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Desgastes da racionalidade jurídica tradicional

3. NOVO MODELO DE DIREITO

3.1 Desgastes da racionalidade jurídica tradicional

O caráter formal da racionalidade jurídica é uma nota característica do direito que se desenvolve na modernidade. O direito da sociedade moderna é reconhecido pelos seus aspectos “formais”, isto é, como um direito “positivo”, “estatal” e “coativo”. No entanto, ao longo do século XX, as descrições do direito ganham novos contornos, que se apresentam como sinais de desgaste desta racionalidade jurídica tradicional.

117 LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p. 45.

118 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 119-122.

No século XIX, a matéria do direito antigo é “reelaborada, codificada e colocada na forma de leis”. A produção de legislação se torna uma rotina do Estado e uma resposta à demanda pela praticidade da aplicação e pela racionalidade do direito119. O direito moderno se torna sinônimo de “direito positivo”, isto é, de direito “válido enquanto decisão”. Ao menos este é o modo como o direito da sociedade moderna irá se autodescrever, afastando a ideia de uma “natureza imutável” e enfatizando a sua própria mutabilidade120.

Na modernidade, o direito deixa de ter a sua vigência baseada “na implementação sagrada ou na tradição”, para ser tido como “direito positivo construído e modificável a qualquer momento”: “O que se supunha ser constante, ser ordem no mundo, passa a ser reconhecido como escolha, opção, e tem que ser assumido como tal, independentemente da manutenção ou modificação das normas em cada caso”. A legislação deixa de ter um “status jurídico” precário, para se tornar uma rotina estatal121.

Uma das importantes características do Estado Moderno é o monopólio estatal da produção jurídica: “o direito positivo (o direito posto e aprovado pelo Estado) é tido como o único e verdadeiro direito”. O Estado produz o direito diretamente, mediante a elaboração de leis, e indiretamente, por meio do reconhecimento das normas de origem costumeira. Ao contrário do aspecto pluralista do direito medieval (produzido por diversos agrupamentos sociais, que dispunham de ordenamentos jurídicos próprios), o direito moderno assume o caráter monista, já que o poder de criação do direito é concentrado em um único âmbito da sociedade: o Estado122.

Em sua clássica obra “Economia e Sociedade”, Max Weber descreveu as qualidades formais do direito moderno como sendo resultado de um desenvolvimento em

119 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 230.

120 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 93-97.

121 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, pp. 228- 238.

122 BOBBIO, Norberto. O Positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Clarlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006, pp. 26-29.

etapas que, partindo da revelação carismática, mágica e irracional do direito por “profetas jurídicos”, caminharia em direção ao “progresso da sublimação lógica e do rigor dedutivo do direito e da técnica racional do procedimento jurídico”123.

Além de Weber, Hans Kelsen foi outro importante teórico da primeira metade do século XX que defendeu uma perspectiva formal de racionalidade jurídica. No Prefácio à primeira edição da sua Teoria Pura do Direito, Kelsen aponta para a sua tentativa de desenvolver uma “teoria jurídica pura”, isto é, de:

[...] elevar a Jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava explicar, não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão124.

A nota distintiva do direito, segundo Kelsen, estaria no momento da coação: “as ordens sociais a que chamamos Direito são ordens coativas da conduta humana. [...] Quer isto dizer que elas dão a um determinado indivíduo poder ou competência para aplicar a um outro indivíduo um ato coativo como sanção.”125 Assim, o conhecimento jurídico seria dirigido para “uma ordem normativa da conduta humana”126 e caberia à ciência jurídica o papel de interpretá-la de modo a estabelecer as suas “possíveis significações” (a sua “determinação cognoscitiva”), sem “tomar qualquer decisão entre as possibilidades por si mesma reveladas”. Esta tomada de decisão seria uma “criação jurídica”, que deveria ser deixada às autoridades competentes para aplicar o direito, à política do direito127.

Kelsen, assim como Weber, era fiel à “distinção entre a esfera do conhecimento e a esfera da ação”. A tarefa da Teoria Pura do Direito, ou de qualquer teoria do direito que pretendesse carregar a nota da cientificidade, seria a de “estudar o direito em sua estrutura

123 WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 2. Tradução de Regis Barbosa e Keren Elsabe Barbosa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009, p. 143.

124 KELSEN, Hans. Prefácio à primeira edição. In: KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Batista Machado. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. XI.

125 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Batista Machado. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, pp. 36-37.

126 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Batista Machado. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 5.

127 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Batista Machado. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, pp. 393-396.

formal”128. A pureza metodológica da teoria kelseniana era baseada na ideia de rejeição de juízos de valor nas ciências sociais, que foi a posição vivamente defendida por Weber no início do século XX129.

Ademais, a descrição weberiana da formação do Estado moderno como sendo caracterizada por um processo de racionalização formal que culminou no poder legal- racional (regulado em todos os níveis por leis, por normas gerais e abstratas), segundo Bobbio, seria fielmente representada pela teoria estrutural de Kelsen. Weber e Kelsen destacaram o mesmo processo de formação do Estado moderno: “É fato que, quando Kelsen descreve a progressiva juridificação do Estado moderno, a ponto de reduzir o Estado a Direito, destaca o mesmo processo que Weber capta na formação do poder legal que acompanha o desenvolvimento do Estado no período histórico.”130

O esgotamento do paradigma da legislação e da codificação representa, em alguma medida, uma espécie de retorno às origens deste desenvolvimento, já que a confiança na lógica, na dedução e na racionalidade técnica do procedimento jurídico é, em parte, substituída pela confiança na eficiência de administradores e julgadores. Estes atores sociais assumem uma atuação conscientemente criativa diante do direito vigente, o que, consoante Weber, seria uma atitude exclusiva dos profetas. Transformar um juiz burocrático, dos países com direito codificado, em um “profeta jurídico” resultaria na diminuição da “precisão jurídica do trabalho, tal como se manifesta nas explicações das sentenças, quando arrazoados sociológicos e econômicos, ou éticos, ocupam o lugar dos conceitos jurídicos”131.

128 BOBBIO, Norberto. Max Weber e Hans Kelsen. In: BOBBIO, Norberto. Direito e poder. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Editora UNESP, 2008, pp. 220-223.

129 LOSANO, Mario G. Introdução. In: KELSEN, Hans. O problema da justiça. Tradução de João Baptista Machado. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, pp. X-XII.

130 BOBBIO, Norberto. Max Weber e Hans Kelsen. In: BOBBIO, Norberto. Direito e poder. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Editora UNESP, 2008, pp. 238-239.

131 WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 2. Tradução de Regis Barbosa e Keren Elsabe Barbosa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009, pp. 152-153. A preocupação weberiana é justificável e se manifestará também em autores da segunda metade do século XX, como Luhmann. Em obras da década de 1970, como “Sistema Jurídico e Dogmática Jurídica”, Luhmann demonstrou preocupação em relação às pretensões de “[...] orientación sociológica de la jurisprudencia y de la práctica jurídica [...]”, que, a seu ver, transcenderiam “[...] lo que sería sostenible si se tomasen en consideración los límites de la disciplina [sociológica], esto es, sus límites teóricos y metodológicos.” Ao menos até aquele momento, seria “[…] imposible ver cómo se podrían relacionar cuestiones jurídicas, con la precisión necesaria para la decisión, con teorías sociológicas o con métodos de investigación social

O desgaste da racionalidade jurídica formal parece estar associado a uma espécie de subversão de uma das ideias que serviriam de base para a dominação de caráter legal- racional e que poderia ser assim sintetizada:

[...] que todo direito é, segundo sua essência, um cosmos de regras abstratas, normalmente estatuídas com determinadas intenções; que a judicatura é a aplicação dessas regras ao caso particular e que a administração é o cuidado racional de interesses previstos pelas ordens de associação, dentro dos limites das normas jurídicas e segundo princípios indicáveis de forma geral [...]132. Este modelo estatista, racional e formal de direito ainda influencia a mentalidade jurídica. Mas o descompasso desta concepção de direito em relação à realidade atual mostra-se cada vez mais evidente. O direito, segundo a concepção weberiana, seria simplesmente aquilo que o legislador político decide que é direito, de acordo com os procedimentos legalmente institucionalizados. As exigências de justiça material seriam responsáveis pela destruição da racionalidade formal do direito. E, como aponta Habermas, foi justamente o que ocorreu: a racionalidade jurídica formal entrou em colapso diante do surgimento de um direito “reflexivo”, “negociado”, “consensual”, “regulador”, “moralizado”, “desformalizado”, “brando”133.

A “secura filosófica” da Teoria Pura do Direito, por exemplo, foi objeto de crítica dos vários matizes teóricos do que pode ser chamado de Culturalismo Jurídico. Teóricos como Carlos Cossio e Antônio Luís Machado Neto, representantes da Escola Egológica do Direito, apontaram para a norma jurídica como “o momento formal e necessário da experiência jurídica”, mas que não esgotaria essa experiência, que seria cultural e empírica.” (LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, pp. 13-14). Já nas obras da década de 1990, como “O Direito da Sociedade”, Luhmann manifestou a sua desconfiança, por exemplo, em relação às ambições da chamada “análise econômica do direito”, que, a seu ver, ofereceria uma proposta simples e racional de “cálculo de utilidade”, mas não conseguiria solucionar um problema crucial: “[...] la imposibilidad del cálculo del futuro.” (LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, pp. 75-76). Uma discussão associada a estas preocupações será retomada no Capítulo 4 deste trabalho, quando abordarmos a hipótese do administrador/julgador eficiente. As preocupações weberianas e luhmannianas podem ser direcionadas à análise desta hipótese, com o objetivo de se dimensionar os seus limites, riscos e possibilidades.

132 WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 1. Tradução de Regis Barbosa e Keren Elsabe Barbosa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2012, p. 142.

133 HABERMAS, Jürgen. Direito e Moral. Tradução de Sandra Lippert. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, pp. 13-41.

valorativa. O conhecimento jurídico não seria orientado para as normas, mas para a “conduta humana em interferência intersubjetiva”, isto é, o direito seria um objeto cultural egológico134. Inspirados em Wilhelm Dilthey, estes pensadores defenderam que a compreensão jurídica se daria por meio da interpretação de condutas através de normas. Partindo do pressuposto de que “o direito é conduta compartida”, a Teoria Egológica do Direito defendeu que o sentido jurídico de uma conduta seria “composto pelo agente, pelo legislador, pela comunidade e pelo intérprete”. Este último seria responsável pela valoração “conceitualmente emocional” da conduta, que seria uma valoração baseada nas normas jurídicas135.

No Brasil, além das contribuições teóricas de Machado Neto, o Culturalismo Jurídico contou com o desenvolvimento de Miguel Reale, que afirmava ser o Culturalismo “a corrente de filosofia brasileira mais extensa e original”136. Os significados da palavra “Direito”, segundo Reale, seriam delineados segundo “três elementos fundamentais”: valor, norma e fato. Estes seriam os elementos presentes em qualquer experiência jurídica e que justificariam o desenvolvimento de uma Teoria Tridimensional do Direito137. O trabalho do intérprete representaria uma atividade construtiva de natureza axiológica: “a sistemática jurídica, além de ser lógico-formal, como se sustentava antes, é também

axiológica ou valorativa.” Ademais, além de cotejar enunciados lógicos e axiológicos, a

hermenêutica jurídica deveria realizar “contínuas aferições no plano dos fatos”138.

Na mesma linha de reviravolta na concepção de cientificidade do direito, a segunda metade do século XX presenciou o surgimento da obra “Tópica e Jurisprudência”, de Theodor Viehweg. A origem daquilo que hoje se chama de Teoria da Argumentação

134 MACHADO NETO, Antônio Luís. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, pp. 49-55.

135 MACHADO NETO, Antônio Luís. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, pp. 221-224. O direito, consoante Cossio, “[...] es la conducta humana en su interferencia intersubjetiva [...]”. Por se tratar de conduta humana, o direito “[…] es objeto cultural egológico y la interpretación, por lo tanto, implica un conocimiento por comprensión. [...] No se interpreta la ley; aquí se trata de interpretar la conducta humana por medio de o mediante la ley. Esto es lo que está realmente en juego cuando se habla de la interpretación de la ley.” (COSSIO, Carlos. El derecho en el derecho judicial. 3. ed. Buenos Aires: Editorial Abeledo-Perrot, 1967, pp. 136-137).

136 REALE, Miguel. Prefácio. In: REALE, Miguel. Cinco temas do culturalismo. São Paulo: Saraiva, 2000, p. XIII.

137 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 1991, pp. 509-511. 138 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 287.

Jurídica está situada em uma série de obras da década de 1950 (dentre as quais se encontra a de Viehweg), que compartilhavam “a rejeição da lógica formal como instrumento para analisar os raciocínios jurídicos”139. Segundo Viehweg, a “tópica” seria “uma techne do pensamento que se orienta para o problema”, “uma técnica do pensamento problemático”. O acento é posto no problema, e não no sistema, o que “impede o tranquilo raciocínio lógico para trás e para diante, quer dizer, a redução e a dedução.”140.

Além da Tópica de Viehweg, o período Pós Segunda Guerra Mundial viu surgir a Nova Retórica, de Chaïm Perelman. Segundo Perelman, a lógica formal seria incapaz de resolver o problema da escolha e da decisão, que requer o fornecimento de “razões da escolha para obter a adesão à solução proposta”. Assim, a Nova Retórica seria “o estudo das técnicas discursivas que visam a provocar ou a intensificar a adesão de certo auditório às teses apresentadas.”141 Após o processo de Nuremberg, a maior parte dos teóricos do direito teria adotado uma orientação antipositivista, que abriria espaço para soluções não apenas conformes à legislação, mas também equitativas, razoáveis e aceitáveis, social e moralmente, pelas partes e pelo público esclarecido. Essa nova fase da “ideologia judiciária” acresceria “a importância do direito pretoriano, fazendo do juiz o auxiliar e o complemento indispensável do legislador: inevitavelmente, ela aproxima a concepção continental do direito da concepção anglo-saxã, regida pela tradição da common law.” Com isso, o recurso às técnicas argumentativas tornar-se-ia indispensável, já que, para que as decisões se tornem aceitáveis, faz-se necessário motivá-las, mostrando “de que modo a melhor interpretação da lei se concilia com a melhor solução dos casos particulares”142.

Ainda neste período e também seguindo a toada do contraponto à lógica formal e dedutiva, mas sem buscar inspiração na retomada da tradição tópica ou retórica, surge a Lógica Informal, de Stephen Edelston Toulmin143. A questão central levantada por

139 ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy Editora, 2006, p. 45.

140 VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução de Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979, pp. 33-44.

141 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Pupi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 141-181.

142 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Pupi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 183-186.

143 ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy Editora, 2006, p. 93.

Toulmin em sua obra “Os Usos do Argumento” é a de “saber até que ponto a lógica pode esperar ser uma ciência formal e, ainda assim, conservar a possibilidade de ser aplicada na avaliação crítica de argumentos que efetivamente usamos ou que podem ser usados por nós.”144 Os lógicos elegeram o silogismo “analítico” ou “dedutivo” como paradigma para as demais classes de argumentos, por considerá-lo “um tipo de argumento formalmente válido, inequívoco, analítico”. Mas, conforme Toulmin, os critérios analíticos são “irrelevantes quando estamos lidando com argumentos substanciais”: os argumentos não precisam “estar à altura de padrões analíticos”, mas têm que “alcançar a espécie de poder de convicção ou caráter bem fundado”.145

Este breve panorama mostra como, ao longo do século XX, surgiram teorias que apontaram para a insuficiência da racionalidade jurídica tradicional. Perspectivas teóricas bastante diferentes entre si, como a Teoria Egológica do Direito e a Teoria Tridimensional do Direito, convergiram na direção da preocupação teórico-jurídica não apenas com a dimensão normativa e formal do direito, mas também com os aspectos fáticos e valorativos da experiência jurídica. Por outro lado, surgiram vertentes teóricas, também bastante dispares entre si, que dirigiram suas reflexões para o problema do raciocínio e da argumentação jurídica, concluindo, por caminhos diferentes, que a lógica formal não daria conta da prática jurídica.

No que diz respeito aos procedimentos hermenêuticos, que serão aprofundados no Capítulo seguinte deste trabalho, caminhou-se, segundo a terminologia proposta por Ferraz Junior, de uma “interpretação de bloqueio” da intromissão do Estado (hermenêutica tradicional) para uma “argumentação de legitimação” de aspirações sociais à luz da Constituição. Introduziu-se “na hermenêutica constitucional uma consideração de ordem axiológica”: “o procedimento argumentativo de captação do sentido do conteúdo das normas torna-se realização valorativa conforme procedimentos próprios da análise da ponderação de valores.” Esta captação de sentido passa a ser compreendida como “um

problema de conformação política dos fatos, isto é, de sua transformação conforme um

144 TOULMIN, Stephen Edelston. Os usos do argumento. Tradução de Reinaldo Guarany. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 1-14.

145 TOULMIN, Stephen Edelston. Os usos do argumento. Tradução de Reinaldo Guarany. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 209-359.

projeto ideológico”, e não mais como “um problema de correta subsunção do fato à norma – com sua carga lógica, histórica, sistemática, teleológica e valorativa”146.

A compreensão desta mudança de postura hermenêutica, que resulta de profundas transformações no modo de pensar e viver o Estado e o direito, é importante para os fins do presente trabalho, pois a base comum sob a qual a antiga ideia de interpretação jurídica como subsunção do fato à norma se desenvolveu “é aquilo que a doutrina alemã, no século XIX, elaborou como a figura do legislador racional que contagia por razões de segurança o juiz como um terceiro imparcial, objetivo, neutro etc.”147

Nas últimas décadas do século XX, surgiram concepções ambiciosas acerca do Estado de Direito, como a de Ronald Dworkin, que insiste que existem direitos morais e políticos, bem como que estes direitos devem ser reconhecidos no direito positivo. Segundo Dworkin, uma “concepção centrada nos direitos”, em oposição a uma “concepção centrada no texto legal”, insiste que os textos jurídicos não são a fonte exclusiva dos direitos, já que os cidadãos possuem “direitos morais de fundo” e que muitos casos devem ser decididos “com base em fundamentos políticos”.148

Outro influente autor das últimas décadas do século XX é Robert Alexy. Este autor sustenta a tese de que um conceito de direito adequado apenas surge do entrelaçamento da “dimensão real ou fática” (do “direito como ele é”) e da “dimensão ideal ou discursiva da correção” (do “direito como ele deve ser”), isto é, da “união entre direito e moral”. O