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A filosofia subjacente ao currículo do ensino básico

2. Análise do sistema de ensino português à luz dos valores e da espiritualidade

2.1. O currículo

2.1.1. A filosofia subjacente ao currículo do ensino básico

. O respeito e a valorização da diversidade dos indivíduos e dos grupos quanto às suas pertenças e opções;

. A valorização de diferentes formas de conhecimento, comunicação e expressão;

. O desenvolvimento do sentido de apreciação estética do mundo;

. O desenvolvimento da curiosidade intelectual, de gosto pelo saber, pelo trabalho e pelo estudo;

. A construção de uma consciência ecológica conducente á valorização e preservação do património natural e cultural;

. A valorização das dimensões relacionais da aprendizagens e dos princípios éticos que regulam o relacionamento com o saber e com os outros.173

A grande alteração que os documentos legais de 2001 trouxeram, relativamente aos anteriores radica, contudo, na possibilidade de se fazer a gestão do currículo nacional, adequando-o ao contexto de cada escola, através do Projecto Curricular de Escola, ou até ao contexto de cada turma, por via do Projecto Curricular de Turma174. Quer isto dizer que o Currículo Nacional para o Ensino Básico não é um documento fechado, podendo ser moldado aos interesses, motivações, vivências, aptidões e capacidades dos alunos a quem se destina, sendo certo, contudo, que no final da educação básica, o aluno deve conseguir:

(1) Mobilizar saberes culturais, científicos e tecnológicos para compreender a realidade e para abordar situações e problemas do quotidiano;

(2) Usar adequadamente linguagens das diferentes áreas do saber cultural, científico e tecnológico para se expressar;

(3) Usar correctamente a língua portuguesa para comunicar de forma adequada e para estruturar pensamento próprio;

(4) Usar línguas estrangeiras para comunicar adequadamente em situações do quotidiano e para apropriação de informação;

(5) Adoptar metodologias personalizadas de trabalho e de aprendizagem adequadas a objectivos visados;

(6) Pesquisar, seleccionar e organizar informação para a transformar em conhecimento mobilizável;

(7) Adoptar estratégias adequadas à resolução de problemas e à tomada de decisões;

(8) Realizar actividades de forma autónoma, responsável e criativa; (9) Cooperar com outros em tarefas e projectos comuns;

(10) Relacionar harmoniosamente o corpo com o espaço, numa perspectiva pessoal e interpessoal promotora da saúde e da qualidade de vida.175

2.1.1. A filosofia subjacente ao currículo do ensino básico

173 Ministério da Educação, Departamento da Educação Básica (2001): Currículo Nacional do Ensino Básico, competências essenciais, 15.

174

Decreto-Lei n.6/2001 de 18 de Janeiro, alterado pelo Decreto-lei n.º209/2002 de 17 de Outubro (pontos 2 e 3 do Artigo 2º)

175 Ministério da Educação, Departamento da Educação Básica (2001): Currículo Nacional do Ensino Básico, competências essenciais, 15.

67 A ideia que parece perpassar todo o currículo nacional do ensino básico português é a de que os conteúdos programáticos, embora previstos, não são centrais na formação dos alunos, privilegiando-se, isso sim, a educação baseada nas competências.

O professor está muito longe, já, daqueles tempos em que a sua missão era «dar um programa», pois o que se preconiza, hoje em dia, é que ele seja capaz de, mediante um conjunto de situações contextualizadas, dotar os seus alunos de capacidades que lhes permitam construir os seus próprios conhecimentos. São, pois, as competências que surgem no centro do processo ensino-aprendizagem e que integram conhecimentos, capacidades e atitudes, podendo ser entendidas como saber em acção ou uso176.

O professor assume-se, portanto, obrigatoriamente, como gestor e decisor do currículo, tendo de revelar-se capaz de adequar o currículo nacional às situações concretas, e tendo, neste âmbito, de instituir um conjunto de novas relações quer com os alunos, quer com os seus pares177.

É igualmente visível, quer através dos valores e princípios preconizados, quer através das competências gerais que se pretendem alcançar, que o currículo nacional põe a tónica na centralidade do aluno, valorizando sobretudo, a sua formação pessoal, que se deve construir na base de um cuidado muito particular com as situações de ensino- aprendizagem. Estas devem ser sempre significativas para que possa haver, por parte do aluno, um papel interventivo no seu processo de ensino e de aprendizagem e na sua regulação178.

Ainda que muitos teóricos comecem, já, a pôr em causa a sua efectividade, o nosso currículo vive ainda, como podemos constatar, à sombra da teoria construtivista179. Uma teoria que acredita que a aprendizagem não é um processo passivo, mas que é fundado na influência do meio, em que o aluno responde a estímulos externos e age sobre eles para construir e organizar o seu próprio conhecimento. Daí a importância dada às actividades experimentais:

O trabalho a desenvolver pelos alunos integrará, obrigatoriamente, actividades experimentais e actividades de pesquisa

176 Idem, ibidem, 9.

177 Fernandes, Preciosa (2005): “Da reforma curricular do ensino básico dos finais dos anos 80 à

reorganização curricular dos finais dos anos 90”. In: Mudanças Curriculares em Portugal. Porto: Porto Editora, 61.

178 Idem, Ibidem, 62.

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adequadas à natureza das diferentes áreas ou disciplinas, nomeadamente no ensino das ciências.180

Evidentemente, não se preconizam os saberes estáticos, baseados na memorização e na repetição que, certamente, não ajudam ao desenvolvimento das competências definidas por lei. Porém, torna-se fundamental compreender de que se fala, quando aludimos a competências:

A competência, para lá da transmissão e da espontaneidade, é o acto que buscávamos. Supõe duas coisas. Em primeiro lugar, que o espírito humano é, à partida, capaz de aprender, que possui no estado implícito as regras que lhe permitem utilizar e, antes de mais, assimilar os saberes linguísticos, matemáticos, éticos ou outros, saberes pelos quais o espírito é “humano”, a aptidão para os adquirir, pois é isso que o define como “espírito”. A competência supõe também que os saberes não constituem uma bagagem inerte, mas uma forma dinâmica; (…)181

Juan Bautista Bonilla diz-nos que o conceito de «competências» pode ser encarado segundo duas perspectivas: como um resultado a avaliar, a partir do saber-fazer; e como um processo, ou seja, um conceito sistémico que acarreta o desenvolvimento da pessoa, a partir da aquisição dinâmica de conhecimentos. Esta última implica que haja uma combinação de conhecimentos, capacidades, habilidades, atitudes e valores necessários à compreensão e transformação de uma realidade complexa que envolve todo o universo de saberes relacionados com essa realidade182.

A educação baseada nas competências parece, contudo, estar a ser erroneamente interpretada, ou seja, as competências surgem como um conceito muito limitado e utilitarista:

Por tratarse de un medio estratégico para incrementar la competitividad de empresas y economías en escenarios globales, la Educación Basada en Competencias, pese a su gran complejidad y elevado costo, com frecuencia se promueve sin la debida consideración de aspectos centrales a las características y propriedades de las competências mismas.183

180 Decreto-Lei n.º 209/02, de 17 de Outubro que altera o artigo 13.º e os anexos I, II e III do Decreto Lei

n.º 6/2001, de 18 de Janeiro.

181

Reboul, Olivier (s.d.): A Filosofia da Educação. Lisboa: Edições 70, 45.

182 Bonilla, J. C. (2010): “Reflexiones sobre la Educación Basada en Competencias”. In: Revista Complutense de Educación 21 (1): 92.

69 Há que evitar, a todo o custo, que as competências sejam vistas de uma óptica tão reducionista, sob pena de inviabilizarmos a formação integral dos alunos. Contudo, parece ser isso mesmo que está a acontecer. As competências, vistas deste prisma, ajustam-se na perfeição ao mundo empresarial, em que o importante é dar o contributo individual, produzindo184. O que sucede, frequentemente, é que os conhecimentos, atitudes e valores são menosprezados relativamente ao desenvolvimento de capacidades técnicas de carácter mais pragmático. Deste modo, os alunos vivem mergulhados num ambiente de ensino-aprendizagem ligado essencialmente às situações práticas e ao quotidiano. As disciplinas teóricas, como a literatura ou a filosofia, preciosos instrumentos para o exercício do pensamento e da abstracção, não estando directamente ligadas ao mercado de trabalho, têm vindo a perder a importância social de que, em tempos, usufruíam. Tal facto impede que a capacidade de reflectir e de ponderar, em abstracto, desenvolvendo o espírito crítico e o sentido ético, se aprofundem.

A escola não se pode virar apenas para o prático, para o tangível, para o imediato e para o material, tendo apenas como cenário o mercado de trabalho e o mundo das oportunidades económicas. E é, certamente, contra esta interpretação simplista das competências que parecem apontar os princípios e valores preconizados pelo currículo nacional, que têm em conta a dimensão humana, nas várias vertentes: a pessoal, a natural, a social, a estética e a ética. Na verdade, não há educação sem uma dimensão científica, que possa explicar o que nos rodeia; sem uma dimensão lógica, que nos leve compreender a forma como se compõe a realidade, sem uma dimensão histórica, que nos faça perceber o nosso trajecto; sem uma dimensão literária, capaz de nos introduzir no mundo dos símbolos; sem uma dimensão humana, que nos ajude a questionar sobre o sentido da vida e sem uma dimensão profissional ou técnica, para nos dotar das destrezas necessárias ao exercício de uma actividade que nos realize185. Mas para que tal seja possível, a escola tem de conseguir munir os seus alunos destas ferramentas intelectuais, sem as quais, aliás, é impossível que se manifeste a capacidade de educar e, sobretudo, de educar para a espiritualidade.

Neste sentido, a escola, pretendendo contribuir para a formação integral da pessoa, não pode abster-se de considerar seriamente as questões da espiritualidade no processo pedagógico:

184

Crato, Nuno (2006): O “Eduquês” em Discurso Directo. Lisboa: Gradiva, 67.

185 Cardedal, Olegario Gonzélez

(2004): Educación y Educadores El Primer Problema Moral de Europa. Madrid: PPC Editorial, 32.

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(…) nenhuma escola pode permanecer “neutra” neste domínio. Esta não possibilidade de neutralidade não significa que cada escola fosse obrigada a reconhecer-se como católica ou como muçulmana, humanista, new age, etc. …O necessário é que todas as escolas reconheçam que o religioso e o espiritual são dimensões constitutivas da pessoa. As aulas de religião ou do facto religioso encontram o seu verdadeiro lugar no âmago deste reconhecimento.186

A verdadeira «educação para as competências» reveste-se, portanto, de importância capital, pois, edifica-se em conhecimentos, capacidades e valores; reconhecendo o papel do sujeito e do contexto que o rodeia, bem como dos processos e dos resultados esperados. Ou seja, a educação deve promover não só a apropriação de um conjunto de saberes, com vista a um objectivo utilitário, mas a aquisição de um conjunto de competências que permitam a realização pessoal e a formação integral, ao longo da vida.