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Sumário. Texto Integral. Tribunal da Relação do Porto Processo nº

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Tribunal da Relação do Porto Processo nº 0010659

Relator: MARQUES PEREIRA Sessão: 17 Janeiro 2001

Número: RP200101170010659 Votação: UNANIMIDADE

Meio Processual: REC PENAL.

Decisão: NEGADO PROVIMENTO. ALTERADA A QUALIFICAÇÃO JURÍDICA.

CARTÃO DE CRÉDITO MULTIBANCO ABUSO

ELEMENTOS DA INFRACÇÃO

Sumário

Integra um crime de abuso de cartão de crédito previsto e punido pelo artigo 225 n.1 do Código Penal, a conduta do arguido que utilizou um cartão de crédito da ofendida, sem o acordo desta, para, com ele, fazer um pagamento e retirar dinheiro de uma caixa do estabelecimento comercial em que

trabalhava, causando assim prejuízo patrimonial à titular do cartão, e tendo agido livre e conscientemente, sabendo da ilicitude da sua conduta.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Judicial da comarca de Vale de Cambra, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, fazendo uso do disposto no art. 16, n.º 3 do CPP, da arguida Lígia..., imputando-lhe a prática, como autora material, de um crime de furto simples p. e p. no art. 203, n.º 1 e de um crime de abuso de cartão de crédito p. e p. no art. 225, n.º 1, ambos do C. Penal.

A arguida apresentou contestação escrita, na qual, alegou que:

“1.No dia 13/02/99, à hora em que a ofendida estava a trabalhar, a arguida não estava, nem esteve nas referidas instalações do “M...”, ao contrário do que consta no art. 1.º da acusação.

2.Apenas no dia seguinte, dia 14/02/99, pelas 7 horas da manhã, altura em que começou a trabalhar, a arguida encontrou, nos vestiários, debaixo de um

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banco, a carteira que identificou como sendo da ofendida.

3.Com a intenção de a entregar à ofendida e para que esta não fosse levada por qualquer outra utente dos referidos vestiários, a arguida guardou a carteira na sua bolsa.

4.Pelas 13 horas do mesmo dia, a arguida, que era supervisora das operadoras de caixa, aproveitando um momento de pouco movimento no hipermercado, foi fazer as suas compras.

5.Entretanto e sem que se tivesse apercebido do facto, o cartão “Visa

Universo” da ofendida, que estava na carteira desta, tinha caído do bolso da arguida.

6.A arguida, ao pagar, tirou o cartão da bolsa, julgando que se tratava do seu, na medida em que são exactamente iguais e pagou a despesa.

7.Entretanto, apenas no dia seguinte, na medida em que no dia 14/02 ela e o marido saíram com uns amigos, quando ia anotar no extracto da sua conta a despesa é que se apercebeu de que efectuara as compras com o cartão da ofendida e não com o seu.

8.Como em casa não tinha o contacto da ofendida, pensou em ligar-lhe mal chegasse ao “M...”, a explicar-lhe o que se tinha passado, devolvendo-lhe a carteira e a quantia da despesa que inadvertidamente fizera com o cartão dela. Simplesmente,

9.Quando ali chegou, já corria o boato de que a carteira da ofendida tinha sido roubada, sendo que toda a gente falava sobre o assunto e sempre fazendo menção a um roubo e não a um qualquer extravio.

10.A arguida era e é muito jovem.

11.O seu pai é um conhecido industrial da construção civil, em S. João da Madeira, e de relativo sucesso.

12.É também um homem muito severo, que tem como maiores amigos

elementos da PSP e da GNR, na primeira desde o Comandante, sendo que no casamento da arguida estiveram presentes vários e destacados elementos daquelas forças policiais.

13.A arguida ficou aterrorizada, ao ouvir falar em roubo, ao pensar no que faria o seu pai ou o que pensariam os amigos dele se viessem a ouvir dizer que a arguida roubara o que quer que fosse...

14.De tal forma, que ainda hoje o pai não tem conhecimento deste processo e a arguida tudo fará para que o não tenha

15.E não obstante a sua idade, a arguida detinha um cargo de alta

responsabilidade no sítio onde trabalhava, sendo, como se disse, supervisora.

16.O mero boato de que a arguida roubara o que quer que fosse, implicaria o seu despedimento.

17.Além e sobretudo da vergonha que seria para ela...

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18.Ademais, o simples facto de os chefes saberem que ela fizera compras no horário de trabalho, seria de per si, suficiente para a despedirem.

19.Perante estes considerandos, o pai, os amigos do pai, os seus chefes no emprego, a vergonha que seria a suspeita que passaria a impender sobre ela, a arguida ficou aflita, desorientada, com medo, com verdadeiro pavor.

20.E sem saber o que fazer, se explicar tudo de imediato, contar o que e como sucedera e pagar o que gastara do cartão, o que aconselharia o bom senso que a arguida naquele momento, pelas razões explicadas não tinha, ou arranjar maneira de fazer a carteira, mais o valor da despesa que fizera com o cartão aparecer em qualquer lado, por forma a que nunca chegasse a haver sequer a mínima suspeita ou falatório sobre as suas intenções...

21.Mas, em relação à última hipótese, para que a arguida propendia fortemente, levantava-se o problema do cartão, ela fizera as compras exactamente no supermercado onde era supervisora e obviamente todos a conheciam, a operadora de caixa de certeza que se lembraria dela...

22.E sobretudo, assinara o recibo com o seu próprio nome, na medida em que, como já se disse, estava absolutamente, convicta de que o cartão era o seu.

23.(...)

24.Em face do exposto, a arguida andou a hesitar, sem saber o que fazer, na esperança de contactar directa e pessoalmente com a ofendida, a fim de lhe devolver tudo, pagar o que inadvertidamente gastara, apresentar a sua explicação e as suas desculpas.

25.Pois, nunca, nem por um minuto, pensou em fazer seu o que encontrara, mas apenas sair daquela embrulhada em que se vira metida, conservando o emprego e o seu bom nome.

26.E de facto, mal encontrou a ofendida, pagou-lhe, explicou-lhe e apresentou as suas desculpas.

27.O que a ofendida disse aceitar.

28.Entretanto, como as coisas já se tinham sabido, a arguida tomou a iniciativa de se despedir, antes que a entidade patronal o fizesse.”

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, pela qual se decidiu:

a)Condenar a arguida, como autora material, de um crime de furto p. e p. no art. 203, n.º 1 do C. Penal, na redacção do DL 48/95, de 15/03, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 700$00;

b)Absolver a arguida do crime de abuso de cartão de crédito de que vinha acusada;

c)Condenar a arguida em 14.000$00 de taxa de justiça e nas custas do processo, com ¼ de procuradoria a favor dos SSMJ, e em 1% da taxa de justiça, nos termos do art. 13, n.º3 do DL 423/91.

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Inconformada, a arguida interpôs recurso da sentença, rematando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

“1.Acusada a arguida de se ter aproveitado do facto de a ofendida ter estado a trabalhar em determinado dia e hora para ir aos vestiários da empresa, onde ela teria a carteira, furtar-lha, é de relevantissima importância determinar se a arguida ali esteve, realmente, naquele dia. Alegando a arguida, na sua contestação, que não estava, tal facto, pela sua importância, deveria ter sido enumerado na sentença, por forma a determinar com segurança aquilo que o tribunal considerou ou não provado.

2.Bem assim, a alegação de motivos, na contestação da arguida, para não ter de imediato devolvido a carteira que se encontrava na sua posse, também deverá ser objecto de enumeração, não se bastando a exigência legal

constante do n.º 2 do art. 374 do CPP, com a mera alusão, na fundamentação, ao fato de os motivos apontados pela arguida não haverem sido convincentes, sem dizer quais foram e, sobretudo, se e quais se consideraram provados ou não provados.

3.Atenta a relevância da omissão de que se deu conta nas precedentes

conclusões, deve a sentença ser declarada nula, nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 379, nulidade insanável, por insusceptível de ser corrigida, nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 380, “a contrario sensu”, ambos do C.P.Penal.

4.Aliás, à eventual correcção, agora, da sentença, considerando que de prova se trata, opõe-se também o n.º 6 do art. 328 do C. P. Penal. Tratando, como trata este normativo de uma fundamental garantia de defesa do arguido,

permitir-se a correcção da sentença decorrido o prazo ali assinalado, violará o n.º 1 do art. 32 da CRP, pelo que o julgamento terá de ser repetido.

5.Bem assim, sobressai da sentença uma contradição entre a fundamentação e a decisão, a que se refere a al. b) do n.º 2 do art. 410 do C. P. Penal, já que acaba por se declarar não provada a apropriação da carteira com o intuito de a integrar no seu património, bem como se assume claramente, na

fundamentação, um “non liquet” em relação à forma como a carteira entrou na posse da arguida, ao mesmo tempo, que se decide condená-lo por furto, ou seja, por ter subtraído a carteira com intenção de apropriação para si (?).

6.Sem embargo, a verdade que emerge da sentença lida e entendida,

enquanto um todo, é que o que resultou da audiência, foi um tremendo “non liquet”, já pela contradição acerca da intenção de apropriação, já pela dúvida expressamente assumida acerca da forma como a carteira entrou na posse da arguida, já ainda, dos factos através dos quais, com recurso a “juízos de

experiência comum”, se extrai a convicção que conduziu à condenação.

Este “não liquet”, de acordo com o princípio legal e constitucional “in dubio pro reo” deverá ser valorado a favor da arguida, impondo a sua imediata

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absolvição, sem necessidade de repetição do julgamento, pois que o que ofende é, face àquela prova, com aquelas condições e lacunas, a condenação.

Já a absolvição, assumidamente, pela existência da dúvida emergente da prova, corresponde ao cumprimento da lei e a uma manifestação de justiça.

7.A sentença incorre em erro notório de apreciação da prova, vício a que alude a al. c) do n.º 2 do art. 410 do C. P. P., já que releva da fundamentação que a arguida foi condenada com base em toda uma prova indiciária analisada e usada em um só sentido: o da condenação da arguida. Em rigor, uma análise objectiva dos indícios referenciados na fundamentação, vistos à luz dos juízos de experiência comum para que ali se apela, permite claramente uma

interpretação conducente à absolvição da arguida, já pela conclusão de que efectivamente não cometeu o crime por que foi condenada, já pela

intervenção, também aqui do princípio “in dubio pro reo”. Em qualquer caso, porque do processo constam todos os elementos que permitem decidir já e bem, deve a sentença ser revogada, absolvendo-se a arguida”.

Na resposta, o Ministério Público defendeu o não provimento do recurso, mas devendo a arguida ser condenada pelo crime de abuso de cartão de crédito do art. 225, n.º 1 do C. Penal.

Nesta instância, o Ex. m.º Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer, no mesmo sentido da resposta.

Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir.

Estão dados como provados os seguintes factos:

1)No período compreendido entre as 20h e as 22h do dia 13 de Fevereiro de 1999, a ofendida Maria... esteve a trabalhar, como operadora de caixa, nas instalações do hipermercado “M...”, sitas no Lugar de..., ..., Vale de Cambra.

2)A arguida trabalhava como supervisora no mesmo estabelecimento.

3)De modo que não foi possível apurar, a arguida apoderou-se da carteira da ofendida, contendo, para além de documentos pessoais como o BI, carta de condução, cartão de contribuinte, cartão de beneficiária da SS, cartão de eleitora, cartão jovem, ainda um cartão multibanco emitido pela CGD e um cartão “visa universo”, tudo pertencente à ofendida.

4)Apoderou-se dessa carteira, bem como do seu conteúdo, sem a autorização e contra a vontade da ofendida.

5)Uma vez na posse daqueles documentos e cartão de crédito, a arguida decidiu usar este para seu benefício pessoal.

6)E assim, cerca das 13h, do dia 14 de Fevereiro de 1999, a arguida utilizou o cartão “visa universo” pertencente à ofendida, para pagar a quantia de 670

$00 de compras, e para retirar 15.000$00 da caixa.

7)O que fez numa das caixas daquele hipermercado, onde a arguida estava a operar, sem a autorização e contra a vontade da ofendida.

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8)Por essa via, a arguida viu o seu património acrescido daquele montante, no qual a ofendida ficou prejudicada.

9)Somente alguns dias mais tarde, 18 de Fevereiro, é que a ofendida veio a apurar da transação efectuada com o referido cartão, bem como a identidade do agente que a efectuara.

10)Esta, confrontada com tal facto, devolveu nessa data, à ofendida a carteira e todos os documentos, bem como lhe entregou a quantia de 16.000$00 para a ressarcir.

11)A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente.

12)Sabia que a sua conduta não lhe era permitida e que era punida por lei.

13)A arguida, como secretária no “P...”, aufere cerca de 75.000$00 mensais.

14)É casada, não tem filhos, e o seu marido aufere como trolha cerca de 85.000$00 mensais.

15)Vivem em casa própria, pagando o empréstimo para aquisição.

16)Actualmente, tem 23 anos de idade.

17)Não tem antecedentes criminais.

Está dado como não provado que a arguida se apropriou da carteira da ofendida com o intuito de a integrar na sua esfera patrimonial.

Em matéria de motivação da decisão de facto, escreve-se na sentença recorrida:

“O tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada na conjugação das declarações da arguida, bem como da ofendida, e da testemunha Isilda, relatando os fatos.

De facto, a arguida admitiu ter encontrado a carteira da ofendida e que, por engano (descrevendo o contexto), usou o referido cartão para efectuar um pagamento na caixa em que opera a Isilda. A ofendida relatou como descobriu onde e quem usou o seu cartão, e a primeira reacção da arguida quando com tal confrontada (num primeiro momento negou). A testemunha Isilda relatou o modo como a arguida usou o cartão na sua caixa (não foi na sua presença, nem para pagar compras, mas também para tirar 15.000$00 da caixa, tudo ao contrário do que disse a arguida), e ainda o facto de a arguida ter tentado imputar-lhe a prática dos factos. A arguida também não foi minimamente convincente quanto aos seus motivos para não ter resolvido de imediato uma situação da qual, segundo diz, não teve culpa. De qualquer modo, também acresce a situação da arguida de acesso fácil a todo o processado com

dinheiro e uso de cartões já que era uma das supervisoras do hipermercado, e o desaparecimento do recibo que teria assinado aquando do uso do cartão, e rolo de controle, e tudo do relatório do dia elaborado pela testemunha Isilda.

A testemunha Catarina confirmou também a posterior entrega da carteira e do montante de 16.000$00 pois que foi a intermediária. As testemunhas Marco...,

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Ana... e Manuel..., amigos e este marido da arguida, contaram a versão que a arguida lhes contou.

Tudo conjugado e aliado também a juízos de experiência comum, resulta o apurado”.

Prescindida a documentação, o recurso é restrito ao direito, sem prejuízo do disposto no art. 410, n.º 2 e 3 (cfr. arts. 364, n.º 1 e 2 e 428, n.º 1 e 2, todos do C.P.P.).

Os factos e o direito:

As questões em debate são, essencialmente, as seguintes:

-Da existência dos vícios previstos nas alíneas do n.º 2 do art. 410 do CPP;

-Da nulidade de sentença prevista no art. 379, n. 1, al. a) do CPP;

-Da qualificação jurídico-penal dos factos provados.

I-Comecemos pelos vícios processuais previstos nas als. do n.º 2 do art. 410, do CPP:

Segundo dispõe este artigo, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a)A insuficiência para a decisão da matéria de factos provada;

b)A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c)Erro notório na apreciação da prova.

Trata-se de vícios de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, conforme jurisprudência fixada pelo STJ (Ac. do STJ de 19.10. 95, DR, I S-A, de 28.2.95).

Para que se verifique o primeiro é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, carecendo de ser completada.

O segundo supõe a existência de posições antagónicas e inconciliáveis sobre o mesmo ponto, sem que a contradição existente possa ser ultrapassada pelo tribunal de recurso.

O terceiro existe quando o erro é de tal modo evidente que não escapa ao comum dos observadores.

Destes, invoca a recorrente dois:

1)A existência de contradição insanável entre declarar-se não provado que a arguida se tenha apropriado da carteira da ofendida com intuito de a integrar no seu património e a decisão de condenar a mesma arguida por ter subtraído a carteira com intenção de apropriação para si.

Mas, se virmos bem, não se verifica, sequer, qualquer contradição.

Na verdade, dado como não provado que a arguida se tenha apropriado da carteira da ofendida com intenção de a fazer integrar no seu património, veio

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a mesma a ser absolvida do crime de furto da referida carteira, pelo qual veio acusada. A arguida foi condenada por crime de furto, mas, unicamente, pelos factos alusivos à utilização abusiva que fez do cartão de crédito da ofendida dados como provados (integrativos, segundo a acusação, de um crime de abuso de cartão de crédito).

2)A existência de erro notório na apreciação da prova, por resultar da fundamentação “que a arguida foi condenada com base em toda uma prova indiciária analisada e usada em um só sentido: o da condenação da arguida”, tendo sido violado o princípio “in dubio pro reo”.

A invocação deste vício não tem, porém, razão de ser.

Como é sabido, a lei consagra, no art. 127 do CPP, o princípio geral da livre apreciação da prova, de acordo com o qual, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

“In casu”, as declarações e depoimentos prestados oralmente em audiência não foram documentados na acta, o que não permite ao tribunal de recurso conhecer da matéria de facto, a não ser no âmbito do art. 410, n.º 2 e 3 do CPP.

Pois bem.

Como se considerou no Ac. do STJ de 15/04/98 (BMJ n.º 476, p. 91), o erro notório na apreciação da prova não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a do próprio recorrente... e só existe quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta por demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal.

Nesta perspectiva, a violação do princípio “in dubio pro reo”, só pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida se extrair, por forma óbvia, que o julgador optou por decidir, na dúvida, contra o arguido.

Ora, na sentença que se analisa, não se evidencia a violação de qualquer regra lógica ou ensinamento da experiência, que, tão pouco, se alegam.

II-Da nulidade de sentença prevista no art. 379, n.º 1 al. a) do CPP:

Nos termos do art. 379 do CPP:

“É nula a sentença:

a)Que não contiver as menções referidas no artigo 374, n.º 2 e 3, alínea b);

(...)”

Estabelece, por sua vez, o art. 374 (Requisitos da sentença), no seu n.º 2:

“Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados...”.

Diz a recorrente que da sentença não constam enumerados (como provados ou não provados), quer o facto de a arguida não se encontrar na empresa no dia

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em que teria ocorrido o furto da carteira da ofendida, quer os factos

explicativos de a mesma arguida não ter devolvido logo a dita carteira (todos alegados na sua contestação).

Todavia, como bem se sabe, a exigência legal da enumeração - na parte da fundamentação da sentença - dos factos constantes da contestação no elenco dos factos provados e não provados, só pode reportar-se aos factos essenciais, susceptíveis de ter influência na decisão da causa.

Ora, no caso concreto, tendo a arguida sido absolvida do crime de furto da carteira de que veio acusada, a enumeração dos factos a que a mesma se refere, alegados na contestação, não se revelam de interesse essencial para a decisão da causa, na parte objecto de recurso (ou seja, no tocante à

condenação da arguida pelos factos respeitantes à utilização abusiva do cartão de crédito da ofendida).

Improcede, deste modo, a alegada nulidade da sentença.

III-Da qualificação jurídico-penal dos factos provados;

Defende o Ex. m.º Procurador - Geral Adjunto, no seu douto parecer, que os factos provados constituem a prática, pela arguida, de um crime de abuso de cartão de crédito do art. 225, n.º 1 do C. Penal, crime pelo qual a mesma deve ser condenada, ainda que em pena de multa não superior à que foi aplicada (e não do crime de furto do art. 203, n.º 1 do mesmo Código, como se entendeu na sentença recorrida).

Vejamos.

Sem antes, porém, deixar de registar que não veio invocada a existência de nulidade de sentença prevista no art. 379, n.º 1 al. b) do CPP, com fundamento na alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, fora das condições previstas no n.º 1 “ex vi” do n.º 3 do art. 358, , do mesmo Código (nulidade dependente de arguição, nos termos do art. 120, n.º 1 do CPP).

Sustenta-se, na decisão recorrida, que tais factos integram a prática de um crime de furto, porque “a arguida usou (...) um cartão alheio, de uma conta alheia, apropriando-se de dinheiro de outrem, sem conhecimento e contra a vontade do dono, com intenção de o utilizar em proveito próprio ou de terceiro”.

Quanto a nós, parece-nos, tal como entende o MP, ocorrer um crime de abuso de cartão de crédito p. e p. no art. 225, n.º 1 do C. Penal (na redacção dada pelo DL n.º 48/95, de 15/03).

Segundo este artigo,

“1.Quem, abusando da possibilidade, conferida pela posse de cartão de garantia ou de crédito, de levar o emitente a fazer um pagamento, causar prejuízo a este ou a terceiro é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

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(...)

4.É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 206 e 207.

(...)”.

Conforme refere Maia Gonçalves, in Código Penal Português, Anotado e Comentado, 13.ª ed., p. 720, em anotação (2.ª) a este artigo:

“A utilização não autorizada de cartões de crédito já se encontrava

incriminada no direito comparado, nomeadamente, no alemão, cujo modelo se seguiu, embora com significativas diferenças. No direito alemão, o crime tem natureza de próprio, já que só o titular do cartão o pode cometer, enquanto que na formulação deste texto o crime pode ser praticado por qualquer

pessoa, seja ou não o titular. Esta extensão foi justificada no seio da CRCP em atenção ao bem jurídico protegido (património da entidade emissora do

cartão) e à forma como se consubstancia a infracção (abuso da garantia da entidade emissora).

Perante a formulação ampla do artigo, mesmo a utilização de cartão furtado se encontra abrangida na sua previsão”.

São elementos do crime os seguintes:

-utilização de cartão de garantia ou de crédito;

-possibilidade de essa utilização conduzir a que o seu emitente tenha que fazer um pagamento;

-prejuízo acarretado a esse emitente ou a terceiro com tal utilização.[Acerca deste crime, podem consultar-se: Manuel António Lopes Rocha, in Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, CEJ, I volume, p. 96; A. Leonel Dantas, in Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, CEJ, volume II, p. 516 e segs.; Manuel Leal - Henriques e Manuel Simas Santos, Código Penal Anotado, 3.ª edição, p. 225 e segs.; e Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, p. 373 e segs.]

Ora, em face dos factos provados, acima relatados, todos os elementos essenciais do mencionado crime (objectivos e subjectivos) se mostram verificados.

Com efeito, tendo utilizado o cartão de crédito da ofendida, sem o acordo desta, para, com ele, fazer um pagamento e retirar dinheiro de uma caixa do estabelecimento comercial em que trabalhava, não há dúvida de que a arguida abusou da possibilidade conferida pela posse do mesmo cartão de levar o emitente a fazer um pagamento, causando prejuízo patrimonial à própria titular do cartão.

Por outro lado, tendo agido livre e conscientemente, sabendo da ilicitude da sua conduta, está verificado o dolo, que o presente tipo legal supõe (que abrange o abuso e o prejuízo patrimonial).

Aqui chegados, restaria averiguar da pena concreta a aplicar à arguida por

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este crime (a qual, de qualquer modo, não poderia, agora, ser agravada, dado o disposto no art. 409, n.º 1 do CPP, onde se estabelece a proibição de

reformatio in pejus ).

Mas, neste tocante, afigura-se-nos justa a pena de multa fixada na sentença recorrida, em 70 dias de multa, à taxa diária de 700$00.

Decisão:

Em face do exposto, acordam os Juizes desta Relação em negar provimento ao recurso, mas, alterando a qualificação jurídico-penal dos factos provados, em causa, condenam a arguida Lígia..., como autora material de um crime de abuso de cartão de crédito previsto e punido no artigo 225, n.º 1 do Código Penal, na pena determinada na sentença recorrida, isto é, na pena de 70

(setenta) dias de multa, à taxa diária de 700$00 (setecentos escudos), o que se traduz na quantia de 49.000$00 (quarenta e nove mil escudos).

Fixa-se em 3 UCs a taxa de justiça a cargo da recorrente.

Porto, 17 de Janeiro de 2001

Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira Francisco Marcolino de Jesus

Nazaré de Jesus Lopes Miguel Saraiva Joaquim Costa de Morais

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