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Face à espiritualidade: uma educação para a morte

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UNIVERSIDADE DE TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO

FACE À ESPIRITUALIDADE – UMA EDUCAÇÃO PARA A MORTE

TESE DE DOUTORAMENTO EM CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

Orientadora: Professora Doutora Maria da Conceição Fidalgo Guimarães Costa Azevedo Doutorando: António Manuel Teixeira Areias

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UNIVERSIDADE DE TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO

FACE À ESPIRITUALIDADE – UMA EDUCAÇÃO PARA A MORTE

Tese de Doutoramento em Ciências da Educação

Orientadora: Professora Doutora Maria da Conceição Fidalgo Guimarães Costa Azevedo Doutorando: António Manuel Teixeira Areias

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Lei: art. 29 do Decreto-lei nº74/2006, de 24 de Março na redacção que lhe é dada pelo decreto-lei nº 107/2008 de 25 de Junho.

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RESUMO

O contacto privilegiado com crianças e jovens tem vindo a revelar-nos, ao longo dos anos, uma crescente apatia e desinteresse, patenteados, frequentemente, na falta de um projecto de vida. Este facto levou a que questionássemos os motivos que concorrem para que tal aconteça e a discutir, por isso, o papel da educação e, mais concretamente, da escola no desenvolvimento pleno de capacidades e competências que permitam aos jovens entender-se como seres dignos, mas efémeros.

O objectivo deste trabalho é, por conseguinte, compreender de que forma a escola pública portuguesa promove, ou não, o desenvolvimento da espiritualidade integrador da educação para a morte.

Assim, ao longo deste trabalho, dividido em quatro grandes capítulos, procurámos perspectivar o homem como um ser espiritual e mortal. Estabelecemos o diagnóstico da situação vivida nas nossas escolas, quanto à questão da dimensão espiritual das crianças e jovens, o que nos levou, também, à análise de várias perspectivas éticas, enquanto fundamento de educação em valores. E, por fim, debruçámo-nos sobre a educação para a morte, integrando aqui uma proposta didáctica.

Fazendo um estudo baseado num método hermenêutico/problematizador, contamos poder contribuir para demonstrar que podem introduzir-se algumas melhorias na educação e no sistema educativo quando se considera o desenvolvimento da espiritualidade e a educação para a morte.

Esta abordagem teórica poderá, assim, constituir um ponto de partida para experiências pedagógicas inovadoras e promotoras de um desenvolvimento integral e equilibrado das crianças e dos jovens que frequentam a escola pública em Portugal e permitir uma discussão mais abrangente sobre filosofias e políticas educativas direccionadas ao desenvolvimento de cada ser humano, efémero, mas singular e irrepetível.

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ABSTRACT

The privileged contact with children and young people, along the years, has revealed an increasing apathy and indifference often demonstrated by the absence of a life project. This fact has led us to question the motives that contribute to this situation and, therefore, to discuss the role of education and, more precisely, of school in the full development of skills and competences that allow youngsters to see themselves as dignified beings, yet ephemeral.

The aim of this work is, thus, to understand the way the Portuguese public school promotes, or not, the development of spirituality integrating an education concerned with death.

As a consequence, throughout the pages of this work, divided in four major chapters, we tried to view the man as a spiritual and mortal being. We made the diagnosis of the situation in our schools, concerning children and young people’s spirituality, which also led us to the analysis of several ethical perspectives as the basis of a values-based education. Finally, we discuss death education and present a proposal of spiritual education that refers to this theme.

By presenting a study based on an hermeneutical/problematical approach, we intend to demonstrate that some improvement can be brought to education and, in particular, to the educational system, when the development of spirituality and death education is considered.

This theoretical approach can, therefore, establish a starting point to innovative pedagogical experiences, promoting the full balanced development of children and teenagers that attend the Portuguese public school and allowing a broader discussion about educational philosophies and policies, intended for the development of each human being, mortal, but unique and unrepeatable.

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INTRODUÇÃO GERAL

Tendo por base a experiência que nos é dada pelo exercício das funções de professor e também de pároco, ou seja, tendo como fundamento as nossas vivências de educadores, umas vezes formais (na escola), outras vezes informais (nas comunidades paroquiais), que nos permitem um contacto privilegiado com crianças e adolescentes, pudemos perceber as sucessivas transformações que se foram operando na forma de ser e estar dos mais novos. Tais transformações seriam naturais e talvez até desejáveis não fosse o caso de se verificar que elas conduziram as novas gerações a uma vida sem objectivos.

Como professores, todos os dias nos deparamos com a apatia, com o desinteresse, com a desmotivação, com a negligência, com a falta de aspirações dos nossos alunos. Na verdade, qualquer professor pode confirmar a dificuldade que tem na planificação das suas aulas, pois sente, muitas vezes, que os conteúdos abordados, as actividades propostas e as estratégias escolhidas, por muito diversificadas e motivadoras que possam parecer, não chegam para captar o interesse dos alunos.

Mas esta letargia e esta indiferença dos jovens não se manifesta unicamente nos assuntos que dizem respeito à escola. Ela sente-se no seu quotidiano de maneira abrangente. A nossa experiência, mesmo nas paróquias, revela-nos que os adolescentes, cada vez mais, vivem para si mesmos, preferindo as formas de comunicação virtuais em vez das amizades reais, não tendo interesses que vão além do seu mundo contingente, revelando, frequentemente, falta de solidariedade, falta de um sentimento de partilha e de respeito para com o outro e, por vezes, até, para consigo próprio. Não é por acaso que os casos de bullying e os casos de indisciplina se têm vindo a alastrar.

Efectivamente, parece-nos haver um estado generalizado de alheamento ou, diríamos mesmo, de alienação por parte dos jovens relativamente ao mundo real, o que, quanto a nós, se explica apenas pela ausência de um projecto de vida que lhes permita traçar um plano definido e os ajude a dar sentido à sua existência.

Ao longo dos anos, e tendo em conta o que nos foi sendo dado observar, fomo-nos sempre colocando inúmeras interrogações sobre a génese destes problemas: o que leva os jovens à inércia? Por que motivo poucas coisas lhes interessam? Que perspectivas têm de si mesmos? O que ambicionam? Porque o ambicionam? Como encaram a sua vida? E que perspectiva têm da morte, a dos outros e a sua própria?

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7 É nossa convicção que muitos jovens vivem como se a vida fosse infindável. A perspectiva de que todos somos mortais fica arredada e o importante é atender aos desejos e às necessidades do imediato.

Ora isto faz-nos acreditar que precisamos que as nossas crianças e jovens tenham a oportunidade de aprender a viver, suportados pelo desenvolvimento da sua espiritualidade, e tendo como horizonte último a sua efemeridade neste mundo.

Contudo, aquilo que a nossa experiência nos mostra é que, efectivamente, não há um cuidado particular na abordagem a esta ideia de que, afinal, todos pereceremos um dia. A ideia de morte, quase sempre, se esconde como se fosse um fim trágico da nossa existência; um fim distante, que se vislumbra sempre num amanhã longínquo.

Para a maior parte dos jovens com quem lidamos, quer na escola, quer na paróquia, a ideia de morte apresenta-se como um escândalo, como uma interrupção abrupta e injusta, como o fim de tudo. A morte surge, assim, conforme com a realidade que se vive e de acordo com o que se vê.

Ora, o ser humano, sendo o único capaz de se perceber como mortal, é também o único que pode transformar a sua finitude física numa sinergia de acções positivas que o conduzam a uma vida digna, longe dos abismos de uma existência vazia, em que, muitas vezes, se inserem as drogas, o álcool, o consumismo, os prazeres do imediato e o suicídio (este último tendo uma incidência bastante elevada na região onde nos encontramos).

No fundo, trata-se de saber escolher entre adoptar uma escala axiológica válida que possa dar sentido à existência e viver irresponsavelmente como se a morte fosse uma ideia completamente desconhecida.

Sendo testemunhas reais de que as nossas crianças e jovens, cada vez mais desacompanhados, mesmo no seio das famílias, se deixam enredar numa teia de solicitações e de apelos, sem sequer terem a capacidade de avaliar da sua bondade, frequentemente nos questionamos se a educação, e em particular a escola, não tem de ter um papel preponderante no sentido de preparar os mais novos para essa avaliação, ou seja, para a tomada de opções livres, mas conscientes.

Não obstante, para que o homem saiba fazer as suas escolhas, no âmbito de uma escala de valores com sentido, tornando-se, assim, no agente desta metamorfose que, verdadeiramente, gera vida na ideia de morte, é essencial que a sua educação seja colocada numa perspectiva alargada que não pode excluir a espiritualidade.

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8 É aqui que a educação, e nomeadamente a escola enquanto agente educativo institucional, deve assumir a sua centralidade, não escamoteando a importância da espiritualidade na competência de educar para a morte.

Assim, a educação para morte surgiu-nos como tema de investigação para o nosso estudo, procurando investigar os seus fundamentos e tentando encontrar meios de levá-lo à prática na educação formal.

Mais exactamente, o problema que nos ocupou, ao longo da investigação de que dá conta o presente trabalho, é o seguinte: A escola pública portuguesa promove o desenvolvimento da espiritualidade integrador da educação para a morte?

Assim, colocámos várias hipóteses que são os pressupostos do nosso estudo, a saber: 1) as diversas formas de espiritualidade contribuem para uma educação para a morte; 2) a educação espiritual está a ser escamoteada no seio das famílias; 3) a educação espiritual está a ser pouco desenvolvida no seio da instituição escolar; 4) a ética tem um contributo importante na educação espiritual; 5) um jovem educado espiritualmente tem mais facilidade em lidar com a ideia de morte; 6) saber lidar com a ideia de morte é encontrar uma escala axiológica válida para a vida.

Para realizar o nosso trabalho, foi, obviamente, necessário recorrer a estudos já existentes. Por isso se tornou fundamental a recolha de bibliografia que nos pudesse ajudar a analisar o problema que colocámos. Trata-se, portanto, de uma metodologia hermenêutica/problematizadora. O nosso trabalho não é, deste modo, empírico mas sim argumentativo.

Com o fim de perceber se a escola pública portuguesa promove o desenvolvimento da espiritualidade integrador da educação para a morte, tornou-se necessário abordar temas relacionados com a educação, com a espiritualidade e com a morte, mas também com a moral e com a ética, uma vez que, se a educação é feita de escolhas, elas serão certamente feitas em função do que se considera bom ou justo, ou seja, de valores.

Assim, foi necessário proceder a um recolha bibliográfica que se desenvolveu em três fases distintas: a primeira passou pela listagem de obras que supúnhamos podiam ajudar a responder ao tema visado, a segunda centrou-se na análise detalhada dessas obras e a terceira incluiu a sua síntese. Foram recolhidos vários tipos de textos de diferentes autores. Foram, assim, tidos em conta textos de filosofia, de ética, de espiritualidade, de religião, de educação e de educação moral. Também se fez a recolha de textos cuja temática versava a morte e a sua relação com vida. Foi feita, igualmente,

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9 uma pesquisa a nível da legislação educativa em vigor, à data da elaboração do trabalho. Numa primeira etapa, verificou-se que o número de publicações sobre o assunto a estudar era muito extenso, pelo que houve a necessidade, numa segunda fase, de proceder a uma análise desses textos com vista a uma delimitação que tornasse exequível o nosso trabalho. Apenas na terceira fase, e tendo já seleccionado os textos mais adequados ao tratamento do nosso tema, se procedeu às sínteses que nos viriam a auxiliar na defesa dos nossos pontos de vista.

Compete-nos, aqui, explicar, a propósito da recolha bibliográfica, que o que motivou a escolha de determinados pensadores, em detrimento de outros, como pontos de referência para o nosso trabalho foram dois factores fundamentais: em primeiro lugar, os autores citados são reconhecidamente idóneos, como se pôde atestar durante a fase da revisão bibliográfica. Em segundo lugar, são autores pertencentes a diferentes escolas e a distintos períodos históricos, facultando, assim, uma visão alargada das temáticas a abordar, havendo, deste modo, uma maior garantia de que a óptica por nós adoptada não seria demasiado limitada.

No sentido de apresentar uma resposta para o problema que nos dispusemos a tratar, organizámos o trabalho em quatro capítulos distintos, a que demos os seguintes títulos: 1. O homem como ser espiritual; 2. A educação: o homem como ser educável; 3. Educação e valores – teorias e fundamentos e 4. Educar para a morte.

O primeiro capítulo aborda temáticas que se relacionam com a abrangência do conceito de espiritualidade; apresenta o homem como um ser ontologicamente espiritual, distingue a espiritualidade religiosa da não religiosa e comenta a forma como a espiritualidade é encarada nos dias de hoje. Neste capítulo entendemos o homem na dimensão complexa da sua existência, não só como um ser biológico, físico, psicológico ou social, mas como um ser apenas completo na sua espiritualidade que é o que verdadeiramente o distingue de todos os outros seres e que é o que, sobretudo, subjaz à forma como se manifesta e se integra no mundo em que vive.

Espiritualidade e humanidade são duas faces de uma mesma realidade e, por conseguinte, não se pode encarar uma educação efectiva sem que se pense e se cultive essa marca distintiva que apenas aos humanos é peculiar.

O segundo capítulo procura fazer o diagnóstico da situação vivida nas nossas escolas e no seio das famílias, quer ao nível da aprendizagem de conhecimentos e competências, quer ao nível das atitudes e valores e, consequentemente, ao nível do desenvolvimento espiritual das crianças.

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10 Realça-se a importância de uma educação integral que começa desde o nascimento e que se prolonga vida fora, por oposição a uma educação livresca e utilitarista, encarada apenas como um meio para atingir um fim. A educação é um fim em si mesma e só sendo perspectivada desta maneira, poderá responder às necessidades intrínsecas de todo o ser humano.

O terceiro capítulo, servindo-se de algumas das teorias éticas mais relevantes no nosso contexto cultural, intitula-se Educação e Valores e apresenta a relação entre modos de perspectivar a ética, a nos fins últimos do ser humano ou fundando-a nfundando-a rfundando-azão. Discorre tfundando-ambém sobre modelos de educfundando-ação e vfundando-alores.

Sendo verdade que ética e espiritualidade não são de todo conceitos idênticos, também não podemos esquecer que a discussão do bem só faz sentido porque o homem sente a necessidade de se realizar espiritualmente e de concretizar a sua espiritualidade em acções que a legitimem. Daí a premência de analisar a forma como a nossa educação observa a ética e os comportamentos morais na prática pedagógica do quotidiano.

O último capítulo visa mostrar como a morte é frequentemente apagada da vida dos jovens e como a sua falta de preparação espiritual (decorrente das falhas encontradas nos processos educativos) os leva a desviarem-se, muitas vezes, de um caminho tranquilo e amadurecido no seu confronto com a ideia de morte, dificultando, desta maneira, a sua educação integral e sustentada.

Este capítulo visa, ainda, mostrar que é possível tratar o tema da morte de forma natural, mas objectiva, apresentando, para o efeito, algumas sugestões práticas a nível pedagógico e didáctico.

Frise-se que um dos embaraços sentidos na realização deste trabalho teve a ver com avaliação de determinadas fontes, cujo crédito, por vezes, nos levantava algumas dúvidas. No entanto, sendo o tema escolhido muito abrangente, a maior dificuldade prende-se, principalmente, com a delimitação e estruturação do trabalho.

Cabe-nos, ainda, explicar que as citações feitas ao longo deste trabalho estão, sempre que possível, na língua materna do respectivo autor ou em traduções em língua portuguesa. Contudo, sempre que tal se revelou impraticável, recorremos a edições traduzidas em outras línguas, com vista a um maior rigor metedológico.

Assim, por certo, o tema que é nosso objectivo trabalhar não ficará esgotado nas páginas desta tese, mas poderá (é nossa intenção) contribuir para que se coloque a educação em geral e a educação para a morte, em particular, num outro horizonte. O trabalho limita-se a uma análise da realidade existente e à sugestão de algumas pistas a

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11 seguir, num caminho árduo que é o de educar para a morte, tendo por base o desenvolvimento espiritual.

Desejaríamos que esta abordagem, feita de um ponto de vista teórico da educação para a morte constituísse um ponto de partida para experiências pedagógicas inovadoras e promotoras de um desenvolvimento integral e equilibrado das crianças e dos jovens que frequentam a escola pública em Portugal e que, ao menos, possibilitasse uma discussão mais alargada sobre filosofias e políticas educativas direccionadas ao desenvolvimento de cada ser humano, efémero, mas único e irrepetível.

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Capítulo I

ESPIRITUALIDADE

Partimos do axioma de que o Homem é um ser espiritual, embora se torne complicado definir essa espiritualidade, não só porque ela é do domínio do intangível, mas, sobretudo, porque, sendo o seu objecto transversal a um conjunto de disciplinas, desde a teologia, passando pela filosofia, pela psicologia, pela antropologia, pela história, entre outras, torna-se complexa na sua polissemia1. O primeiro ponto que damos por aceite neste contexto é que o ser humano é dotado de capacidades e de inteligência que o distinguem, ao menos em grau, dos restantes seres vivos do planeta e que lhe permitem, não só usufruir do mundo em que vive mas, especialmente, questionar a realidade que o envolve no momento presente, recordar vivências do passado e perspectivar o futuro:

A espiritualidade não é algo que ocorre para além da esfera do humano, mas algo que toca em profundidade sua vida e experiência. A espiritualidade traduz a força de uma presença que escapa à percepção do humano, mas ao mesmo tempo provoca no sujeito o exercício de percorrer e captar esse sentido onipresente. Daí se poder falar em experiência espiritual enquanto movimento e busca do sentido radical que habita a realidade.2

É, pois, sem pretensiosismos, que iremos, ao longo deste capítulo, tentar perceber de que modo o homem exprime a sua espiritualidade. Tentaremos trazer à discussão, embora de forma muito breve, o referido conceito; abordaremos a relação entre o Homem e a sua espiritualidade, traçaremos um confronto entre espiritualidade e religião; faremos uma análise concisa da espiritualidade relativa às religiões abraâmicas e também às religiões orientais mais importantes (hinduísmo e budismo) e lançaremos um olhar a outras formas de espiritualidade como a “Nova Era” ou a maçonaria, para depois sermos capazes de tirar algumas ilações sobre o seu possível contributo para uma educação para a morte.

1 Torralba, Francesc (2010): Inteligencia Espiritual. Barcelona: Plataforma, 12.

2 Teixeira, Faustino (2005): “O Potencial Libertador da Espiritualidade e da experiência Religiosa”.In: Psicologia e Espiritualidade. São Paulo: Paulus, 15.

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1. Espiritualidade

O conceito da espiritualidade, sendo abrangente, reveste-se, como já afirmámos, de especial complexidade devido às constantes mutações sociais e culturais que ocorrem no mundo. Neste trabalho, não pretendemos abordar o fenómeno da espiritualidade de modo exaustivo do ponto de vista teológico ou sequer nos seus fundamentos psicológicos, mas, como dissemos, na sua relação com a educação. Veremos, nessa medida, algumas aproximações ao conceito e classificações possíveis.

Pode falar-se de espiritualidades, no plural, isto é, em concretizações históricas e culturais, as quais podem ser classificadas de várias maneiras, conforme o critério de que se parte.

Na perspectiva das religiões ou das culturas espirituais, podemos falar em espiritualidade budista, taoista, judaica, cristã, muçulmana, etc. Mas, tomando como critério o espaço geográfico e respectivas etnias, classificamos as espiritualidades em oriental, ocidental, africana, americana, europeia, portuguesa… Se olharmos às épocas da história, chamamos à espiritualidade, primitiva, medieval, renascentista, moderna, contemporânea. Dentro do cristianismo, segundo interpretações diversas da escritura e tradição, temos a espiritualidade católica, ortodoxa e de todas as igrejas protestantes. Àquela que é vivida em solidão chama-se eremítica, à vivida em comunidade, chama-se cenobítica ou monacal.3

Ao falarmos em espiritualidade, frequentemente, temos a tendência a relacioná-la com a religião. E, nesse sentido, podemos olhar a espiritualidade como um processo ou intinerário espiritual: conversão, progresso e caminho de união com Deus num decurso de crescimento, da inautenticidade à relação concreta com Deus e à posse da sua verdade como imagem do mesmo Deus 4 . Todavia, é importante perceber que a espiritualidade humana existe para além da religião e pode representar apenas uma vivência interior com capacidade de produzir alterações na vida do Homem, na sua relação consigo mesmo e com os outros:

Entendemos que o termo «espiritualidade» não implica nenhuma ligação com uma realidade superior. Como diz Boff, a espiritualidade designa o mergulho que fazemos em nós mesmos. No momento em que nos voltamos para o nosso interior, e às vezes por meio de técnicas de meditação, mergulhamos no nosso mais profundo, e ao

3Moraes, Manuel (1999): “ Espiritualismo”. In: Verbo Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura (Vol.10).

Lisboa/ São Paulo: Editorial Verbo, 1142.

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experimentarmos a realidade como um todo estamos vivenciando a nossa espiritualidade.

Assim, a espiritualidade é uma actividade do nosso espírito e não necessariamente implica a fé em algum ser transcendente, característica necessária na vivência da religiosidade.5

Segundo L. Rocha e Melo, a palavra «espiritualidade» pode ser usada designando a qualidade do que é espiritual e adquirir várias matizes. Neste caso, todo o ser humano, pelo facto de o ser, tem uma espiritualidade. Pode também falar-se em espiritualidade da alma (entendo esta como «uma força vital, um princípio de vida que anima a matéria e a transforma num organismo vivo»)6; ou como maneira de ser e de viver que resulta de uma fé ou de uma mensagem religiosa, devidamente assimilada e transformada em vida. Podemos, neste sentido, falar da espiritualidade de um santo, de um crente, dentro ou fora de qualquer religião.7

Também para Torralba, contudo, a espiritualidade não é obrigatoriamente um conceito ligado a uma confissão religiosa, mas, sobretudo, um conjunto de necessidades que não podem desenvolver-se nem satisfazer-se de outro modo senão cultivando e desenvolvendo a inteligência espiritual8, vista como um caminho para aceder aos significados profundos e questionar-se sobre o fim da existência. É a inteligênia do eu profundo que enfrenta as questões da existência e que procura respostas credíveis e razoáveis9. Ela permite fazer a vivênvia de experiências transcendentes ou religiosas e também se torna útil na vida prática e na forma como se lida com os probemas do dia-a-dia10.

Na perspectiva cristã, entende-se por espiritualidade a maneira concreta de viver e experimentar a vida espiritual. Conforme os tempos, lugares, e a idiossincrasia, ou de um grupo de pessoas com identidades afins, e conforme os dons particulares de Deus, encontramos na história expressões culturais de vida espiritual, que se traduzem em

5 Giovanetti, José Paulo (2005): “Psicologia existencial e espiritualidade”. In: Psicologia e Espiritualidade. São Paulo: Paulus, 136,137.

6 Coreth, Emerich (1988): O que é o Homem? – Elementos para uma antropologia filosófica. Lisboa:

Editorial Verbo, 172.

7 Melo, L. Rocha (1999): “ Espiritualidade”. In: Verbo Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura (Vol.10).

Lisboa/ São Paulo: Editorial Verbo, 1139.

8 Torralba, Francesc (2010): Inteligencia Espiritual. Barcelona: Plataforma, 17. 9 Idem, Ibidem, 47.

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15 modos específicos de viver a espiritualidade em comunidade. Neste contexto, existem escolas de espiritualidade, ou, simplesmente, espiritualidades.11

Assim o exprime Luigi Borrielo:

O estudo da espiritualidade ou, melhor, da teologia espiritual, trata de evolução existencial da vida segundo o espírito, experimentada pelo homem em caminho para a plenitude da comunhão com Deus. […] a teologia espiritual tenta fixar algumas certezas, como a origem, o crescimento, os meios de amadurecimento dessa vida e o seu fim último, recorrendo, em primeiro lugar à escritura, à tradição e à experiência, ratificada pelo magistério, de místicos reconhecidos. Nessa tarefa de reconhecimento de vida interior, a teologia espiritual vai além das categorias humanas (de tempo e espaço, de antes e depois, de maior e menor etc.), a fim de pôr-se numa perspectiva meta-histórica, no plano da fé adoptado por Deus, que sempre se revelou na carne, portanto, na história, a fim de fazer-se conhecido dos homens. Todos os cristãos, em virtude do batismo, são chamados a viver essa vida do espírito, no próprio estado e na própria condição de vida, tomando o caminho traçado por Deus para chegarem ao estado de homem perfeito.12

Parte-se do princípio que todo o ser humano procura avaliar as razões de bem viver: donde vem, para onde vai e como viver, com sentido e qualidade numa busca constante dos «porquês» e «para quês» da vida, com o objectivo último de ser feliz, vocacionado para servir os outros com ciência e consciência avalizada por critérios de ser bom para agir bem.

A auto-análise sadia, sem preconceitos ideológicos, conduz ao ajustamento da consciência ética imanente (assunto que abordaremos mais adiante). Avaliando-se como pessoa livre e responsável, deve distinguir o bem do mal, a verdade do erro, a justiça da injustiça e o egoísmo da solidariedade. De facto, tudo o que é humano é espiritual devido à própria constituição psicossomática e cultural, capaz de decidir e discernir com critérios fundamentados e correctos. É o dever de ser pessoa boa, que age bem nos modos de pensar, planear, ponderar, decidir e agir adequadamente, a tempo e horas, em vista dos objectivos a atingir. Assim, os parâmetros de pessoa normal enquadram-se na pedagogia de progressivamente aprender a saber, a saber estar, a relacionar-se e a bem fazer, com ciência e consciência ética, numa determinada circunstância de partilha complementar nos empenhamentos profissionais e sociais.13

11 Melo, L. Rocha (1999): “ Espiritualidade”. In: Verbo Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura (Vol.10).

Lisboa/ São Paulo: Editorial Verbo, 1139.

12

Borriello, L.. (2003): “Espiritualidade”. In Dicionário de Mística. São Paulo: Paulus, 381. Dicionário de mística pag.403.

13 Domingues, Bernardo FR, O.P (2004): “Espiritualidade, Fonte de Esperança para um Futuro

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16 Apesar de a palavra espiritualidade ser polissémica, consideramos que devemos trabalhar com uma definição, capaz de introduzir e de servir de suporte a esta tese, que defende a importância da espiritualidade numa educação para a morte. Deste modo, e porque o nosso trabalho não é no âmbito da teologia, decidimos adoptar uma visão abrangente, que interprete a espiritualidade como «percepção situada do fundo onto-teleológico do ser humano, experimentada e tornada consciente, que se traduz dinamicamente na auto-compreensão e auto-realização, na relação com os outros e com o mundo e na abertura ao transcendente.»14

2. O Homem e a relação com a sua espiritualidade

É curioso pensar que todos os dias nos perguntamos o porquê de tudo o que nos rodeia e que as respostas a todas estas questões, por mais objectivas e verdadeiras que sejam, continuam a desaguar em novas questões, existenciais e circunstanciais.

O questionar de cada um a respeito de si mesmo, por sua vez, é o mais intrigante em todos os seus quadrantes: donde venho? Para onde vou? Porque penso assim? Porque ajo desta forma? Porque é isto mau ou bom? Resumidamente: quem sou? Uma pergunta como tantas outras, mas que se reveste de características muito especiais, visto que afecta o próprio Homem que se interroga. No acto de perguntar, ele mesmo é posto em questão. Há uma necessidade constante de formular esta pergunta porque ele próprio é um problema para si mesmo. Torna-se tanto mais problemático quanto mais o espírito e os acontecimentos de época o põem em questão, o ameaçam com a confusão e dissolução de toda a ordem humana e o colocam perante o enigma e perante o paradoxal da sua existência. Impele, assim, a necessidade, sem demora, e com a maior seriedade, que nos interroguemos acerca do Homem, acerca do seu lugar no mundo e acerca do sentido da sua própria existência. Mas pôr a questão implica, desde já, uma constatação: o Homem é quem interroga. É aquele que pode perguntar e tem de perguntar e isto só o Homem pode fazer. Nem as plantas, nem as pedras, nem os animais são dotadas de tal capacidade. Vivem mergulhados na apatia de uma existência que não se põe em questão. Nem o animal, apesar de perceber o mundo que o rodeia, é capaz de perguntar: o que se lhe mostra permanece indiscutível.15

14

Azevedo, Maria da Conceição e Louro, Miguel (2006): A Luz Viva da Morte. Vila Real: Edição dos Autores, 110.

15 Coreth, Emerich, (1986): O que é o homem? Elementos para uma antropologia filosófica. Lisboa:

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17 Ao longo dos tempos tentou responder-se a esta questão: quem é o Homem? E várias foram as respostas, sem, todavia, se chegar à verdade absoluta. Como nos diz Anselmo Borges, fazendo uma pequena resenha sobre o assunto, será o Homem um animal falante? Um animal político (Aristóteles)? Um bípede sem penas (como jocosamente o referiu Platão)? Um animal racional (estóicos e a escolástica)? Uma realidade sagrada (Séneca)? Descartes chamou-lhe um ser que pensa; Pascal um junco pensante; para Karl Marx é um ser que trabalha; enquanto para Nietzsche é o animal capaz de prometer16. Para Edgar Morin, o homem é uma entidade fragmentada em «pedaços de um puzzle que perdeu a sua figura»17. É um ser com origem numa «epopeia cósmica» com quinze mil milhões de anos e caracteriza-se por ser ao mesmo tempo sapiens e demens, e de ter, portanto, com ele, ao mesmo tempo, a racionalidade e o delírio18.

O observador - ele próprio humano - é capaz de discernir o desempenho das actividades do Homem, que por sua vez, mostram que o ser humano é qualitativa e essencialmente diferente dos animais e que é capaz de dizer não aos seus instintos e de optar. Ser Homem é ser livre e moral. Ele consegue simbolizar e falar, é capaz de não viver somente para o imediato e pensar no futuro. É capaz de um ensimesmamento, isto é, entra dentro de si mesmo, desce à sua intimidade e subjectividade pessoal. O homem sabe, e sabe que sabe, e sabe que não sabe ilimitadamente. Tem consciência dos seus limites e, por isso, procura e pergunta pelo que está para além de todos os limites, inclusive pelo infinito e pelo absoluto. É capaz de criar, porque é dotado de uma capacidade fecunda que lhe permite realizar novidades, que transmite às novas gerações, construindo a história com mudanças, num constante progresso que também pode levá-lo à destruição. Curioso é, de facto, que o animal não ri, nem gasta tempo com os mortos. Sinal indiscutível de que há Homem, ao longo da história, são os ritos fúnebres. O Homem é um ser insaciável, dir-se-ia inacabado, que nunca está satisfeito.19 Sendo assim, o Homem é simultaneamente o animal que projecta e antecipa, que transcende sempre e que nunca está concluído.

Não é nossa intenção aprofundar, de uma forma exaustiva, a questão antropológica, mas sim reconhecer que o Homem é um ser espiritual e que a sua

16

Borges, Anselmo (2007): “Monos e Humanos: Origem e Originalidades”. Diário de Notícias. Internet. Disponível em http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=660005&page=1 (consultado em

17

Morin, Edgar (2002): Os Sete Saberes para a Educação do Futuro. Lisboa: Instituto Piaget, 52.

18 Idem, Ibidem, 56. 19 Idem, Ibidem, 8.

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18 transcendência é uma realidade que nos levará, mais adiante, a constatar, igualmente, que ele é um ser educável e sempre em construção, vivendo uma íntima chamada à perfeição no contexto da sua história e das circunstâncias que o rodeiam. Aí terá lugar o seu posicionar-se frente a uma fé ou crença, mediante a sua aprendizagem e opção livre, isto é, a experiência pessoal da sua espiritualidade.

Apercebemo-nos que todo o ser vivo, à excepção do Homem, tem uma existência alheia a qualquer problematização. Deste modo, o Homem é o único que transcende o que a realidade lhe oferece de imediato, na busca do seu fundamento. Ele interroga-se acerca do seu próprio ser. Isto só é possível porque o Homem sempre se procurou conhecer a si mesmo e porque é dotado de consciência e compreensão própria, como nos diz Coreth:

Uma interrogação supõe um certo conhecimento prévio acerca do objecto dessa interrogação. Conhecimento prévio esse que nem é vazio nem indeterminado. É um saber pelo qual «eu sei que nada sei», como já Sócrates dizia. Isto é, sei, sei que não sei tudo e que não sei de modo perfeito. É o mesmo que ter consciência dos limites do conhecimento, um saber que não se sabe – docta ignorantia - a que se referem santo Agostinho e Nicolau de Cusa.

Pois bem, ter consciência dos limites do conhecimento significa já ultrapassar as fronteiras do dado imediato e do que era conhecido na antecipação do que ainda não sei mas quero saber e que por isso pergunto.20

Sendo assim, o Homem, por um lado, conhece-se como um ser que espiritualmente é senhor de si, como um ser que se compreende a si mesmo. Mas, por outro lado, encontra-se vinculado à escuridão da realidade e dos acontecimentos materiais, que lhe impedem a plena compreensão de si próprio. Esta dualidade determina o ser do Homem. O Homem, como ser pensante, transcende, por essência, a dimensão do ser material, que ele possui. Uma faculdade que, à sua escala, já não pertence ao nível material, antes faz parte de uma categoria de ser essencialmente. Por conseguinte, essa faculdade, denominada inteligência ou razão, é imaterial e espiritual. O Homem possui uma vida sensitiva, parecida com a do animal, que lhe permite interagir com o mundo que o rodeia, captando as impressões. Estas passam a percepções conscientes e provocam um impulso sensível a que damos a designação de «força instintiva». Todo este sector da vida corporal é superado mais uma vez pela vida especificamente humana, a vida espiritual, na qual o homem se possui a si mesmo, no seu eu consciente, existe para si e em si penetra e ultrapassa, com o pensamento, a percepção sensível e com a sua

20 Coreth, Emerich, (1986): O que é o homem? Elementos para uma antropologia filosófica. Lisboa:

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19 vontade livre, liberta-se do instinto sensorial e dispõe de si mesmo. Por isso, o Homem é capaz de ser contemplativo, de chorar, de criar beleza, ódio, admiração, inveja, o amor de autodoação. Ele sabe não só que é mortal e que tem de morrer, mas, ao mesmo tempo, que espera para lá da morte.21

Como nos diz Mircea Eliade, mesmo «o homem profano, queira-o ou não, conserva ainda os vestígios do comportamento do homem religioso […] .Faça o que fizer, é um herdeiro»22 e, de alguma maneira, toda a pessoa é religiosa a seu modo ou pelo menos em alguns momentos da sua vida. Para o crente, a religião dá sentido à vida e à morte e ensina-lhe como deve encarar os homens e o mundo em que vive. O Homem cria os seus próprios ídolos e bebe dessa espiritualidade, com que se vai entretendo para poder subsistir, embora, no fundo, continue a sentir-se vazio. A religião e a espiritualidade expressas pelo homem são a dimensão mais importante da pessoa humana que a distingue dos animais.23

Em resumo, todo o homem é capaz, a todo o momento, de observar esta realidade relativa às variadas diferenças existentes entre o ser humano e os outros seres vivos, como já referimos. Somos capazes de sentir que a pessoa humana não se reduz ao seu património genético, mas que a alma anima cada corpo e transcende-o, não se contentando só em habitá-lo, mas superando-o, e encontrando nele um ponto de apoio.24 Como diria Pascal, «O homem não passa de um junco, o mais fraco da Natureza, mas é um junco pensante.»25 Somos, de facto, seres pensantes e livres, que decidimos as nossas vidas de acordo com as palavras que escutamos, os pensamentos que aprendemos, as dúvidas que descortinamos e as questões que formulamos; chegando, deste modo, a compreender que somos seres espirituais, dotados de um espírito capaz de perceber o que está para além do mundo sensível e chegar ao mundo transcendente, como refere São Pedro Crisólogo, na sua homilia sobre o mistério da encarnação: «Porque procuras saber como foste feito, e não queres saber em vista de que foste feito?»26

Procurando respeitar tudo o que atrás dissemos, reiteramos o nosso axioma: todo o homem é um ser espiritual que, no entanto, define a espiritualidade que quer seguir, a qual pode ou não ser fruto de uma fé ou de uma religião (credo religioso) sendo a partir

21 Entralgo, Pedro Laín, (2002): O que é o homem?.Lisboa: Editorial Notícias, 9.

22 Eliade, Mircea (2006): O Sagrado e o Profano. Lisboa: Edição “Livros do Brasil”, 211. 23

Idem, Ibidem, 16.

24 Dumoul, Pierre, (2008): O que é a alma. Lisboa: PAULUS Editora,42.

25

Pascal (2000): Pensamentos. Lisboa: Didáctica Editora, 138.

26 Crisólogo, Pedro (s.d.): “Antologia de Textos Homiléticos”. Ecclesia. Internet. Disponível em

http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/pais_da_igreja/s_pedro_crisologo_antologia.html (consultado em 29 de Agosto de 2010)

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20 dessa espiritualidade tornada consciente que o ser humano pode definir a sua conduta e forma de estar no mundo.

3. Espiritualidade e religião

Como já vimos, no ponto dois deste capítulo, o Homem é um ser intrinsecamente espiritual. Ora a espiritualidade encontra concretização frequente no fenómeno religioso, razão pela qual procuraremos agora escalarecer o conceito de religião, sendo certo que a espiritualidade é vivida de forma distinta, dependendo do contexto em que surge ou se insere, quer se trate de um contexto religioso, histórico ou social:

(…) o homem não se encontra fixo no modo rígido ao acontecer natural, antes é obrigado a confrontar-se com a realidade para realizar nela a sua vida em autonomia e responsabilidade. Daí a pergunta pelo fundamento e sentido da vida em que vive. […] a verdade é que esta pergunta constitui uma afirmação acerca do próprio homem e do modo como ele se entende no seu mundo, na história e no conjunto da realidade27.

Apesar das circunstâncias em que a espiritualidade humana é experimentada, ela conduz a vida do Homem numa determinada direcção: a da busca incessante pela felicidade, que está num plano superior relativamente ao mundo material em que vive. A espiritualidade aponta o caminho da virtude, da verdade, da beatitude:

Quem está atento à dinâmica da história e da própria consciência ética, dá-se conta que há um permanente impulso vital que tudo orienta, de forma firme e discreta, para a finalidade da realização pessoal e colectiva e que passa pela liberdade de bem escolher os meios para conseguir a felicidade e a santidade, resultantes de viver e partilhar a vida com sentido orientada para um objectivo estimulante 28.

Perante a realidade da morte29, (a morte dos outros que se apresenta como ameaçadora para o próprio), a interrogação e a esperança, enquanto dimensões da

27 Coreth, Emerich (1988): O que é o Homem? – Elementos para uma antropologia filosófica. Lisboa:

Editorial Verbo, 24,25

28 Domingues, FR Bernardo (2004): “Espiritualidade, Fonte de Esperança para um Futuro Humanizado”.

In: Revista de Espiritualidade (n.º 48), 315-320.

29 Como nos dizem Tullo Goffi e Bruno Secondin:

“De un camino semejante podemos ciertamente recoger al menos la convicción de que no existe teoria de la experiencia espiritual que no haya de tener en cuenta la experiencia de la muerte.” – Goffi, Tullo e Secondin, Bruno (1986): Problemas y Perspectivas de Espiritualidad. Salamanca: Ed. Sígueme, 17.

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21 espiritualidade, assumem concretização em rituais religiosos. Quanto ao tema da morte, aboradá-lo-emos adiante. Por agora, Sublinhamos apenas que a preocupação com o fim é indesmentível, desde os primórdios da humanidade, documentada pela existência de túmulos e ritos funerários.

Marie de Hennezel chega a perguntar: “Sem este problema [a morte], teríamos nós desenvolvido tantas filosofias, tantas respostas metafísicas, tantos mitos?”30

Poderá causar-nos surpresa saber que, na Austrália, foi encontrado o esqueleto de um homo sapiens do sexo masculino com trinta mil anos de idade. Estava coberto de ocre, o sinal mundialmente difundido da ideia de uma vida após a morte. Ou seja, esse homem, ao que tudo indica, foi sepultado ritualmente. Um primeiro testemunho claro da cultura e da religião entre os primitivos31.

A morte foi, desde sempre, entendida, pelo ser humano, como uma passagem. E para que essa passagem seja bem sucedida há que preparar a sua chegada, vivendo de acordo com os preceitos espirituais em que se acredite. Podemos considerar, portanto que o Homem sente o apelo irreprimível da espiritualidade porque ele é o único capaz de perspectivar a sua finitude corpórea.

Sendo verdade que a espiritualidade não se manifesta necessariamente em forma de uma religião, é indiscutível que as religiões assumem, neste campo, um papel fundamental, uma vez que crer num Deus ou em Deuses é uma forma de dar sentido à morte, pois as doutrinas e os textos sagrados oferecem orientações morais, dão ensinamentos e mostram modelos de conduta, contrapondo sempre o bem e o mal32.

Ao contrário do que parece, o conceito de religião não é tão linear quanto se possa pensar. É óbvio que ele anda sempre associado à divindade. E isso mesmo o atestam algumas definições encontradas em dicionários e em enciclopédias, que explicam a religião como a crença na existência de um poder sobre-humano e superior do qual o homem se considera dependente e também como um conjunto de preceitos, práticas e rituais pelos quais ele expressa essa crença. Por certo, estas definições aludem ao que é essencial, no que à ideia de religião diz respeito. Dito de outro modo, poderemos dizer que «todo fenómeno religioso, sejam quais forem as suas formas de articulação concreta, se encontra marcado por uma referência transcendente e possui uma função concreta e existencial-pragmática»33. No entanto, diversas perspectivas podem ser assumidas, no

30

Hennezel, Marie (2002), Diálogo com a morte, Lisboa: Ed. Notícias, 12.

31 Küng Hans (2004): Religiões do Mundo – Em Busca dos Pontos Comuns. Campinas: Verus Editora, 22. 32 Wilkinson, Philip (2009): Religiones. Madrid: Espasa, 10.

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22 sentido de abordar esta noção e, como qualquer campo ligado às vivências humanas, a religião é encarada de acordo com circunstâncias de carácter histórico, filosófico, psicológico e social, sendo que as diversas correntes hermenêuticas também condicionam a sua exegese. Aliás, a própria etimologia da palavra faz prova da dificuldade de se chegar a um consenso34.

Na verdade são muitos os estudiosos e várias as teorias sobre o fenómeno religioso35, consoante o ponto de vista adoptado, sendo certo, todavia, que a religião pode ser estudada de um ponto de vista social36, onde incluímos factores históricos, filosóficos e culturais:

Seria impossível interpretar a história dos povos, as diversas culturas e civilizações sem a religião. Por exemplo, enquanto a cultura ocidental está marcada e em grande parte se identifica com o cristianismo (católico ou protestante), os países árabes não se concebem na sua estrutura sócio-política sem o islamismo. As nossas crenças, valores, motivações, experiências, desejos, sonhos e comportamentos, enfim, maneiras de pensar, de amar e de viver, e bem assim, a cultura, a arte nas suas mais diversas manifestações, e até a política e outras expressões humanas estão marcadas pela religião37.

Mas as questões ligadas à religião podem igualmente ser encaradas de um outro prisma: o individual, em que ela é vista como «uma relação vivida e prática com o ser ou seres sobre-humanos em que se crê. [Ou seja, como] um comportamento e um sistema de crenças e sentimentos»38.

Apesar de todas estas diversas ópticas, há factores que nos parecem indiscutíveis, quando falamos em religião. Ela tem subjacente a procura da verdade sobre o princípio e

34 Veja-se o que nos diz a enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura sobre o assunto:

“O conceito de Religião é ainda hoje muito debatido, porque, ao que parece não pode ser definido nem por uma simples descrição fenomenológica, nem por uma redução aos elementos essenciais. No primeiro caso seria demasiado complexa para ser viável. No segundo, correria o risco de ser arbitrária, dado que o conceito de essencial depende do ponto de vista que se tome. […] Etimologicamente Religião deriva do latim (relegio). Porém o significado de relegio não é claro, pois, váriasraízes lhe podem ter dado origem Cícero (106-43 a. C) no De natura Deorum (II, 28,72) deriva relegio de relegere («considerar cuidadosamente»). A religião significaria então um procedimento consciencioso no desempenho de todas as obrigações, mesmo penosas, em relação aos Deuses […]. Lactâncio, escritor cristão (m.330 d.C), faz derivar (Div. Inst. IV, 28, 2) relegio de religare («ligar», «prender»). Portanto para Lactâncio, certamente por influxo da religião cristã, a Religião liga os homens a Deus pela piedade.” - Cabral, R. (s.d.): “Religião”. In Verbo Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura (Vol.16). Lisboa: Editorial Verbo, 229-255.

35

Oliveira, José H. Barros de (2000): Psicologia da Religião. Coimbra: Livraria Almedina, 38

36 Temos desta visão o exemplo de Fromm, que nos diz que a religião é:

“(…) qualquer sistema de pensamento e acção, partilhado pelo grupo, que fornece ao indivíduo um quadro de orientação e um objecto de devoção”. - Fromm, E. (1950): Psychoanalysis and Religion. New Haven: Yale University Press, 21.

37 Oliveira, José H. Barros de (2000): Psicologia da Religião. Coimbra: Livraria Almedina, 6 38 Thouless, R. (1961): An Introduction to the Psychologyof Religion. London, 3-4

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23 a finalidade do mundo e do Homem e a sua relação com um ou vários Deuses39. A incapacidade de compreender o começo das coisas e a urgência de dar sentido à vida estiveram, muito provavelmente, na origem das diferentes crenças e dos diferentes rituais, que foram sendo praticados, desde que o homem se reconhece como tal. Quer isto dizer que o Homem sentiu, desde os primórdios, o apelo da Divindade e do sagrado40. E é deste apelo que se cria uma relação entre aquele e o transcendente, e é desta relação que nasce a religião, concretizada em ritos, cerimónias e cultos, normalmente praticados em comunidade.

Em suma, o fenómeno religioso é vasto e variado, mas intrínseco à humanidade e, quaisquer que sejam as suas manifestações, ele é o reflexo de uma apreensão da realidade e da busca de um sentido, o que tem como consequência o encontro com o sagrado:

(…) é difícil imaginar de que modo o espírito humano funcionaria sem a convicção de que existe no mundo alguma coisa irredutivelmente real; e é impossível imaginar como poderia aparecer a consciência sem conferir significado aos impulsos e às experiências do homem. A consciência de um mundo real e significativo está intimamente ligada à descoberta do sagrado. Mercê da experiência do sagrado, o espírito humano captou a diferença entre o que se revela como real, poderoso, rico, significativo e aquilo que se mostra desprovido dessas qualidades, isto é, o fluxo caótico e perigoso das coisas, os seus aparecimentos e desaparecimentos fortuitos e vazios de sentido». Em suma, o sagrado é um elemento estrutural da consciência e não uma fase da história dessa consciência. Nos mais arcaicos níveis de cultura, viver como ser humano é um si um acto religioso, pois a alimentação, a vida sexual e o trabalho têm um valor sacramental. Por outras palavras: ser – ou, antes, tornar-se – um homem significa ser «religioso».41

3.1. As religiões abraâmicas

Olhamos, de modo particular, as três religiões a que chamamos abraâmicas e analisaremos, a seguir, alguns traços da sua espiritualidade. Damos-lhe um tratamento particular, primeiro, porque estas religiões são as que mais crentes movimentaram ao longo de séculos e que continuam a movimentar nos dias de hoje; e, segundo, em virtude da sua relevância para a compreensão do contexto cultural em que nos situamos.

Ao contrário do que muitos poderão pensar, as religiões abraâmicas têm uma raiz comum. São assim chamadas uma vez que os descendentes de Abraão preservaram a fé num só Deus ao longo dos tempos, dando lugar a três religiões monoteístas: o judaísmo,

39 Oliveira, José H. Barros de (2000): Psicologia da Religião. Coimbra: Livraria Almedina, 39 40 Duque, João Manuel e Duque, Olga Fernandes (2005): Educar para a diferença. Braga: Alcalá, 75. 41 Eliade, Mircea

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24 o cristianismo e o islamismo. Todas acreditam num Deus único, reconhecendo Abraão como o primeiro crente, a quem Deus se revelou42.

Vejamos, agora, alguns elementos distintivos de cada uma delas, a fim de tornar claro como interpretam o encontro com o transcendente, a profissão de fé, a salvação como finalidade, a moral religiosa e a morte.

Os judeus acreditam num Deus uno e eterno que há-de enviar um Messias para a salvação do povo de Israel, tal como anunciara o profeta Daniel, depois de o anjo Gabriel lhe revelar que um Ungido surgiria e seria morto após a reedificação de Jerusalém, antes de a cidade e o templo serem novamente destruídos:

Pois sabe e compreende isto: Após a declaração do decreto sobre a restauração de Jerusalém até a um Chefe Ungido, haverá sete semanas. Depois, durante sessenta e duas semanas, Jerusalém reaparecerá, será reedificada, com praças e fosso. Mas tudo isto será feito entre angústias e dificuldades. Após estas sessenta e duas semanas um Ungido será exterminado e ninguém lhe sucederá. A cidade e o santuário serão destruídos por um chefe invasor, a qual acabará submergida e até ao fim haverá guerra e devastação decretada43.

Moisés é visto como o fundador do judaísmo, pois a ele foi delegada a tarefa de libertar o seu povo da escravidão do Egipto. A ele foram igualmente entregues, por Deus, as Tábuas da Lei, o que implica a renovação da aliança outrora estabelecida entre Deus (Jeová ou Javé) e Abraão, e que incluía a terra prometida:

O Senhor disse-lhe: «Fica, desde já, a saber que os teus descendentes habitarão como estrangeiros numa terra que não é deles, que serão reduzidos à escravidão e oprimi-los-ão durante quatrocentos anos. Mas julgarei também a nação que os escravizar, e sairão, depois, com grandes riquezas dessa terra. Tu, porém, irás em paz reunir-te aos teus pais e serás sepultado após uma ditosa velhice. Apenas à quarta geração eles voltarão para aqui, pois a iniquidade dos amorreus não chegou ainda ao seu termo.» Quando o sol desapareceu, e sendo completa a escuridão, surgiu um braseiro fumegante e um fogo ardente que passou entre as metades dos animais. Naquele dia o Senhor estabeleceu aliança com Abraão dizendo-lhe: «Dou esta terra à tua descendência desde o rio do Egipto até ao grande rio, o Eufrates, (…)»44.

O livro sagrado dos Judeus é, por excelência, a Tora, ou melhor, o Pentateuco, constituído pelos cinco primeiros livros da Bíblia: Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deutronómio. A Tora constitui o texto central do judaísmo. Contém os relatos sobre a

42

Comissão Episcopal da Educação Cristã (2008): Desafios – Manual do aluno 7ºAno. Lisboa: Fundação do Secretariado Nacional da Educação Cristã, 60.

43 Daniel 9, 25-26. In Bíblia Sagrada (1976). Lisboa. Editorial Verbo, 1029. 44 Génesis 15, 13-18.

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25 criação do mundo, sobre a origem da humanidade, sobre a aliança de Deus com Abraão e com a sua descendência, sobre a libertação dos filhos de Israel do Egipto e a sua peregrinação de quarenta anos até a terra prometida. Inclui ainda os mandamentos e leis que teriam sido dados a Moisés para que este os entregasse e ensinasse ao seu povo.

O Cristianismo é, obviamente, uma religião mais recente, dado que surge a partir do momento em que Jesus, visto como o Messias ou como Cristo45 começa a revelar ao mundo a sua mensagem. Uma mensagem de paz, de amor e de fraternidade que foi veiculada através dos evangelhos escritos por São João, São Lucas, São Marcos e São Mateus.

Para a maioria dos cristãos, Deus é Pai, Filho e Espírito Santo, ou seja o seu credo baseia-se na Santíssima Trindade, que aliás está presente no baptismo de Jesus:

Tendo sido baptizado todo o povo, e no momento em que Jesus se encontrava em oração, depois de ter sido baptizado, o Céu abriu-se e o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma corpórea, como uma pomba. E uma voz veio do Céu: «Tu és Meu Filho muito amado; em Ti pus todo o Meu enlevo46.

O seu livro sagrado é a Bíblia, mas já não apenas a Bíblia dos Judeus. Ela inclui o Novo Testamento, constituído, entre outros, pelos quatro evangelhos, livro de referência para os cristãos, pois aí temos não só relatos sobre a vida de Jesus, mas também um convite à adesão ao cristianismo. Cristo é apresentado como o Messias, filho de Deus e salvador da humanidade. O Novo Testamento contém, por isso, discursos, parábolas e narrações, que visam a conversão, com vista à salvação.

O Islamismo foi amplamente difundido por Maomé, que terá vivido no período entre 570 e 632 d.C. De acordo com os Islâmicos, Maomé foi o último profeta e foi incumbido, por Deus, de dirigir uma mensagem à humanidade. Os islâmicos aceitam as figuras de Abraão, Moisés e Jesus, colocando-as todas no mesmo patamar: o de mensageiros de Deus, que precederam Maomé. Aliás, estas figuras surgem no Alcorão (que significa recitação47) livro sagrado do Islão que fala sobre as origens do Universo, sobre o Homem e as relações com o Criador. Ele determina também as leis para a sociedade, moralidade, economia e vários outros assuntos.

45 Tanto uma palavra como a outra encerram a mesma ideia: Messias (hebraico), Cristo (grego) ou Ungido

têm o significado de consagrado – Academia das Ciências de Lisboa (2001): Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea. Lisboa: Editorial Verbo, 2449.

46 S. Lucas 3, 21-22. Bíblia Sagrada (1976). Lisboa. Editorial Verbo, 1173.

47 Comissão Episcopal da Educação Cristã (2008): Desafios - Manual do aluno 7º Ano. Lisboa: Fundação

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26 Para os muçulmanos o ano de 610 (tinha Maomé quarenta anos) foi fundamental, dado que, durante um dos retiros espirituais que era comum Maomé realizar, teve a aparição do anjo Gabriel que lhe ordenou que declamasse uns versos enviados por Deus, e que o informou que Deus o tinha escolhido como o último profeta enviado à terra. Maomé acreditou no Anjo e fez o que este lhe ordenou48. Depois da sua morte, os versos por si recitados, que reflectem os ensinamentos de Deus (Alá), foram compilados e organizados no livro de que já falámos, o Alcorão.

Quanto à profissão de fé, o Islão assenta em cinco pilares basilares: o primeiro tem a ver com a unicidade de Deus, sendo Maomé o seu profeta (shahada); o segundo diz respeito à oração (salat); o terceiro refere-se à esmola (zakat); o quarto reporta-se ao jejum (sawn) e o último relaciona-se com a peregrinação (haj)49.

Como facilmente se constata, estas três grandes religiões têm muitos aspectos comuns, partilhando inclusivamente alguns textos e figuras. Contudo, se analisarmos mais de perto outras religiões ou propostas sapienciais, verificamos que a necessidade latente no Homem de estabelecer contacto com o transcendente e de, dessa forma, alcançar a verdade, é inquestionável. Basta pensarmos no Hinduísmo ou no Budismo que, embora não admitam a concepção de um Deus pessoal Todo-Poderoso, encaram a libertação humana como fim a atingir, sendo que o Homem é habitado por várias espécies de sofrimentos, que o aprisionam e que o impedem de alcançar a liberdade e a beatitude ou, se preferirmos, a salvação, a não ser que tenham a capacidade de renunciar aos bens e às ambições mundanas50.

4. A espiritualidade das religiões abraâmicas

Depois de resumidamente termos apreciado o que caracteriza cada uma das religiões abraâmicas, vejamos agora a forma como essa espiritualidade influencia (ou não) a maneira como os crentes se relacionam com Deus, com os seus semelhantes e consigo mesmos.

4.1. A espiritualidade na religião judaica

A espiritualidade na religião judaica, a mais antiga das religiões abraâmicas (nas suas diversas ramificações), é fundamentada nas leis da Tora (ensinamento), que encerra os valores centrais do judaísmo: a santidade da vida, a importância da justiça, o ideal da

48 S. Ahmed, Akbar (2002): O Islão. Lisboa: Bertrand Editora, 27. 49 Idem, Ibidem, 50-57.

50 Eliade, Mircea

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27 generosidade e a necessidade de educar as crianças51 (de importância capital na transmissão das crenças e dos valores de geração em geração (Deut 6, 6-10). Isto mesmo se pode comprovar no Decálogo (Ex 20,1-17) que sintetiza a Lei, dada por Deus ao povo de Israel, no âmbito da Aliança que com ele estabelece. Este, ao anunciar os mandamentos do amor a Deus e ao próximo, define, para o povo eleito, o caminho de uma vida livre da escravidão e do pecado:

O Senhor pronunciou, então, estas palavras: «Eu sou o Senhor, Teu Deus, que te fez sair da terra do Egipto, de uma casa de escravidão. Não terás outro Deus além de Mim. Não farás para ti imagens esculpidas, nem qualquer imagem do que existe no alto dos céus, ou do que existe em baixo, na terra, ou do que existe nas águas por debaixo da terra. Não te prostrarás diante delas e não lhes prestarás culto, porque Eu, o senhor teu Deus, sou um Deus cioso que pune a iniquidade dos pais nos filhos, até à terceira e à quarta geração daqueles que Me ofendem, e uso de misericórdia até á milésima geração para com os que Me amam e cumprem os meus mandamentos. Não pronunciarás em vão o nome do Senhor, teu Deus, porque o Senhor não deixará impune quem pronunciar o Seu nome em vão. Recorda-te do dia de Sábado, para o santificar. Trabalharás durante seis dias e levarás a cabo todas as tuas tarefas. Mas o sétimo dia é de descanso, consagrado ao Senhor Teu Deus. Nesse dia não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem os teus animais, nem estrangeiro algum que estiver adentro das tuas portas. Porque em seis dias o Senhor fez o céu, a terra, o mar e tudo quanto contém, e descansou ao sétimo; por isso o Senhor abençoou o dia de sábado e santificou-o.

Honra o teu pai e a tua mãe, para que os teus dias se prologuem na terra que o Senhor, teu Deus, te dará. Não matarás

Não cometerás adultério. Não roubarás.

Não dirás falso testemunho contra o teu próximo.

Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento nem coisa alguma que lhe pertença»52.

É fácil perceber, apenas nas palavras deste decálogo, como as questões éticas e morais colocadas por Deus afectam a vida do Homem na sua relação com Ele e com os seus semelhantes. São deveres para com Deus e deveres para com o próximo que contemplam, todavia, um equilíbrio entre os aspectos religiosos e os aspectos sociais, visto que Deus assume como ofensa a ele infligida a iniquidade cometida contra o próximo:

O conceito judaico de espiritualidade e, portanto, de santidade (Qedusah) tem sua origem na concepção de que a religião não pode ser considerada compartimento estanque na vida, mas deve penetrar toda a existência humana. Para o judaísmo, adorar a Deus e espiritualizar a

51 Wilkinson, Philip (2009): Religiones. Madrid: Espasa, 61. 52 Êxodo 20, 1-17.

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28

vida do homem significa tender à realização da santidade, transferindo-a ptransferindo-artransferindo-a todtransferindo-as transferindo-as transferindo-actividtransferindo-ades humtransferindo-antransferindo-as. […]

A categoria da santidade possui valor em que não está necessariamente implicado o conceito ético, embora em geral assim ocorra. Por conseguinte, ela pode ser definida como acção dotada de espiritualidade judaica aquela em que o ético é evidente e a santidade aparece como que simbolizada por sua conexão com a divindade53.

Os dez mandamentos, em particular, e a Tora de uma maneira geral54, são um conjunto de regras e princípios que orientam a vida humana no sentido do que é certo, por oposto ao que é errado, ou, em termos religiosos, pecado. Sendo certo que também os cristãos aceitam a probidade destes mandamentos, estes continuam a resumir a Lei fundamental para o povo de Israel, dado que a perspectiva judaica do mundo, tem Deus como o criador do universo, que governa a vida dos homens, tendo escolhido o povo judeu para com ele estabelecer uma aliança eterna, transformando-o, assim, no Seu povo eleito. Esta aliança de Deus com os Judeus, através de Moisés, só foi possível, porém, por meio de um compromisso relativo ao cumprimento dos mandamentos:

A essência do judaísmo é o facto de existir uma aliança, ou pacto, Entre Deus e os crentes. Esta aliança estabelece certas instruções que os judeus devem seguir. O judaísmo é tanto sobre a forma como as pessoas vivem as suas vidas como sobre conceitos do sobrenatural. 55

É certo que as leis da Tora regulam, sobretudo, a relação dos homens com Deus e com os seus iguais. Por isso se verifica a prescrição de condutas respeitantes aos mais variados aspectos da vida humana. Aliás, o respeito pela vida humana é basilar na espiritualidade judaica. Nem de outra forma poderia ser, pois o homem foi feito por Deus à Sua imagem e semelhança e, consequentemente, todos os seres humanos devem ser tratados com bondade. Só assim se respeitará o próprio Deus56.

De forma bastante sintética, podemos concluir que a espiritualidade judaica procura a perfeição, tentando fazer cumprir as leis transmitidas por Deus e que se baseiam na justiça e no humanitarismo57, tornando-se, assim, possível a continuidade da aliança firmada. A acrescer a isto, a ideia da vida para além da morte, a espera do

53

Sierra, S (1989): “Judaica (Espiritualidade)”. In: Dicionário de Espiritualidade. São Paulo. Edições Paulinas, 648.

54 “La tora contiene 613 instrucciones que tratan de todo, desde la comida y forma de vestir hastsa los

rituales y fiestas.” - Wilkinson, Philip (2009): Religiones. Madrid: Espasa, 67.

55“La esensia del judaísmo es el echo de existir una alianza, o pacto, entre Dios y los creyentes. Esta alianza establece

ciertas instrucciones que los judíos deben seguir.El judaísmo trata tanto sobre como vive la gente sus vidas como sobre conceptos de lo sobrenatural.” - Wilkinson, Philip (2009): Religiones. Madrid: Espasa, 66.

56 Idem, Ibidem, 74.

57 Küng Hans (2004): Religiões do Mundo – Em Busca dos Pontos Comuns. Campinas: Verus Editora,

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29 Messias e o juízo final, aceites pela maioria dos judeus, são estímulos inegáveis para as suas vivências espirituais:

Exceptuando alguns pontos polémicos, a Tanakh não faz referência à vida depois da morte, nem a um céu ou inferno. Porém, após o exílio na Babilónia, os Judeus assimilaram as doutrinas da imortalidade da alma, da ressurreição e do juízo final, e estas crenças constituíram importante ensino por parte dos fariseus (ao contrário dos saduceus, que as rejeitaram).

Nas actuais correntes do judaísmo, praticamente todos os judeus acreditam na ressurreição e na vida depois da morte. […]

A maior parte dos judeus espera um Messias judeu, da descendência do rei David, que reinará sobre Israel, reconstruirá a nação fazendo com que todos os judeus retornem à Terra Santa e unirá os povos numa era de paz e prosperidade sob o domínio de Deus58.

4.2. A espiritualidade na religião cristã

A Religião cristã, nas suas variadas confissões, apresenta novidades que a separam completamente das restantes religiões monoteístas, no que à espiritualidade diz respeito. O cristianismo vê Deus como uma trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. Desta forma, Deus, que se fez homem, através do Filho, tem acção directa no mundo, influenciando a vida terrena e salvando a humanidade. O Espírito Santo, por sua vez, pode descer sobre os homens e inspirá-los, como nos atestam, por exemplo os Actos dos Apóstolos:

Quando chegou o dia de Pentecostes, encontravam-se todos reunidos no mesmo lugar. Subitamente ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde de encontravam. Viram, então, aparecer umas línguas à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios de Espírito Santo, e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem.

Ora residiam em Jerusalém judeus piedosos provenientes de todas as nações que há debaixo do céu. Ao ouvirem aquele som poderoso, a multidão reuniu-se e ficou estupefacta, pois cada um os ouvia falar na sua própria língua59.

Todavia, para os cristãos, o ponto fulcral é o Filho de Deus, Jesus, o Verbo Encarnado que, através dos seus ensinamentos e testemunho, propõe um caminho de salvação. Jesus é Cristo, o Messias anunciado pelos profetas do Antigo Testamento, que Se apresenta a Si próprio como o Caminho, a Verdade e a Vida:

58 Comissão Episcopal da Educação Cristã (2008): Desafios - Manual do aluno 7º Ano. Lisboa: Fundação

do Secretariado Nacional da Educação Cristã, 71,72.

Referências

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