilização da hierarquia normativa tradicional. O surgimento de diversas formas de direito infranacional e supranacional cria interações complexas por meio de uma variedade de instâncias regulatórias e adjudicatórias, em diferentes níveis. Essa “característica caleidoscópica” traz consigo a dificuldade de se estabelecer a coerência de um direito que se produz, ao mesmo tempo, em competição e em coordenação. Outra característica típica desta governança é a confusão ou a diluição dos limites entre as diferentes categorias de normas, especialmente entre o “hard law” e o “soft law” e entre o direito público e o direito privado. A emergência da regulação leva a uma mistura dessas formas de direito. Esta governança multinível está associada, ainda, à fragmentação e à tecnicização das funções estatais171.

A regulação jurídica da sociedade já não compete apenas ao Estado. O Estado Regulador convive com diversos outros centros de decisão e de produção de regulação jurídica, “que se encontram acima, abaixo, e até além ou à margem do Estado”172. O pluralismo jurídico é um elemento importante para a compreensão deste Estado, que vê surgir formas alternativas ou informais de solução de conflitos. Trata-se do desenvolvimento progressivo de uma regulação jurídica à margem do direito oficial173. Os outros atores e as outras formas de regulação estão “em uma relação de complementaridade, de imbricação, mesmo de substituição com a regulação estatal”. A

170 FARIA, José Eduardo. Sociologia jurídica: direito e conjuntura. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 7.

171 PICCIOTTO, Sol. Law and legitimacy in multi-level governance. Centre for Globalisation &

Regionalisation, University of Warwick, Maio 2007, pp. 4-5.

172 ARNAUD, André-Jean. Governar sem fronteiras – entre globalização e pós-globalização. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 145.

173 ARNAUD, André-Jean. From Limited Realism to Plural Law. Normative Approach versus Cultural Perspective. Ratio Juris, v. 11, n. 3, September, pp. 246-258, 1998, p. 252.

autorregulação, fundada na auto-organização e na autodisciplina dos grupos profissionais, e a corregulação, baseada na intervenção conjunta de atores públicos e privados, convivem com a regulação estatal174.

Essas transformações explicitam que a validade jurídica apresenta uma forma assimétrica, que apenas pode ser descrita mediante o recurso à ideia de círculo. Consoante Luhmann, a validade jurídica é o símbolo da unidade do direito e as decisões jurídicas aplicáveis transportam-na, sejam elas decisões de legisladores ou tribunais, sejam elas conformações de corporações ou produções de contratos, que também são responsáveis por modificações de situações jurídicas. A realização recursiva das operações próprias do sistema jurídico resulta neste valor distintivo do direito, que não pode ser utilizado em outros âmbitos da sociedade. A validade é um símbolo que circula no interior do sistema jurídico e que não pode ser adequadamente descrito por meio das teorias clássicas da hierarquia da validade. As ideias de “hierarquia” e de “norma superior”, que eram mobilizadas para oferecer uma fundamentação normativa para a validade, são substituídas pela noção de tempo, já que a única prova da validade se encontra na própria modificação do estado de validade do sistema, na permanente produção de operações do sistema jurídico com base nas próprias operações deste sistema, ou seja, na autopoiese do direito. A busca pela fundamentação normativa da validade apenas resultaria no regresso ao infinito, já que a única base para a validade está na noção de tempo175.

O novo modelo de direito que se desenvolve no final do século XX e no início do século XXI é compatível com a descrição da teoria dos sistemas, segundo a qual, o direito não estaria determinado “hierarquicamente”, mas sim “heterarquicamente”, isto é, através de uma “autoafirmação circular”: em forma colateral e em forma de redes. O principal processo do sistema de organização das decisões do sistema jurídico, por exemplo, está na “reprodução circular e recursiva das decisões jurídicas”, e não na descrição que este sistema tradicionalmente faz de si mesmo como hierarquia de órgãos ou de normas176.

174 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 73.

175 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 154-167.

176 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 200-207.

Diante deste complexo quadro de transformações no Estado e no direito, não se pode negar que ocorreram também profundas mudanças no modo de interpretar o direito. Mas, antes de abordar os principais aspectos da metamorfose desta operação comunicativa na contemporaneidade, o que será levado a cabo no Capítulo 4 deste trabalho, cumpre-nos investigar como as novas facetas do direito se manifestam no Brasil, inclusive para exemplificar melhor as mudanças na política e no direito descritas por este trabalho.