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3. NOVO MODELO DE DIREITO

3.3 O caso do direito brasileiro

O direito brasileiro não escapa às transformações sociais até aqui descritas. Muitos são os campos em que seria possível a constatação das mudanças no perfil do Estado e do direito brasileiro contemporâneo. O setor da saúde é uma das áreas que permitem interessantes reflexões na atualidade acerca dos novos modelos de Estado e de direito que tomam forma na realidade contemporânea, inclusive em países economicamente periféricos como o Brasil177.

No segundo semestre de 2014, um surto do vírus Ebola em países da África Ocidental – Libéria, Guiné e Serra Leoa – chamou a atenção da Organização Mundial de Saúde (OMS) e de países como o Brasil, que tomaram medidas para evitar que o vírus se espalhasse através de viajantes. O Ministério da Saúde, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e os serviços locais de vigilância sanitária editaram portarias, notas técnicas e protocolos para regular os atendimentos dos casos suspeitos da doença causada pelo vírus178.

177 Não nos referimos aqui à noção de “modernidade periférica” desenvolvida por Neves (NEVES, Marcelo.

A Constitucionalização Simbólica. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, pp. 140-148),

mas à ideia de “periferia econômica e tecnológica” sustentada por Campilongo (CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 165-174). A sociedade moderna, consoante Luhmann, não é compatível com o antigo “esquema centro/periferia”, “[...] a no ser que la sociedad se defina exclusivamente bajo la óptica del desarrollo económico y tecnológico (aun en ese caso se hace referencia a la poca estabilidad geográfica de tales centros) [...]”: “Todo habla a favor de que la división de la sociedad mundial en centros y periferias se rige (y se ordena) por la forma dominante de la diferenciación por funciones.” (LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. Ciudad de México: Herder e Universidad Iberoamericana, 2005, p. 395).

178 WHO (OMS). World Health Organization (Organização Mundial de Saúde). Doença do Vírus Ébola – Lista de Verificação Consolidada da Preparação. Revisão 1. 15 de Janeiro de 2015. Disponível em: <http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/137096/14/WHO_EVD_Preparedness_14_por.pdf>. Acesso em: 01 dez. 2015. O Ministério da Saúde, por meio da Portaria nº 1.271, de 06 de junho de 2014, incluiu a doença

A facilidade e a rapidez das viagens internacionais trazem consigo riscos. A Administração Pública não poderia ficar inerte diante da necessidade de uma rápida resposta à situação classificada pela OMS como emergência de saúde pública de interesse internacional. O setor hospitalar precisou, em poucas semanas, tomar conhecimento das medidas de biossegurança e dos procedimentos de notificação compulsória e de encaminhamento dos casos de suspeita da doença para os centros referenciados179.

causada pelo vírus Ebola no rol de doenças que devem ser imediatamente objeto de notificação direcionada ao Ministério da Saúde, à Secretaria Estadual de Saúde e à Secretaria Municipal de Saúde. Consoante o Informe Técnico disponibilizado pelo Ministério da Saúde, “[o] vírus Ebola foi identificado pela primeira vez em 1976, no Zaire (atual República Democrática do Congo), e, desde então, tem produzido vários surtos no continente africano. Esse vírus foi transmitido para seres humanos que tiveram contato com sangue, órgãos ou fluidos corporais de animais infectados, como chimpanzés, gorilas, morcegos-gigantes, antílopes e porcos- espinhos. Em seres humanos o período de incubação pode variar de 2 a 21 dias. Existem cinco espécies de vírus Ebola (Zaire ebolavirus, Sudão ebolavirus, Bundibugyoebolavirus, Restonebolavirus e Tai Forest ebolavirus), sendo o Zaire ebolavirus o que apresenta a maior letalidade, geralmente acima de 60% dos casos diagnosticados.” (BRASIL. Ministério da Saúde. Ebola: Informe técnico e orientações para as ações de vigilância e serviços de saúde de referência. Disponível em: <http://portalsaude.saude.gov.br/>. Acesso em: 08 jan. 2016).

179 WHO (OMS). World Health Organization (Organização Mundial de Saúde). Doença do Vírus Ébola – Lista de Verificação Consolidada da Preparação. Revisão 1. 15 de Janeiro de 2015. Disponível em: <http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/137096/14/WHO_EVD_Preparedness_14_por.pdf>. Acesso em: 01 dez. 2015. A ANVISA elaborou a Nota Técnica nº 03/2014 acerca do tema, estabelecendo medidas de precaução padrão, diretrizes para o isolamento do paciente, orientações sobre o uso de equipamentos de proteção individual na assistência ao paciente, informações sobre a técnica e a preparação necessária para a higienização das mãos dos profissionais e orientações referentes a processamentos de produtos e equipamentos, limpeza e desinfecção de superfícies, descarte de roupas utilizadas, manejo de resíduos e procedimentos pós-óbito (BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Nota Técnica Ebola nº

03/2014 – GGTES/ANVISA – Medidas de prevenção e controle a serem adotadas na assistência a pacientes

suspeitos de infecção pelo Vírus Ebola. Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/>. Acesso em: 06 jan. 2016). Ademais, levando em consideração o “cenário de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional pelo vírus Ebola em alguns países da África Ocidental”, a ANVISA editou também a Nota Técnica nº 02/2014, que dispôs sobre a prevenção e o controle do vírus Ebola em “Pontos de Estrada” (portos, aeroportos e fronteiras), estabelecendo protocolos e procedimentos para os casos suspeitos ou prováveis de Ebola identificados em áreas aeroportuárias, aeronaves, embarcações e fronteiras (BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Nota Técnica 02/2014 – Prevenção e Controle do Ebola em Pontos de Entrada. Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/>. Acesso em: 06 jan. 2016). Já o Centro de Vigilância Epidemológica da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo editou Informe Técnico estabelecendo que os serviços de saúde devem disponibilizar equipamentos de proteção individual específicos para os profissionais (de saúde e de serviço de higiene e limpeza). Estes profissionais, por sua vez, devem entrar em contato com casos suspeitos de doença pelo vírus Ebola seguindo uma sequência de medidas de precaução estabelecida no Informe Técnico. O Informe Técnico também dispõe sobre os procedimentos de: i) notificação do Centro de Vigilância Epidemológica do Estado acerca de casos de suspeita da doença; e ii) remoção dos pacientes, que devem ser encaminhados para o Hospital de Referência para atendimento dos casos de suspeita da doença no Estado (SÃO PAULO. Centro de Vigilância Epidemológica - Secretaria de Estado da Saúde – Governo do Estado de São Paulo. Vigilância da Doença

pelo Vírus Ebola (DVE) – Informe Técnico. Atualizado em 26/11/2014. Disponível em:

O episódio deixou claro para as assessorias jurídicas de direito regulatório dos hospitais de grandes centros urbanos como São Paulo que o direito vem, em grande medida, a reboque dos fatos. À medida que a situação se agravava, sucessivas recomendações dos órgãos de vigilância sanitária eram editadas e revisadas. O planejamento e as políticas de saúde foram surgindo enquanto iam sendo noticiadas as diversas mortes na África e alguns casos de contágio de viajantes em outros continentes. Caso o mapa da doença fosse outro, com casos registrados no país, o Brasil provavelmente teria adotado protocolos de segurança ainda mais rígidos em seus hospitais, aeroportos, portos e fronteiras.

Casos como este requerem apoio e cooperação internacional, não apenas envolvendo a enérgica atuação dos Estados e dos organismos internacionais, mas também a participação ativa de entidades privadas, trazendo impactos nos setores econômicos da saúde e dos transportes. Mas, afinal, estamos diante de comunicação jurídica? Uma opção seria identificar a produção de portarias, notas técnicas e protocolos como operações de outros sistemas sociais (economia, ciência, saúde). Mas como negar que estes instrumentos modificaram a situação jurídica de setores específicos da economia, de viajantes, de pacientes e de profissionais de saúde? A desobediência às “recomendações”, por exemplo, poderia ensejar a aplicação de sanções de natureza sanitária, civil e penal180. Trata-se de direito, ainda que diferente dos padrões tradicionais: um direito “fático-intensivo”, que, ainda que sob o pretexto de “orientar” e “recomendar”, prescreve, impõe, determina, isto é,

180 A Lei nº 6.437, de 20 de agosto de 1977, por exemplo, em seu artigo 10, inciso XXXII, dispõe que se trata de infração sanitária o “[...] descumprimento de normas legais e regulamentares, medidas, formalidades, outras exigências sanitárias, por pessoas física ou jurídica, que operem a prestação de serviços de interesse da saúde pública em embarcações, aeronaves, veículos terrestres, terminais alfandegados, terminais aeroportuários ou portuários, estações e passagens de fronteira e pontos de apoio de veículos terrestres: Pena - advertência, interdição, cancelamento da autorização de funcionamento e/ou multa.” O Código Penal, por sua vez, prevê, em seu artigo 268, no Capítulo “Dos crimes contra a saúde pública”, a chamada “infração de medida sanitária preventiva”: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa. Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.” Neste mesmo Capítulo há, ainda, no artigo 269, a previsão da intitulada “omissão de notificação de doença”: “Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.” Ademais, o Código Civil, em seu artigo 927, parágrafo único, estabelece a obrigação de reparar danos, independentemente de culpa, “quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.” Ademais, o caput deste artigo dispõe que “[a]quele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.” Já o artigo 186 do Código Civil disciplina os atos considerados ilícitos: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

possibilita a estabilização de expectativas normativas, com base no código lícito/ilícito. Há uma espécie de diálogo entre as “fontes tradicionais” de direito e essas “novas fontes” de produção jurídica, que permite que essas normas aparentemente “descritivas” obriguem, prescrevam181.

As autoridades reguladoras de saúde enfrentam dificuldades similares àquelas de outros setores econômicos, como: i) a especificidade das matérias reguladas e a dependência em relação aos conhecimentos técnicos e científicos; ii) a velocidade das transformações socioeconômicas e das evoluções tecnológicas; iii) a vinculação às atuações e cooperações internacionais, já que lidam com matérias sensíveis, que costumam ser objeto não apenas de leis nacionais, mas também de acordos bilaterais, acordos multilaterais e decisões de organismos supranacionais; e iv) a proximidade em relação às empresas do setor regulado e a necessidade de produção de decisões em constante diálogo com estes agentes econômicos, mediante convocações de audiências e consultas públicas.

Essas dificuldades enfrentadas pelas autoridades responsáveis pela regulação desafiam também os intérpretes do direito, já que nem sempre permitem a segurança, a certeza e a racionalidade tipicamente buscadas pelos aplicadores e dogmáticos do direito. Este novo modelo de direito é caracterizado pela acentuação do aspecto da mutabilidade e da flexibilidade, em razão da necessidade de adaptações às rápidas mudanças das realidades técnica, científica, econômica e social, bem como às pressões internacionais e às demandas dos próprios setores regulados.

A ANVISA é um exemplo de agência responsável por atividades de regulação que permite reflexões sobre as mencionadas dificuldades. Essa “autarquia sob regime especial”, criada pela Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, está vinculada ao Ministério da Saúde e atua nos setores relacionados a produtos e serviços que tenham o potencial de afetar a saúde da população brasileira. A Casa Civil da Presidência da República brasileira escolheu a ANVISA como a “agência-piloto” para a implantação da chamada Análise de

181 A metáfora das “fontes do direito” é utilizada aqui apenas com o objetivo de não nos afastarmos muito da semântica tradicionalmente adotada pelo próprio sistema jurídico, uma vez que “[e]n la lógica de los sistemas autopoiéticos habría que decir que la única ‘fuente’ de operación de un sistema es el sistema mismo.” (NAFARRATE, Javier Torres. Luhmann: la política como sistema. Universidade Iberoamericana; Faculdad de Ciencias Políticas y Sociales, UNAM, FCE, 2004, p. 265).

Impacto Regulatório (AIR) no âmbito do governo federal brasileiro. Por isso, desde 2007, as práticas regulatórias da agencia têm buscado discutir e incorporar, gradativamente, a AIR, que “é uma ferramenta que examina e avalia os prováveis benefícios, custos e efeitos no contexto do desenvolvimento e implementação de políticas públicas ou no contexto da atuação regulatória.” Trata-se de um “processo de gestão de riscos regulatórios com foco em resultados, orientado por princípios, ferramentas e mecanismos de transparência, participação e accountability.”182

Para colocar em prática esse “conjunto de procedimentos que antecede e subsidia o processo de tomada de decisão”, a ANVISA, a Casa Civil e os Ministérios da Fazenda e do Planejamento, Orçamento e Gestão têm organizado uma agenda de debates, eventos e estudos relacionados ao tema. Um dos focos principais dessas discussões está relacionado à necessidade de reflexão sobre as experiências internacionais ligadas a esses processos de tomada de decisão regulatória, que requerem disponibilização de dados empíricos, avaliação das opções existentes e das possíveis consequências e promoção de consultas públicas183.

Essas iniciativas em torno da “melhoria regulatória” no Brasil seguem as linhas da busca por “regulação mais eficiente no domínio econômico” que vêm sendo discutidas por países economicamente centrais, como os Estados Unidos e os países europeus, e por organismos internacionais, como a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Busca-se evitar que a regulação resulte em “custos desnecessários à atividade econômica”, por exemplo, mediante o estabelecimento de “parâmetros fundamentais de uma boa prática regulatória”, como os princípios gerais de boa governança regulatória: “accountability”, “transparência”, “eficiência/efetividade”, “responsividade”, “visão de futuro” e “império da lei”.184

182 BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Análise de Impacto Regulatório. Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/wps/content/Anvisa+Portal/Anvisa/regulacao+sanitaria/Assuntos+de+interesse/A nalise+de+Impacto+Regulatorio/Assuntos+de+interesse/Analise+de+Impacto+Regulatorio>. Acesso em: 07 jan. 2016.

183 BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Análise de Impacto Regulatório. Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/wps/content/Anvisa+Portal/Anvisa/regulacao+sanitaria/Assuntos+de+interesse/A nalise+de+Impacto+Regulatorio/Assuntos+de+interesse/Analise+de+Impacto+Regulatorio>. Acesso em: 07 jan. 2016.

184 A AIR, consoante Ramos, pode ser baseada, por exemplo, em técnicas comparativas: “análise de custo- benefício”, “análise de custo-efetividade”, “análise de impacto nos negócios” etc. (RAMOS, Marcelo.

A complexidade e a velocidade das mudanças deste novo modelo de direito representam dificuldades para a consolidação de uma dogmática jurídica adaptada a esta nova realidade social e normativa, mas que não dispense o rigor na produção de conceitos jurídicos. Estamos, aparentemente, no ápice da imposição da orientação do direito para o futuro, que, segundo Luhmann, seria uma etapa do “curso da autorealização da sociedade burguesa”, marcada por “uma mudança da orientação social básica do passado ao futuro, o que conduz a que as decisões jurídicas em última análise apenas possam justificar-se por suas consequências, e não a partir do acervo de dados de tipo normativo e fático.”185

A intensificação da produção deste tipo de direito leva ao questionamento de se os modelos de interpretação jurídica desenvolvidos no contexto do Estado Liberal e do Estado Intervencionista seriam capazes de fornecer respostas adequadas à nova realidade jurídica que se desenvolve em paralelo à configuração de um novo modelo estatal.

Vivemos tempos de “normas narrativas”, que trazem valores, orientações e ajudas e que indicam outros textos para aplicação: “soft law”, “códigos de conduta”, “códigos deontológicos”, “normas criadas por cientistas”, “notas técnicas”, “protocolos” etc. Essas normas de caráter diretivo, típicas de uma sociedade altamente complexa, exigem, consoante Jayme, o chamado “diálogo das fontes”, isto é, o recurso à Constituição, aos direitos humanos, aos direitos supranacionais e ao direito nacional. Há uma complementaridade entre os novos textos jurídicos e os textos jurídicos tradicionais, que permite suprir as imprecisões de um direito que brota à margem dos códigos supostamente claros, mas também preencher as necessárias lacunas destas codificações186.

Essa complementaridade, por exemplo, está claramente presente na interpretação jurídica relacionada à área da saúde no Brasil. A ANVISA é responsável não apenas pela Governança regulatória: experiências e contribuições para uma melhor qualidade regulatória. In: RAMALHO, Pedro Ivo Sebba (Org.). Regulação e Agências Reguladoras: governança e análise de impacto regulatório. Brasília: Anvisa, 2009, pp. 197-201).

185 LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico y Dogmática Jurídica. Tradução de Ignacio de Otto Pardo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, pp. 21-23.

186 JAYME, Erik. Entrevista com o Prof. Erik Jayme. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em

Direito – PPGDir./UFRGS, Porto Alegre, v. 1, n. 1, nov. 2013. Disponível em:

produção de regulação econômica, mas também regulação sanitária, já que, consoante o artigo 6º da Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, deve realizar o “controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária” (inclusive dos ambientes, processos, insumos e tecnologias relacionados a tais produtos e serviços) e “o controle de portos, aeroportos e de fronteiras”. O intérprete dos textos jurídicos produzidos por esta autarquia se depara com a necessidade de confrontá-los, por exemplo, com a legislação relacionada ao direito da saúde, direito do consumidor, direito da concorrência, direito penal, direito administrativo, bem como com os textos produzidos por outras agências reguladoras, como a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) etc.

A interpretação jurídica dos textos produzidos pela ANVISA acerca da adequação dos hospitais e demais serviços de saúde às normas relacionadas ao vírus Ebola, por exemplo, enfrenta o obstáculo de ter que se dirigir a uma produção normativa desordenada, fragmentada, em diferentes níveis (local, estatal e global) e associada a conhecimentos específicos (médicos, técnicos e científicos).

A cooperação regulatória internacional em torno do vírus Ebola evidencia o caráter global de problemas relacionados à saúde. Não são apenas as questões financeiras, econômicas e ambientais que podem desenvolver problemas sistêmicos internacionais, mas também as questões de saúde, de transportes, de consumo etc. Com frequência, a regulação é desenvolvida para dar resposta a um risco percebido, como, por exemplo, o de que doenças com altas taxas de letalidade se espalhem pelo planeta. Por isso, a OCDE recomenda que “[o]s governos devem desenvolver sistemas para a aplicação de princípios científicos de estimação de riscos”, já que a redução de risco em uma área pode aumentar o risco em outras áreas. A regulação deve aproveitar as experiências passadas e tentar evitar eventos catastróficos no futuro187.

187 O Conselho sobre Política Regulatória e Governança da OCDE recomenda aos membros deste organismo internacional que apliquem “[...] conforme apropriado, a avaliação de riscos, gestão de riscos e estratégias de comunicação de risco para a concepção e implementação das regulações para garantir que a regulação seja direcionada e efetiva. Os reguladores devem avaliar os efeitos da regulação e devem elaborar estratégias para implementação responsiva e enforcement.” Ademais, o referido Conselho defende que “[e]m uma economia cada vez mais globalizada, a cooperação internacional na área da regulação deve tornar-se parte integrante da

Em termos sistêmicos, o risco pode ser considerado uma das formas possíveis de vincular o tempo (ao lado da norma jurídica e da propriedade): decisões presentes objetivam vincular o futuro. No entanto, o futuro não está à disposição no presente, razão pela qual a regulação orientada pela preocupação com os riscos, em verdade, avalia o passado, com o objetivo de evitar ou de não causar danos futuros188. Embora não seja possível eliminar a possibilidade de consequências negativas e o sistema deva “operar em condições de incerteza”, a perspectiva do risco permite uma construção do futuro, ainda que esta construção requeira constantes revisões e, portanto, reconstruções189.

Os riscos relacionados ao sistema da saúde (especializado no tratamento das