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4. HIPÓTESE DO ADMINISTRADOR/JULGADOR EFICIENTE

4.2 Interpretação jurídica e administrador/julgador eficiente

4.2.2 Dogmática jurídica responsiva

As transformações operadas na sociedade contemporânea e descritas ao longo deste trabalho conduzem à conclusão de que há uma progressiva difusão no mundo de alguns aspectos da cultura jurídica norte-americana, que tem se destacado pela sua responsividade. No entanto, não nos parece que a importação destas características por países da tradição romano-germânica esteja conduzindo (ou deva conduzir) à perda do caráter eminentemente dogmático do saber jurídico neles produzido. Por isso, entendemos que se deve pensar na possibilidade do desenvolvimento de uma espécie de dogmática jurídica responsiva, capaz de conciliar dogmaticidade e responsividade, fechamento operacional e abertura cognitiva.

Uma dogmática jurídica responsiva poderá aliar: i) a preocupação com a aderência da interpretação à consistência jurídica (referência ao legislador racional e à estabilidade);

e ii) a busca da adequação da interpretação jurídica à complexidade social (referência ao administrador/julgador eficiente e à flexibilidade)281. Esta dogmática jurídica tem o potencial de responder satisfatoriamente às exigências sociais a que o direito se destina, permitindo que o sistema jurídico se autodescreva como justo.

A fórmula de contingência “justiça”, já mencionada na Seção 4.1 deste Capítulo, pode ser definida, a partir da teoria dos sistemas de Luhmann, como “complexidade adequada do decidir consistente”282. Consoante Teubner, o aspecto decisivo desta noção de justiça não seria simplesmente a “consistência interna”, a “consistência conceitual”, a “consistência das decisões”, a “consistência formal” ou a “consistência dogmática”, mas “a

adequação social em sua relação com a consistência interna”. A fórmula de contingência

justiça “opera na fronteira entre o Direito e seu ambiente externo e se dirige simultaneamente à variabilidade histórica da justiça e à sua dependência do ambiente.”283

281 Os intérpretes do direito, consoante Aarnio, são constantemente desafiados a alcançar um equilíbrio entre dois objetivos que apontam para direções opostas: “Por una parte, tienen que respetar la estabilidad y, por otra, tienen que procurar la flexibilidad requerida por las circunstancias. El primero de estos objetivos sirve a la continuidad, a la igualdad formal de los ciudadanos ante la ley, y permite que las relaciones sociales puedan ser anticipadas. Por otra parte, en la actualidad, la sociedad cambia aceleradamente. Si el derecho no se ajusta a su ritmo, actúa como un freno del desarrollo. Cuanto más rápido es el cambio, tanta mayor es la flexibilidad que se re quiere del sistema jurídico. Esta responsabilidad pesa sobre quienes tienen a su cargo la adaptación de la ley a las nuevas circunstancias y sobre la ciencia del derecho, que aclara los contenidos del sistema jurídico. La maquinaria legislativa es demasiado pesada y lenta como para poder responder con la suficiente celeridad a cada pedido de reforma. Por ello surge la tensión entre las normas y la realidad social existente. Sólo si se deja de lado la letra de la ley es posible reducir esta tensión. Es decir: interpretando las regulaciones jurídicas. En ello reside la tarea de adaptar - e investigar - el derecho, creándolo y desarrollándolo. Los artículos de una ley son como una banda de goma. El intérprete los estira o ajusta según las circunstancias.” (AARNIO, Auilis. Lo racional como razonable – Un tratado sobre la justificación jurídica. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, pp. 32- 33).

282 Atualmente, segundo Luhmann, a justiça apenas pode ser concebida “[...] como expresión para la complejidad adecuada del sistema jurídico, concretamente como mandato de aumentar la complejidad, siempre y cuando esto sea compaginable con el decidir consistente. Tal regla a su vez altera el punto de partida para la cuestión de los conceptos justos, de justas teorías y soluciones dogmáticas de problemas, de una dogmática justa.” (LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p. 42). Como esclarece Teubner, esta fórmula de contingência não é “um princípio interno ou externo ao Direito”, mas “uma auto-observação da unidade do Direito com base em seus programas, [...] um auto-controle jurídico, que, através da [...] ‘máquina histórica’ do Direito, encontra-se nas infinitas práticas dos tratamentos iguais ou desiguais.” (TEUBNER, Gunther. Justiça autosubversiva: fórmula de contingência ou de transcendência do Direito?

Revista Eletrônica do Curso de Direito – PUC Minas Serro, Belo Horizonte, n. 4, p. 17-54, out. 2011.

Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/DireitoSerro/article/view/2259>. Acesso em: 20 dez. 2015, p. 27).

283 A fórmula de contingência do direito, consoante Teubner, une consistência interna e responsividade em relação ao ambiente: “A intenção da justiça se dirige, não à maximização da consistência dogmática, mas a responder-se sensivelmente às mais divergentes demandas vindas de fora e, assim, a buscar-se a máxima consistência possível. A fórmula de contingência não se dirige a uma justiça imanente ao Direito, mas a uma

Mas essa adequação do sistema jurídico ao seu ambiente (isto é, à sociedade, aos homens e à natureza) ocorre dentro do próprio direito, e não em “um passeio do Direito pelo mundo exterior”, pois o sistema jurídico “está preso nas correntes de suas operações auto-referenciais, que decidem sobre a igualdade/desigualdade de casos individuais”.284

A justiça, “enquanto uma práxis de auto-observação dentro do Direito”, “apenas lida com ficções sobre o mundo exterior” e as trata “como se elas fossem realidades”. As demandas externas passam por um processo de “construção jurídica interna”: “a justiça dos modernos media, de um modo horizontal-heterárquico, a normatividade própria do Direito e a normatividade própria de seus ambientes social, humano e natural.” O direito moderno “busca seus critérios da justiça em seus ambientes, em diferentes discursos da sociedade, no discurso pedagógico, científico, médico, político ou econômico, e contribui, por meio de um processo complicado de reconstrução jurídica, para a fixação de sua validez jurídica.” Essa noção de justiça, por um lado, busca “a justiça em uma orientação vinda do mundo exterior ao Direito”, no que se assemelha ao “jusnaturalismo”, por outro lado, não encontra a origem da justiça em emanações de autoridades externas (Deus, natureza ou razão natural), mas apenas no interior do próprio direito, aproximando-se, neste ponto, do “juspositivismo”. Em verdade, a distinção “jusnaturalismo”/“juspositivismo” perde o sentido diante dessa concepção de justiça:

A virada contra o direito natural consiste no fato de que autoridades externas não podem oferecer quaisquer critérios substanciais da justiça. A virada contra o positivismo, porém, consiste no fato de que a justiça não pode ser produzida a partir da mera recursão a decisões judiciais. O contrário é o caso: a justiça sabota as decisões jurídicas. Em oposição ao desejo do Direito pela certeza nas decisões, a justiça jurídica, como uma praxis discursiva, abre um novo espaço de incerteza e de indeterminação do Direito. A justiça mina a rotina da recursão a decisões judiciais e questiona insistentemente se, à luz das demandas externas dirigidas ao Direito, uma lide não deve ser decidida de outro modo. A justiça atua internamente ao Direito como uma força subversiva, com a qual o Direito justiça transcendente do Direito. Consistência interna mais responsividade diante de demandas ecológicas – esta é a dupla fórmula da justiça jurídica.” (TEUBNER, Gunther. Justiça autosubversiva: fórmula de contingência ou de transcendência do Direito? Revista Eletrônica do Curso de Direito – PUC Minas

Serro, Belo Horizonte, n. 4, p. 17-54, out. 2011. Disponível em:

<http://periodicos.pucminas.br/index.php/DireitoSerro/article/view/2259>. Acesso em: 20 dez. 2015, p. 28). 284 TEUBNER, Gunther. Justiça autosubversiva: fórmula de contingência ou de transcendência do Direito?

Revista Eletrônica do Curso de Direito – PUC Minas Serro, Belo Horizonte, n. 4, p. 17-54, out. 2011.

Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/DireitoSerro/article/view/2259>. Acesso em: 20 dez. 2015, pp. 28-30.

protesta contra si mesmo. A justiça protesta contra as tendências naturais do Direito de se vincular a precedentes, rotina, segurança, estabilidade, autoridade e tradição. Contra as tendências de auto-continuidade bem-ordenada embutidas no Direito, a justiça exibe sua preferência pela desordem, revolta, divergência, variabilidade e mudança. Ela protesta em nome da sociedade, dos homens e da natureza – entretanto, ela o faz a partir do arcano interno do Direito. A justiça subversiva é o espinho na carne. Motim a bordo - é este o recado da Sociologia para a justiça jurídica285.

“Motim a bordo”, “insurreição interna”, e não “ataque externo”. A ideia de justiça surge como resposta (interna) à “mais inquietante falha do Direito”, que “consiste no fato de que ele não pode evitar a invasão da irracionalidade no mundo racional das decisões orientadas por normas e da argumentação embasada na razão”. Mas a “justiça jurídica” deve ser distinguida de outras justiças, como a “justiça moral”, a “justiça política” e a “justiça econômica”:

Os critérios da justiça [jurídica] não são, então, encontrados em algum lugar fora do Direito mas, sim, o Direito só pode se auto-transcender de forma tal que ele diferencie de si mesmo, na reentrada auto-produzida, aqueles ambientes dos quais o conflito jurídico se origina – sociedade, natureza, homem, para, então, em relação a essas “enacted ecologies”, estabelecer critérios de justiça ambientalmente adequados. Com isso, recusa-se desde o início que o Direito possa importar tais critérios do mundo exterior; pelo contrário, ele deve construí- los automaticamente, com seu próprio conhecimento do mundo. Essa reentrada na praxis decisória do Direito estabelece a especialidade de uma justiça jurídica e sua diferença em relação a representações externas ao Direito sobre o que seria uma sociedade justa, uma justiça política das decisões coletivas ou uma justiça moral-filosófica da consideração mútua. A busca não pode externalizar seus critérios e, assim, não pode depositar suas esperanças nem na democracia, nem na moral ou na economia. Ao invés, ela é lançada de volta a si mesma. O Direito carrega, ele próprio, a responsabilidade por seus critérios da justiça286.

As reflexões de Teubner permitem o reforço à ideia desenvolvida na Seção 4.1 deste Capítulo: a noção de justiça está ligada à hipótese do legislador racional. “Justiça” e “legislador racional” são ideias tradicionalmente mobilizadas no interior do sistema jurídico para possibilitar a produção de interpretações e de decisões adequadas à complexidade social e juridicamente consistentes. Desde que não represente um “ataque

285 TEUBNER, Gunther. Justiça autosubversiva: fórmula de contingência ou de transcendência do Direito?

Revista Eletrônica do Curso de Direito – PUC Minas Serro, Belo Horizonte, n. 4, p. 17-54, out. 2011.

Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/DireitoSerro/article/view/2259>. Acesso em: 20 dez. 2015, pp. 30-33.

286 TEUBNER, Gunther. Justiça autosubversiva: fórmula de contingência ou de transcendência do Direito?

Revista Eletrônica do Curso de Direito – PUC Minas Serro, Belo Horizonte, n. 4, p. 17-54, out. 2011.

Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/DireitoSerro/article/view/2259>. Acesso em: 20 dez. 2015, pp. 23-39.

externo”, a hipótese do administrador/julgador eficiente também pode servir como apoio ao “motim abordo” (à “insurreição interna”) do direito, que metaforicamente representa a busca da interpretação e da decisão jurídica justas.

Essas reflexões acerca da ideia de justiça permitem que se conclua que a associação dos ideais do legislador racional e do administrador/julgador eficiente não deve representar uma anulação do primeiro em nome do segundo, mas um reforço mútuo. Os conceitos jurídicos não devem ser substituídos por conceitos econômicos, científicos, políticos etc. O conhecimento, a interpretação e a aplicação do direito continuam lidando principalmente com textos e conceitos jurídicos, ainda que referências externas ao direito sejam necessárias.

Ao refletir acerca da exigência contemporânea de orientação do direito para o futuro, para as consequências das decisões, Luhmann afirmou que esta exigência não poderia ser “a de uma otimização ou a de uma comparação de utilidade mais ou menos ampla”, mas apenas poderia “consistir em uma comparação de possibilidades de decisão que resultam de determinadas interpretações normativas para casos heterogêneos.”287 Segundo Luhmann, não haveria “nenhuma possibilidade convincente de recomendar uma dogmática jurídica que empregue as consequências como critérios do lícito e do ilícito.” A dogmática jurídica, a seu ver, deve “ser capaz de formular conceitos socialmente adequados”, que, ao contrário das simples considerações acerca das consequências, poderão servir-lhe como um ponto de apoio.288

No entanto, dessa constatação não se deve concluir que as consequências sejam inúteis ou desimportantes para a dogmática jurídica, mas apenas que não devem representar uma subversão nos critérios próprios do sistema jurídico. As consequências apenas têm relevância para a dogmática quando permitem a adequação à complexidade social, mas sem resultar no desprestígio à consistência jurídica.

287 LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p. 83.

288 LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, pp. 90-113.

Os juristas, segundo Luhmann, prestam “atenção às consequências de suas decisões” e avaliam “de maneira distinta segundo sirvam ou prejudiquem interesses”. Distinções como “útil/inútil/prejudicial” não definem “a forma do direito no sentido de um objeto de observação e descrição” (isto é, “não são distinções constituintes do direito”), mas se originam no exercício do próprio direito e servem de orientação para suas operações289.

No interior do sistema jurídico, a teoria do direito, a dogmática jurídica, os princípios e os conceitos de direito representam um esforço no sentido de se “alcançar consistência conceitual”, de se “chegar à comprovação da universalidade dos princípios, dos conceitos, das regras de decisão”. Trata-se de um “esforço de ‘amplificação’ e, mais do que nada, um afã de corrigir as generalizações demasiado extensas por meio do esquema regra/exceção. No interior do sistema jurídico isto pode entender-se como trabalho em torno à justiça [...]”. Estas construções teóricas são o resultado de interpretações jurídicas, isto é, das auto-observações do sistema jurídico, que fornecem consolidações de expectativas290.

Em dissertação de mestrado defendida em 1983, na PUC-SP, Silvia Diniz abordou o tema do legislador racional e a sua relação com o direito tributário. Nesta oportunidade, a

289 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, p. 84. Como aponta Ferraz Junior, fazendo referência às reflexões de Luhmann acerca da orientação do direito para o futuro, “[...] o sistema jurídico transforma as interdependências externas, que são futuras e abertas, em interdependências internas, que são passadas e fechadas. Isso se obtém pelo estabelecimento de alternativas de decisão através de construções dogmáticas, ligando às alternativas certas consequências possíveis. Desse modo, o critério para a determinação do jurídico e do antijurídico não está nas consequências reais, mas nos efeitos jurídicos das decisões juridicamente fixadas. A isso podemos chamar de uma astúcia da razão dogmática, pois, socialmente, criamos a impressão de que houve, de fato, aumento controlado das incertezas, embora, na verdade, as consequências da decisão só estejam sendo consideradas na medida em que foram previamente avaliadas.” Chegando à mesma conclusão de Luhmann, Ferraz Junior afirma que a função da dogmática reside “[...] na construção das condições do juridicamente possível, em termos de decidibilidade, ou seja, na determinação das possibilidades de construção jurídica de casos jurídicos.” Embora a dogmática jurídica não seja “[...] um instrumento da efetividade [...]”, ela “[...] pode usar a efetividade como corretivo das abstrações com o auxílio das quais ela orienta as decisões [...]”. No entanto, a efetividade “[...] não pode fundar a identidade do sistema jurídico. Mesmo as Dogmáticas sociologizantes, como aquelas propostas pelo realismo americano ou pelo escandinavo – onde a orientação pelas consequências é mais evidente –, não fazem das consequências reais, mas apenas das jurídicas, um verdadeiro critério – ou, mais claramente, elas não se guiam, por exemplo, pelo fato de que, dada uma decisão, alguém ficará pobre e outro rico, ou uma família ficará desagregada, mas pelas avaliações generalizantes que suas construções permitem.” (FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2015, pp. 144-154).

290 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 63-64.

autora manifestou a sua preocupação com o fato de que grande parte da “linguagem utilizada pelo Direito Tributário tem na sua origem um significado essencialmente econômico”, o que trouxe para este campo “teses doutrinárias em que os dogmáticos do Direito Tributário” passaram a defender “a interpretação das normas tributárias segundo a realidade econômica”. Isso, segundo a autora, significaria a negação de pontos importantes da “teoria do legislador racional”. Para os adeptos desta “teoria” (“cuja utilização é de tal forma disseminada em todos os estudos normativos ou de aplicação e integração das normas jurídicas que é como se já fizesse parte do sistema jurídico”), expressões como “contribuinte”, “tributo”, “imposto”, “taxa” e “capacidade contributiva” teriam um significado “essencialmente jurídico”, que seria “acrescido ao termo ao chegar ao mundo jurídico, uma transformação, uma transfiguração no seu significado econômico, original, pré-jurídico”291.

No início da década de 1980, portanto, uma perspectiva economicista do direito já estimulava reflexões teóricas no Brasil acerca dos riscos da perda de consistência jurídica dos conceitos dogmáticos do direito. De lá para cá, em razão das transformações no Estado e no direito descritas nos Capítulos anteriores do presente trabalho, os riscos da perda de precisão no labor dogmático-jurídico apenas se acentuaram. Essa possibilidade de perda de consistência jurídica da dogmática exige que se reflita sobre o processo de filtragem jurídica, por exemplo, de conceitos e teorias originariamente econômicos.

Uma possível solução para o problema da transposição de conceitos externos para o sistema jurídico pode ser encontrada na ideia de tradução. Quando o sistema jurídico, por exemplo, interpreta a ideia de “eficiência”, que é uma noção típica do sistema econômico, essa operação comunicativa exige “[...] ‘tradutores’ ou ‘dicionários’ que validem as interpretações de um sistema para o outro. [...] esses ‘dicionários’ dizem respeito aos critérios de validação e consistência interna do direito.” No sistema econômico, as ideias de eficiência e de escassez “dão sentido à interpretação econômica”, mas, no sistema jurídico, estas noções não estão associadas aos “tradutores” da interpretação jurídica. O

291 DINIZ, Silvia. Linguagem jurídica e interpretação dogmática. 1983. 164 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1983, pp.101-105.

“tradutor” do sistema jurídico está ligado à ideia de validade292, cuja transferência (“nas cadeias recursivas de decisões judiciais, atos legislativos e contratuais”) ocorre “com base no código binário jurídico/antijurídico”293.

A noção de tradução também pode ser mobilizada para solucionar a questão da adoção de teorias externas no interior do sistema jurídico. Ao discutir a relação entre direito e teoria social, Teubner afirma que o direito precisa “ser exposto à influência de teorias sociais”, mas que esse contato exige uma “abordagem distanciada”, relacionada a “um complexo processo de tradução” das teorias sociais pelo direito. Para tanto, o autor se vale de três conceitos, que podem contribuir para a solução de três “problemas espinhosos”: i) “transversalidade”, para o problema da concorrência entre as teorias sociais; ii) “responsividade”, para o problema da transferência de conhecimento das teorias sociais para o direito; iii) “autonormatividade”, para o problema da normatividade das teorias sociais294.

A ideia de “transversalidade” pode ser utilizada para conciliar o “alto nível de autonomia” com as “interdependências recíprocas de diferentes racionalidades sociais”. Por um lado, o direito da sociedade moderna (funcionalmente diferenciada) tende a se defender das pretensões de totalidade de qualquer teoria social, como as relacionadas a perspectivas unilaterais de “economicização”, “politização”, “sociologização”, “cientificização” ou “moralização”. Por outro lado, o direito “se abre para sua influência quando elas [as várias teorias sociais] postulam afirmações que são válidas para seus campos de atuação”295.

292 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Interpretação do Direito e Movimentos Sociais. Rio de Janeiro: