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A escola real e a escola reclamada

2. Análise do sistema de ensino português à luz dos valores e da espiritualidade

2.3. A escola real e a escola reclamada

Para que se possa desenvolver a espiritualidade, encarada como a percepção situada do fundo onto-teleológico do ser humano, experimentada e tornada consciente, que se traduz dinamicamente na auto-compreensão e auto-realização, na relação com os outros e com o mundo e na abertura ao transcendente, a escola e a educação terão de promover o autoconhecimento; a construção da identidade; a consciência de pertença a uma comunidade e a consciência ecológica; a abertura ao transcendente e a progressiva descoberta do sentido da vida.

Os alunos, no entanto, cumprem a escolaridade obrigatória, agora de doze anos, e saem dela, muitas vezes, sem bagagem cultural, sem formação cívica e sem formação moral ou espiritual. Aliás, para muitos, mesmo para aqueles que têm «sucesso», a escola, em vez de potenciar o seu crescimento, acaba por se transformar numa competição pelas notas, com as consequências nefastas que daí podem resultar:

193 “As faltas injustificadas não podem exceder o dobro do número de tempos lectivos semanais por

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As Escolas são a sociedade do Amanhã. Se o estudo valer só pelas notas, então amanhã o Trabalho só valerá pelo Rendimento. Se idolatrarmos, não o verdadeiro Estudante, mas antes o mais ilustre academicamente, então, amanhã, idolatraremos o mais rico e esqueceremos o empenhado trabalhador que ganha menos ao fim do mês.194

Problemas relacionados com a escola inclusiva, mas também com a cultura do instantâneo e do acessível, virada, sobretudo, para o material e para o tangível conduziram, de modo muito negativo, a vida dos alunos nas últimas décadas. A ideia de que as crianças não devem ser sobrecarregadas com responsabilidades ou com a ideia do fracasso195 e de que estudar não deve implicar esforço, tem produzido jovens inconscientes, insensíveis, indiferentes e imaturos. Jovens incapazes de se questionar e de questionar o mundo que os cerca, tão concentrados que vivem em apenas tirar da vida o máximo prazer. Jovens cuja educação é tão débil que, perante uma contrariedade, se demonstram incapazes de apresentar argumentos, preferindo, amiúde, a indisciplina e a insurreição. Veja-se a forma como a juventude se manifesta nas ruas, sempre que discorda de uma medida tomada por um governo, por exemplo. As únicas armas são as da violência e as do desacato.

Ora as nossas sociedades precisam de muito mais do que jovens revoltosos e indisciplinados, ainda que interventivos. Onde fica, assim, o ideal comum tão fortemente proclamado? Como conseguiremos uma sociedade justa, equilibrada e solidária, se a massa humana que a compõe vê a vida como um meio para alcançar o bem-estar pessoal, livre de obstáculos ou dificuldades?

É urgente que a escola mude, pois só ela pode moldar as crianças, tornando-as mais humanas, conscientes da sua dignidade e da dignidade dos seus próximos. Mas, para que a escola mude, é necessário que mudem as políticas educativas. É importante que se perceba que o currículo tem de ser exigente e direccionar os alunos para a cultura do

194 Mourão, Paulo Reis (2007): “Reflexões sobre o mui nobre acto de Aprender ou Manifesto contra

Escolas e Universidades Materialistas”. In: Brotéria (vol. 165): 57-58.

195 Só lidando com o fracasso podemos crescer, como nos diz Paulo Reis Mourão:

“O fracasso mostra-nos vulneráveis, sem defesas. Deixamos de ser Herodes protegidos por densas muralhas e assumimos, de novo, a identidade de pastores desprotegidos, errantes, vimes que pensam. Afinal não sabíamos tanto como julgávamos – e eis o estudante fracassado a formar-se como verdadeiro cientista – porque a ciência nasce do reconhecimento da nossa imperfeição e da pobreza do nosso conhecimento sobre todos e sobre tudo o que nos cerca.

A Ciência nasce da fome e não do arroto.

Como li algures, uma Escola que não preparasse os Estudantes para o fracasso seria uma Escola mentirosa.” - Mourão, Paulo Reis (2007): “Reflexões sobre o mui nobre acto de

Aprender ou Manifesto contra Escolas e Universidades Materialistas”. In: Brotéria (vol. 165): 59.

79 esforço e do trabalho intelectual, pois só dessa forma os jovens poderão ter uma conduta ética e moral.

Não se pense que a educação moral (que aliás será nosso objecto de estudo no ponto seguinte) se alcança apenas com lições de Educação Moral e Religiosa ou de Formação Cívica. Bem pelo contrário. As melhores formas de assimilar a moralidade e a ética provêm das experiências de vida e dos exemplos que se conhecem, ou seja, têm a ver com o clima em que se vive:

La educación moral indirecta resulta más eficaz que la directa; en efecto, las instancias educadoras – familia, escuela, sociedad, iglesias – tienen mayor influjo educativo sobre el sentido moral mediante la creación de un ambiente ético general que no a través de un sistema educativo programado.196

A escola que reclamamos tem de proporcionar aos alunos um ambiente de ordem, disciplina e trabalho, pois só assim será mais fácil que estes se tornem homens não só cultos e instruídos, como também detentores de um carácter fortemente marcado pela moral e pela espiritualidade:

Eso podemos verlo, de um modo gráfico y experiencial, en metodologías como el escutismo, que operan poniendo a chicos y chicas en contacto con la naturaleza, en una atmosfera de compañerismo, lealtat, formalidad, alegria, juego, aventura, ley y exigencia, fomentando las cualidades humanas de probidad, caballerosidad, dignidad, confianza en sí mismo, tolerancia, optimismo y alegria de vivir.197

A escola real, contudo, revela-se bem diferente. «A busca do “sentido da vida” de gerações anteriores contrasta, agora, com a forte tendência das gerações jovens a viver as sensações do imediato, do experimentar coisas, e do “Carpe diem”198

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A escola, ao invés de criar gerações de homens e mulheres realizados enquanto seres humanos, na sua dignidade, promovendo instrumentos culturais, morais e éticos, parece estar a contribuir para a bestialização dos jovens, deixando-os, assim, muito aquém do que uma sociedade livre e justa pode ansiar:

196AAVV Instituto Superior de Ciencias Morales (1980): La Educación Ética. Madrid: PS Editorial, 189. 197

Cabanas, Jose Maria Quintana (1995): Pedagogia Moral El Desarrollo Moral Integral. Madrid: Editorial Dykinson, 577.

198 Miranda, Angel (2010): “ Elementos para um plano de formação de professores”. In: Pastoral Catequética 16: 28.

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En este desenfrenado guirigay en que se halla abocada nuestra sociedad, sí la de la información y la comunicación por excelencia, el aula no es, ni más ni menos, que el espejo de una cultura ruidosa y esencialmente superficial. Ante el imperio de la confusión, se ha perdido la capacidad de discernimiento, cualidad esencial del espíritu cultivado. No obstante, en este caldo de cultivo caótico se sigue promoviendo, masivamente, el embrutecimiento de los sentidos y el espíritu. No interessa formar personas que piensen por sí mismas, sino seres que se guíen por el instinto de satisfacer su ciego voluntarismo y las ansias de diversión. En definitiva, promover la estupidez y la ignorancia, como única via de realización personal y social, parece ser el objetivo prioritario de nuestra cultura.199

Na verdade, o que nos parece é que a escola está a deixar de ser um lugar de educação e de cultura, com o objectivo amplo de tornar o ser humano mais elevado e de tornar mais humanizadas as suas acções, vivências e ideais. No fundo é a própria espiritualidade humana que empobrece.

É que toda a educação – ao contrário da economia que se centra nos bens, nos «consumíveis», isto é, no ter – é um progresso na ordem do ser, um crescimento em humanidade. Por isso, todo o acto educativo tende potencialmente para a moral e até para a espiritualidade, pois é aí que o homem se transcende de mero ser da natureza para se tornar ser de cultura. É aí que o homem se liberta do contingente e efémero que o amesquinha e oprime, para atingir o estado de “homem novo”. Quer este conceito seja formulado pela linguagem religiosa, quer o balbucie com as expressões mais em voga nas várias filosofias da salvação da modernidade.200