Almanack. Guarulhos, n.14, p.314- 320 resenhas
CRAIUTU, Aurelian.
A Virt ue f or Courageous M inds: M oderat ion in
French Polit ical Thought 1 7 4 8 - 1 8 3 0
.
Princet on: Princet on Universit y
Press, 2 0 1 5 , 3 3 8 p.
DOI: ht t p://dx.doi.org/10.1590/2236- 463320161415
José M iguel Nanni Soares
Universidade de São Paulo, São Paulo SP, Brasil miguelnanni@ uol.com.br
Revisit ando um arquipélago quase esquecido
Em A Virt ue f or Courageous M inds: M oderat ion in French Polit ical Thought ,
1748- 1830, lançado em capa dura em2012 e impresso em brochura t rês anos depois, o
cient ist a polít ico e hist oriador Aurelian Craiut u, professor da Universidade de Indiana,
Est ados Unidos, oferece aos leit ores um livro desafiador e paradoxal.
Aut or de vários t ext os sobre o liberalismo europeu dos séculos XVIII e XIX,
dent re os quais se dest aca seu livro de 2003 sobre os dout rinários franceses (Liberalism
under Siege: The Polit ical Thought of t he French Doct rinaires), Craiut u é t radut or e
organizador de out ros t rabalhos sobre import ant es pensadores liberais, t endo
apresent ado e t raduzido para o inglês duas obras fundament ais para a dout rina liberal
do século XIX, Considérat ions sur les principaux événement s dela Révolut ion f rançaise,
de M me. De St äel, e Hist oire des origines du gouvernement représent at if , de François
Guizot , além de t er ajudado a organizar dois livros sobre Tocqueville. O est udioso
reuniu o vast o arsenal adquirido em mais de uma década e meia de est udos sobre a
dout rina liberal para avançar a seguint e t ese: a moderação é a quint essência da virt ude
polít ica, um que hist oriadores e cient ist as polít icos ainda est ão
por descobrir (p. 1).
Dividido em duas part es cada qual cont endo t rês capít ulos , o livro oferece
um est udo aprofundado de cert os aut ores liberais francófonos que, exceção feit a ao
clássico e bast ant e conhecido M ont esquieu, se dest acaram no cenário público francês
ent re os moment os de crise do Ant igo Regime e a Revolução de 1789, muit o embora
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como no present e. São eles, na ordem, os líderes monarchiens (monarquianos),
designação pejorat iva que os jacobinos at ribuíram a um grupo het erogêneo de
deput ados da Assembleia Const it uint e formado por M ounier, M alouet , Lally- Tollendal e
Clermont - Tonnerre ent re out ros, e os quais se dest acaram por defender o
bicameralismo e o vet o absolut o do monarca (capít ulo 3); o banqueiro suíço Jacques
Necker, o célebre minist ro das Finanças de Luís XVI, cujas reflexões sobre a Revolução
Francesa e a relação ent re o Poder Execut ivo e os demais Poderes cont inuam
largament e ignoradas at é hoje (capít ulo 4); Germaine Necker ou M me. de St äel, a filha
de Necker e prolífica autora de art igos, panflet os e livros, além de import ant e at ivist a
polít ica nos quadros do Diret ório e da Rest auração (capít ulo 5); o suíço Benjamin
Const ant (capít ulo 6), parceiro afet ivo, int elect ual e polít ico de M me. de St äel
sobret udo nos períodos do Diret ório e do Consulado e, como ela, aut or igualment e
prolífico depois de M ont esquieu, cert ament e o mais conhecido e est udado ent re os
elencados.
Além do prólogo, no qual expõe as just ificat ivas e a met odologia da pesquisa, e
do epílogo, no qual conclui com uma espécie de decálogo explicat ivo da moderação,
o livro apresent a um esboço sobre o lugar ocupado pelo conceit o de moderação no
pensament o polít ico ocident al, da ant iguidade clássica e pensadores crist ãos aos
humanist as da época M oderna e filósofos franceses da Ilust ração (capít ulo 1), bem
como um longo capít ulo dedicado ao aut or de O Espírit o das Leis (1748), o barão de
M ont esquieu (segundo 2) a meu ver o melhor do livro e, não por acaso, a
pedra-angular da obra.
A escolha de M ont esquieu como marco epist emológico inicial do est udo e da
Revolução Francesa como t ela de fundo do t rabalho se just ificam. O primeiro, pelo fat o
de haver delegado papel cent ral à moderação polít ica em sua grande obra, a qual t eve
o mérit o de dest acar os t raços const it ucionais, inst it ucionais e legais da moderação
para além das considerações de ordem ét ica sobre o carát er dos governant es ou dos
legisladores. Ademais, as reflexões polít icas de O Espírit o das Leis e das produções dos
demais aut ores ilust ram os dois principais t emas do livro de Craiut u: a moderação
como cont eúdo de uma agenda crít ica e reformist a do Ant igo Regime; e as diversas
t ent at ivas de inst it ucionalização da moderação polít ica durant e e após a Revolução de
1789, o eixo ou pano de fundo do livro. Inspirado no conceit o de Sat t elzeit ( t
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reflexões de François Furet acerca dos impact os da Revolução Francesa sobre a cult ura
polít ica cont emporânea, Craiut u just ifica a cent ralidade daquele event o pelo fat o de
que cont inuamos a viver num mundo democrát ico moldado e const ruído pelos ideais e
pr (p. 2).
É t endo por base as reflexões polít icas de M ont esquieu e de seus int érpret es
envolt os no fenômeno revolucionário francês que Craiut u desdobra o que ele próprio
designou como as quat ro met a- narrat ivas do livro: I. a moderação abordada pelo
aspect o polít ico e inst it ucional (e não como uma virt ude pessoal ou individual), cujo
propósit o é salvaguardar não apenas a ordem, mas t ambém a liberdade individual; II.
a afinidade exist ent e ent re a moderação polít ica e a complexidade inst it ucional ou
const it ucional, conforme ilust raram M ont esquieu por meio de seu conceit o de
, os monarquianos com a defesa do bicameralismo e do vet o
absolut o, Necker mediant e
, M me. de St äel com cent ro co para
consolidar a república t ermidoriana e Benjamin Const ant em sua t eoria do poder
neut ro; III. a moderação como a defesa sensat a da liberdade, o que não se confunde
com o conceit o filosófico do just e milieu, pois a moderação pode se t raduzir em
at it udes t ant o equilibradas como radicais de acordo com o cont ext o polít ico; IV. por
isso, a ação moderadora não pode ser analisada por meio do vocabulário polít ico
usual (direit a ou esquerda), uma vez que possui conot ações radicais ou conservadoras
conforme o t empo e o espaço. Como bem dest acou o aut or no prólogo, há moment os
em que as int enções moderadoras deixam de ser virt ude e passam a significar
fraqueza ou t raição de princípios poderíamos exemplificá- lo com o infame Pact o de
M unique celebrado ent re as pot ências europeias e a Alemanha nazist a, que suscit ou
um célebre discurso de Churchill.
Na est eira do carát er elást ico de seu t ema, Craiut u opt ou por uma abordagem
eclét ica na qual o cont ext ualismo linguíst ico da Escola de Cambridge e a t radição
hist oriográfica revisionist a de Furet e seus discípulos (especialment e Lucien Jaume,
dest acado est udioso do liberalismo francês do século XIX) se art iculam para dot ar o
livro de um carát er duplo. A Virt ue f or Courageous M ind pode ser lido ora como obra
de filosofia polít ica, ora como t rabalho de hist ória das ideias, dado o const ant e
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Além das referências cit adas acima, é possível ident ificar out ras figuras
import ant es para o desenvolviment o da hipót ese do aut or, t ais como Jonat han Israel,
Judit h Shklar, Norbert o Bobbio e Isaiah Berlin. De acordo com Craiut u, cient ist as
sociais ignoram o conceit o polít ico da moderação por vários fat ores, dent re os quais
se dest acam a persist ência de uma t radição filosófica radical que associa a agenda
moderada à defesa conservadora do st at us quo (de M arx a Israel); a t endência a
enxergar na moderação um programa minimalist a paut ado pelo medo ou pela
oposição aos ext remos (provável alusão a Shklar of
1989); por fim, indo ao encont ro de Bobbio e de Berlin, a visão dominant e, não
rest rit a à academia, que vincula a moderação à sagacidade de um det erminado
agent e polít ico, o qual, para conquist ar seus objet ivos, recorre a quaisquer t ipos de
compromissos ou manobras (o polít ico encarado como um leão ou uma raposa).
Na cont ramão do insist ent e e vigoroso senso comum acerca do t ema, Craiut u
sust ent a inspirado numa cit ação do liberal- conservador Edmund Burke, de quem
t oma de emprést imo nada menos que o t ít ulo do livro uma
arrojada virt ude para ment es corajosa (p. 9). Ela não deve ser reduzida a mero
meio- t ermo ent re ext remos nem t ampouco represent a sinônimo de pusilanimidade,
hesit ação ou cálculo cínico de realismo polít ico. Com implicações inst it ucionais e,
segundo o aut or, desempenhando um papel crucial na aquisição ou fort aleciment o
dos valores democrát icos e liberais, a agenda moderada dos aut ores selecionados
possui em comum pluralismo (de ideias, int eresses e forças sociais), reformismo
(reformas graduais em vez de rupt uras revolucionárias) e t olerância (post ura cét ica
que reconhece limit es humanos, especialment e para a ação polít ica).
Ant es de coment ar o que, a meu ver, const it ui o problema cent ral do livro, a
saber, a ident idade das reflexões moderadas desses aut ores para a aquisição,
manut enção e fort aleciment o da democracia liberal (p. 9), gost aria de dest acar alguns
mérit os da obra.
O primeiro pont o que salient o é, se não a originalidade, ao menos a correção no
t rat ament o de um aut or clássico como M ont esquieu. Craiut u sugere que, mais do que
propor um governo moderado fundado na separação dos poderes, equívoco
reproduzido por incont áveis int érpret es, o que M ont esquieu efet ivament e sust ent ou
foi uma t eoria sobre a divisão dos poderes na qual o Execut ivo e o Legislat ivo
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espírit o da dout rina do equilíbrio de poder vigent e na época e inspirada na
const it uição inglesa, pode ser t raduzida na fórmula de que só um poder é capaz de
cont rolar e regular out ro poder, de modo que a est rit a separação ent re ambos daria
margem a usurpações ou levaria à paralisia inst it ucional. Nos quadros da Revolução
Francesa, esse t ópico da complexidade const it ucional/inst it ucional como condição
sine qua non para a obt enção de um governo livre (moderado) se desenvolve nas
obras dos monarquianos (bicameralismo e vet o absolut o), de Necker (t eoria do
ent relaçament o dos poderes) e, sobret udo, de Benjamin Const ant (t eoria do poder
neut ro). Para demonst rá- lo, Craiut u procedeu a uma crit eriosa pesquisa de font es
primárias (obras e discursos dos aut ores e de seus int erlocut ores, além de t ext os
legais ou const it ucionais) e secundárias (nas mais diversas línguas, do francês e inglês
ao alemão), bem como a um erudit o exercício de int erpret ação e reconst rução
cont ext ual. Do pont o de vist a formal, os únicos senões correm por cont a da omissão
de um import ant e int érpret e at ual da obra de Benjamin Const ant (Tzvet an Todorov),
bem como da inusit ada ausência de uma bibliografia no final do livro, o que dificult a
a leit ura de suas inúmeras e ilust rat ivas not as.
Craiut u foi feliz na escolha e no t rat ament o dos aut ores, na medida em que eles
possuem um núcleo conceit ual comum, a moderação vist a sob o prisma da
complexidade inst it ucional, e defendem princípios filosóficos semelhant es: de
M ont esquieu a Const ant , a mesma preocupação com a moderação das penas e com a
absolut a liberdade de expressão; os benefícios do comércio; as garant ias para a
propriedade privada; o ent endiment o das desigualdades sociais como result ant es da
fort una ou do int elect o, numa visão ot imist a da merit ocracia; o est abeleciment o de
pesos, cont rapesos e divisões ent re os poderes, o que é diferent e da separação ent re
eles; a necessidade de um Judiciário independent e do Legislat ivo e do Execut ivo; e a
crít ica às visões monist as ou absolut ist as do poder que, da vont ade geral de Rousseau
às crít icas de Paine ao governo mist o da Inglat erra, redundaram na mera
t ransferência do poder absolut o do monarca para o poder absolut o do Legislat ivo
(como sabemos, t rat a- se de uma das principais t eses de Furet sobre a Revolução
Francesa).
Segundo Craiut u, o pensament o liberal, devido em grande medida à experiência
da Revolução Francesa e do t raumát ico período do Terror, t eria passado por uma
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exerce a soberania (o monarca, uma maioria popular ou uma minoria abast ada e
ilust rada) e mais com a maneira em que a soberania é exercida, at é concluírem que o
que realment e import a é o est abeleciment o de limit es ao poder a fim de prot eger os
indivíduos da aut oridade polít ica ainda que exercida em nome do povo, da nação,
da vont ade geral, ou sob a bandeira de ideais generosos e humanit ários como a
igualdade.
Exceção feit a a M ont esquieu, que não viveu a t empo de t est emunhar a
Revolução Francesa, os demais aut ores apresent aram diagnóst icos lúcidos sobre as
daquele grande event o. Para além das já
conhecidas int erpret ações liberais de M me. de St äel e Benjamin Const ant para o
período de 1789- 1794 as quais são de conheciment o dos iniciados na hist oriografia
da Revolução Francesa , Craiut u resgat a as valiosas cont ribuições t eóricas e
balanços hist óricos dos monarquianos, especialment e M ounier (Recherches sur les
causes qui ont empêché les Français de devenir libres, 1792), e de Necker, cujo
panflet o De La Révolut ion Française, de 1796, não recebeu uma única edição sequer
ao longo de mais de 200 anos!
A despeit o de uma visão consolidada pelos próprios revolucionários franceses,
dos jacobinos aos girondinos, que viam na ret órica dos deput ados monarquianos
int enções arist ocrát icas ou conspirat órias a serviço da Cort e, Craiut u reabilit a esse
grupo, sust ent ando, à guisa de Tocqueville, que os monarquianos eram dot ados de um
verdadeiro espírit o revolucionário. Embora lut assem pelo est abeleciment o de um
governo moderado balizado por garant ias const it ucionais, eles seriam unânimes na
oposição aos privilégios da nobreza. Craiut u sugere, após reconst ruir as causas que
levaram à derrot a polít ica dos monarquianos, que o Terror poderia t er sido evit ado se
as propost as de M ounier, M alouet , Clermont - Tonnerre, Lally- Tollendal & Cia. t ivessem
sido adot adas, observando que o projet o const it ucional t riunfant e em 1814 e
consolidado durant e a M onarquia de Julho guardava est reit as afinidades com os
diagnóst icos polít icos do grupo (p. 106).
Out ro pont o alt o do livro é o t rat ament o nada condescendent e dispensado a
figuras t ão complexas quant o M me. de St äel e Benjamin Const ant , as quais,
sobret udo no período em que apoiaram o governo republicano do Diret ório,
sust ent aram posições dificilment e classificáveis como moderadas ou liberais. Embora
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cont ext o de sua elaboração, ele poderia t er devot ado um pouco mais de at enção à
quest ão religiosa como fez, por exemplo, Helena Rosenblat t em seu est udo sobre
Const ant , aut ora com a qual Craiut u dialoga frequent ement e e concorda sobre a
import ância da religião para o pensament o polít ico da dupla (p. 200).
Por fim, o aut or conclui que as modernas democracias devem ser encaradas
como formas mist as de governo represent at ivo, não como simples expressões do
, pod
(p. 248). Est a últ ima afirmação nos coloca diant e de um problema e de um paradoxo.
Problema, porque apesar de os aut ores em dest aque apoiarem a igualdade civil, t odos
defendiam uma ou mais cláusulas de exclusão (nível de renda, posses ou
conheciment o formal) quando o assunt o era a part icipação at iva dos cidadãos na
polít ica o que, ademais, const it uía a regra para os liberais da época, sendo Thomas
Paine, referência bast ant e cit ada no livro, rara exceção no campo liberal do período.
Diant e dessa const at ação, e levando- se em cont a o met iculoso t rabalho de
reconst rução hist órica de Craiut u, é uma pena que est e import ant e det alhe t enha sido
inexplorado. Por out ro lado, e aqui adent ramos o paradoxo, o aut or acert a em cheio
ao apont ar a relevância dessa agenda moderada para os est udiosos dos regimes
democrát icos do present e, na medida em que est es, para além do sufrágio universal
como fundament ação e mét odo de funcionament o do sist ema, baseiam- se no
pluralismo, nos direit os individuais e nos direit os das minorias (vide Lucien Jaume, Le
discours jacobin et la démocrat ie).
Ant es de encerrar, caberia levant ar uma quest ão: afinal de cont as, o aut or logra
ou não convencer o leit or de que a moderação é a quint essência da virt ude polít ica?
Com base no problema relat ado acima, arrisco dizer que não. Por out ro lado,
concordo com Craiut u (e Burke) quando ele (s) afirma (m) que a moderação deve ser
encarada como virt ude para ment es corajosas. Ao cont rário do que afirmou
Niet zsche, e com base nas t rágicas experiências do século XX, podemos concluir que
coube just ament e aos est adist as moderados reconst ruir o mundo após o apocalipse
de guerras e regimes t irânicos engendrados a part ir da ment alidade de
Dat a de recebiment o da resenha: 16/11/2016