Tribunal da Relação do Porto Processo nº 0336826
Relator: GONÇALO SILVANO Sessão: 05 Fevereiro 2004 Número: RP200402050336826 Votação: UNANIMIDADE
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
CONTRATO-PROMESSA TÍTULO EXECUTIVO
Sumário
Um contrato-promessa de cessão de quotas em que o promitente cessionário se obrigou a pagar o preço acordado em prestações e se acordou que o não pagamento atempado de qualquer das prestações implicava o imediato vencimento e a consequente imediata exigibilidade de todas as demais, constitui título executivo.
Texto Integral
Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
I- Relatório
Fernando ... intentou execução ordinária contra Maria ..., alegando que celebrou com a executada, em 30.11.93, o documento que se encontra junto aos autos a fls. 4 e 5, que as partes intitularam de "Contrato-Promessa de Cessão de Quotas" e mediante o qual a executada se obrigou a liquidar ao exequente a quantia de Esc.3.990.000$00, em prestações mensais e
sucessivas, sendo certo que só liquidou as primeiras 4 prestações.
Em despacho liminar foi o requerimento executivo indeferido liminarmente, dado que este documento particular, não formalizando a constituição de uma obrigação não reconhecia a existência de uma obrigação já constituída e como tal não era título executivo.
Inconformado com o decidido o exequente recorreu, tendo concluído as suas
alegações, pela forma seguinte:
1ª.- Ao invés do decidido no douto despacho recorrido e com todo o devido respeito, o documento particular dado à execução cumpre todos os requisitos e exigências estabelecidas na alínea c) do artigo 46º do C. P. Civil para ser considerado título executivo. Com efeito,
2ª.- Trata-se indubitavelmente de um documento particular assinado pela devedora/executada, mostrando-se irrelevante para a questão em apreço o título ou nomen iuris que lhe foi dado pelas partes pois, manifestamente, o conteúdo deste (documento) não se esgota no daquele; Por outro lado, 3ª.- Da análise do documento particular em causa, designadamente dos
expressos termos da sua clausula 2ª (e também da 10ª), há que concluir que a mesma constitui a constituição e ou o reconhecimento pela executada duma obrigação pecuniária de montante determinado. Donde,
4ª.- É entendimento do agravante que com a decisão recorrida o Meritíssimo Juiz a quo violou e ou não interpretou correctamente o disposto na alínea c) do artigo 46º do C. P. Civil e, bem assim, o disposto nos artigos 811º e 811º-A do mesmo Código, que, a terem sido devidamente interpretados e aplicados
sempre implicariam a admissão do requerimento executivo com a consequente citação da executada nos termos e para os legais efeitos. Assim,
5ª.- Deverá o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que, pronunciando-se pela exequibilidade do documento dado à execução, admita o requerimento executivo e ordene o prosseguimento da execução, seguindo-se os ulteriores termos.
Houve contra-alegações, onde se defende o decidido.
Corridos os vistos, cumpre decidir:
II- Fundamentos
a)- A matéria de facto provada a tomara em conta é constituída pelo teor do requerimento executivo sobre o qual incidiu o despacho liminar e por isso aqui se tem por inteiramente reproduzido nos termos do nº 6 do artº 713º do CPC.
b)- Apreciação da matéria de facto, o direito e o recurso de apelação.
Sendo pelas conclusões que se determina o objecto do recurso (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº1 do CPC), salvo quanto às questões de conhecimento oficioso ainda não decididas com trânsito em julgado, vejamos, pois, do seu mérito.
Questão única:
Está em causa saber se o contrato-promessa de cessão de quota apresentado, constitui ou não título executivo nos termos do artº 46º -c) do CPC.
O que se quis com o citado artº 46º c) do CPC foi conferir exequibilidade aos documentos particulares, assinados pelo devedor, constitutivos ou recognitivos de obrigações.
O nº 1 do artº 410º do CC define contrato-promessa como a “convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato”.
Calvão da Silva-Sinal e Contrato-Promessa -(8ª edição, pág.15 e ss) concretizando melhor este conceito exprime-se assim:
Trata-se da convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo negócio jurídico, de forma a abranger tanto negócios bilaterais ou contratos como negócios unilaterais.
Frequentemente, o contrato-promessa precede um contrato, seja contrato de eficácia real (compra e venda, trespasse, expropriação amigável, partilha de bens do casal, doação, mútuo, permuta, cessão de quotas, hipoteca, penhor) ou contrato de eficácia meramente obrigacional (locação, cessão de
exploração, sociedade, mandato, empreitada, transporte, seguro, comodato, depósito, fiança, trabalho, etc.).
É dentro deste leque de situações que é considerado o contrato–promessa do qual nasce uma obrigação de prestação de facto positivo, consistente na emissão de uma declaração negocial, que é a declaração de vontade correspondente a um outro negócio cuja futura realização se pretende assegurar, e a que se chama o negócio prometido ou negócio definitivo.
Ao proferir-se despacho liminar de indeferimento partiu-se do princípio, que se consignou no despacho recorrido de fls. 10, de que o documento particular apresentado não constitui título executivo pois que “contrato-promessa, não formaliza a constituição de uma obrigação, nem sequer reconhece a existência de uma obrigação já anteriormente constituída”.
Considerou-se, assim, que o documento particular em causa apresentado pelo exequente não tinha força executiva, pondo-se em causa não só a
exequibilidade extrínseca do título, como também a exequibilidade intrínseca.
Ora quanto à exequibilidade extrínseca, entendemos que a mesma não pode ser colocada em causa, uma vez que resulta do título que o mesmo é assinado pela executada e dele consta a obrigação de pagar determinadas prestações em prazos que já se venceram.
No tocante à exequibilidade intrínseca é necessário atender ao seguinte:
Como refere Lebre de Freitas (A Acção Executiva em Geral, 2ª ed. Pág.18) a pretensão é intrinsecamente exequível quando, em si, reveste a características de que depende a sua susceptibilidade de constituir o elemento substantivo do objecto da acção executiva, para o que basta ter como objecto uma prestação que seja certa, líquida e exigível.
E a exequibilidade da pretensão é autónoma em relação à existência do direito (cfr. Também Amâncio Ferreira-Curso de Processo de Execução, pág. 65 e ss e Teixeira de Sousa-A Exequibilidade, pág.14-18 e em Acção Executiva Singular, pág.14715).
A exequibilidade intrínseca refere-se, assim, à obrigação exequenda e às suas características materiais
Assim e no que toca ao título dado em execução importa considerar que nele foram inseridas clausulas contratuais donde emergem várias obrigações, para além da obrigação principal de celebrar o contrato definitivo.
E como se sabe, em geral, o contrato-promessa cria a obrigação de contratar, ou seja, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido (artº 410º do CC).
Contudo para além da vinculação à celebração do contrato prometido as
partes podem acordar também outras obrigações que emergem igualmente do contrato-promessa e que possam não ser cumpridas.
Segundo Ana Prata- O Contrato-Promessa e o Seu Regime Civil, pág. 655, o não cumprimento dessas obrigações pode também desencadear a aplicação do regime geral adequado à sua exigibilidade.
Trata-se neste caso, de uma distinção entre o contrato-promessa puro e o contrato-promessa com a antecipação de efeitos, que permite por via da autonomização da obrigação principal que a parte credora possa exigir obrigações que não têm a ver directamente com a obrigação principal do objecto do contrato prometido.
Ora no caso concreto (e estamos no domínio de requerimento executivo, a apreciar liminarmente), o que é apresentado como fundamento do pedido executivo, baseado no contrato-promessa assinado pela promitente
cessionária, é o não cumprimento do pagamento de grande parte das prestações, pois (segundo alega o exequente-artº3º), só foram pagas as primeiras quatro prestações.
De entre as obrigações assumidas pelos outorgante do contrato, dentro do
principio da liberdade contratual (artº 405º do CC), face ao alegado contrato- promessa de cessão de quota que passou a vigorar entre as partes (clausula 1ª) a outorgante cessionária, aqui demandada como executada, obrigou-se a pagar o preço acordado (de 3.490.000$00) em prestações mensais e sucessiva de diversos valores.
E clausularam, em concreto, quanto ao pagamento do preço (3ª e 10ª) que as obrigações que para os outorgantes emergem do contrato em causa mantém a sua plena validade e eficácia entre as partes até ao seu integral cumprimento e não se extinguem com a outorga da escritura da cessão de quota prometida e o não pagamento atempado de qualquer das prestações implica o imediato vencimento e a consequente imediata exigibilidade de todas as demais.
Existem, pois, obrigações, em relação às quais, perante a obrigação
sinalagmática da obrigação de cessão de quota nada obsta que possam ser exigidas com base no título apresentado, pois que foi acordado poderem
funcionar independentemente do objecto principal do contrato, que é a cessão da quota.
Como se constata as partes acordaram expressamente podiam exigir essas obrigações até ao seu integral cumprimento e que não se extinguiam com a outorga da escritura de cessão de quota prometida.
A haver discordância (em termos de inexigibilidade das obrigações que se pretendem executar) quanto ao requerimento executivo que é apresentado, nos termos do artº 46-c) do CPC, ela terá de ser equacionada pela executada em sede de embargos, onde então, em face da prova a produzir se possa aferir de toda a factualidade, quer quanto à celebração de escritura definitiva (facto que só foi conhecido pelas contra-alegações e que por isso não pode ser
tomado em conta na apreciação da decisão recorrida que não versou sobre ele) quer ainda sobre a declaração de recebimento do preço que dela consta.
Mas isso já tem a ver com questões de exigibilidade intrínseca ou substancial, que o despacho liminar não tomou em conta.
O contrato-promessa, como documento particular apresentado como título executivo, face às obrigações que nele a executada assumiu, vale por si próprio e extrinsecamente como título executivo, pois que dele flui a
constituição ou reconhecimento da obrigação pecuniária, de acordo com o citado artº 46º-c) do CPC.
Daí que, salvo o devido respeito por opinião contrária, em face do título apresentado, nada obste a que se considere o mesmo com suficiência executiva nos termos do artº 46º -c) do CPC.
Procedem, pois, as conclusões do agravo.
Cfr. entre outros sobre esta matéria, os acórdãos que constam da base dados da DGSI-TRP: Proc.0130746-JTRPP00029876 de 20.9.2001 e em sentido contrário -Proc.0021822-JTRPP00032561 de 26.05.2000).
III- Decisão.
Pelo exposto acorda-se em dar provimento ao agravo, e em consequência, revoga-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro, através do qual se ordene o prosseguimento da execução e seus ulteriores termos.
Custas pela agravada.
Porto, 5 de Fevereiro de 2004 Gonçalo Xavier Silvano
Fernando Manuel Pinto de Almeida João Carlos da Silva Vaz