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A procura de um sentido para a morte

EDUCAR PARA A MORTE

2. A procura de um sentido para a morte

A perspectiva da morte coloca, antes de mais, a questão sobre o sentido da vida. E esta questão não é um assunto meramente filosófico:

É impossível não pôr a questão do sentido. É um pressuposto da existência. Mesmo aqueles que optam pelo sem-sentido, pelo absurdo, pela incoerência última e definitiva da realidade, estão a afirmar,

433

Kübler-Ross, Elisabeth (2003): Aprender a morir – aprender a vivir preguntas y respuestas. Barcelona: Editorial Sirpus, 7,8.

434 Azevedo, Maria da Conceição e Louro, Miguel (2006): A Luz Viva da Morte. Vila Real: Edição dos

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implicitamente, esta irrecusabilidade. Perante a questão do sentido não é possível uma atitude de absoluta indiferença ou de impassível neutralidade. Não se trata de uma projecção ilusória e alienante, mas de uma verdadeira necessidade vital, de um verdadeiro «postulado da existência. 435

Desde tenra idade que as crianças questionam os adultos sobre o que aconteceu com este ou aquele familiar que morreu, sobre o que o levou à morte e sobre o motivo por que todos temos de morrer um dia.

A busca de um sentido para a vida acompanha-nos, portanto, desde que tomamos consciência da inevitabilidade da morte:

Ao princípio, a verdade apresenta-se ao homem sob forma interrogativa: A vida tem um sentido? Para onde se dirige? À primeira vista, a existência pessoal poderia aparecer radicalmente sem sentido. Não é preciso recorrer aos filósofos do absurdo, nem às perguntas provocatórias no livro de Job para duvidar do sentido da vida. A experiência quotidiana do sofrimento, pessoal e alheio, e a observação de muitos factos, que à luz da razão se revelam inexplicáveis, bastam para tornar iniludível um problema tão dramático como é a questão do sentido da vida. A isto se deve acrescentar que a primeira verdade absolutamente certa da nossa existência, para além do facto de existirmos, é a inevitabilidade da morte. 436

Sendo certo que a morte é única e que cada um de nós a experimentará de forma singular e inigualável, é seguro, também, que o sentido que se busca para a vida variará de acordo com a perspectiva de cada indivíduo. Para Sartre, por exemplo, a morte é a prova completa da total ausência de sentido, revelando-se a existência humana absolutamente inútil e absurda437.

Para Heidegger, a morte, se não é o sentido da própria existência, acaba por ser o fundamento estruturante da existência humana, já que ela é um facto interno que lhe diz respeito enquanto estrutura subjectiva:

El tener-por-verdadera la muerte – muerte que es siempre la mía propria – muestra una forma distinta y más originaria de certeza que la relativa a un ente que comparece dentro del mundo o a objetos formales; en efecto, aquella certeza de la muerte está cierta del estar- en-el-mundo. Como tal, no reivindica tan sólo un determinado comportamiento del Dasein, sino que atañe a este en la plena propriedad de su existencia. Tan sólo en el adelantarse puede el Dasein asegurarse de su ser más proprio en su integridad insuperable. 438

435

Almeida, J. Rogério (1989): Vida e Morte – Sentido e Esperança. Porto: Edições Salesianas, 15.

436João Paulo II (1998): Fé e Razão. Braga: Editorial A.O. – Braga, 41. 437 Sartre, Jean-Paul (2009): L’Être et le Néant.Paris: Éditions Gallimard, 591. 438Heidegger, Martin (2003): Ser y Tiempo. Madrid: Editorial Trotta, 284.

173 O homem “apesar de condenado a ser nada, é agora vivente e por isso algo de extraordinário. Assim, paradoxalmente, a morte exalta a vida, dá-lhe autenticidade.” 439

Camus compreende que a morte crie no homem o sentimento do absurdo, já que, ao ter de morrer, todo o homem é um estrangeiro440 no mundo, sendo a sua condição de desterrado irreversível441. Todavia, a morte permite uma liberdade sem limites e a total possibilidade de agir e de apreciar, ao máximo, o presente. Entenda-se «gozar o presente» não de uma forma egoísta ou hedonista. Antes pelo contrário. Há acções que não são absurdas, como o amor aos necessitados, por exemplo. A solidariedade para com aqueles que sofrem não é seguramente inútil e, portanto, em face da morte, a liberdade não tem limites e dá ao homem a capacidade de agir, sendo, justamente, esta liberdade que vence o absurdo442.

Para Levinas a morteévista à luz da relação entre o sujeito e o tempo:

A morte é uma ameaça que se aproxima de mim como um mistério; o seu segredo determina-a – ela aproxima-se sem poder ser assumida, de maneira que o tempo que me separa da minha morte, ao mesmo tempo diminui e não deixa de diminuir, comporta como que um último intervalo que a minha consciência não pode transpor e em que de algum modo se dará um salto da morte até mim.443

Para este pensador, a morte é uma ameaça, que não possui, todavia, um carácter definitivo ou aniquilador:

Sou uma passividade ameaçada não apenas pelo nada no meu ser, mas por uma vontade, na minha vontade. Na minha acção, no para si da minha vontade, estou exposto a uma vontade estranha. É por isso que a morte não pode tirar todo o sentido à vida. […] O inimigo ou o Deus sobre o qual eu não posso poder, e que não faz parte do meu mundo, matém-se ainda em relação comigo e permite-me querer, mas com um querer que não é egoísta, com um querer que se esgota na

439

Oliveira, J.H. Barros (1998): Viver a Morte. Coimbra: Livraria Almedina, 78.

440 Diz-nos Isabel Santiago a propósito da obra mais conhecida de Camus:

“O Estrangeiro é o título de uma obra de Albert Camus que conta a história de um homem que não tem qualquer vontade de agir. […]

O que ressalta imediatamente do contacto com este personagem camusiano é a consciência de que há um mecanismo ao qual é indiferente o que quer que o homem faça, escolha, delibere ou acredite. A vida humana nada mais é do que uma reacção a essa roda e nada mais há do que essa roda. Nada mais há para além dela. Aparentemente a roda move-se sem autor. Humano ou divino. A roda move-se sem porquê.” – Santiago, Isabel (2008):

“Deus, O Estrangeiro. Ensaio Crítico das Obras O Estrangeiro de Camus e Espera de Deus de Simone Weil”. In: A Questão de Deus na História da Filosofia (vol.II). Sintra: Zéfiro, 957.

441Camus, Albert (s.d.): “O Mito de Sísifo”. Disponível em

http://impromptucoletivo.files.wordpress.com/2010/01/albert-camus-o-mito-de-sisifo.pdf (consultado em 14 de Setembro de 2011)

442 Gevaert, Joseph (2005): El Problema Del Hombre. Salamanca: Ediciones Sígueme, 295. 443 Levinas, Emmanuel (2008): Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 232.

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essência do desejo cujo centro de gravitação não coincide com o eu da necessidade, de um desejo que é para Outrem.444

Marcel, um existencialista cristão, vê na resistência instintiva do homem em face da sua desaparição, um argumento em prol da ideia da imortalidade da alma445. As suas teorias tiveram, aliás, eco no Concílio Ecuménico Vaticano II:

É em face da morte que o enigma da condição humana mais se adensa. Não é só a dor e a progressiva dissolução do corpo que atormentam o homem, mas também, e ainda mais, o temor de que tudo acabe para sempre. Mas a intuição do próprio coração fá-lo acertar, quando o leva a aborrecer e a recusar a ruína total e o desaparecimento definitivo da sua pessoa. O germe da eternidade que nele existe, irredutível à pura matéria, insurge-se contra a morte.446

Mas a busca de um sentido não é, seguramente, assunto exclusivo de pensadores e filósofos. O mais comum dos mortais, especialmente quando confrontado com a morte daqueles que ama, ou com o facto de estar iminente a sua própria morte447, se interroga sobre o significado da vida e da morte:

Le problème de la mort est une question humaine universelle. C’est la réponse à cette question qui change avec les cultures. Les diverses sociétés humaines traitent différemment ceux de leurs membres qui se meurent et se donnent des explications différentes du phénomène de la mort et de son sens dans l’existence humaine. Votre propre façon de voir la mort reflète votre acquis culturel; (…) 448

São inúmeras as atitudes quotidianas em face da ideia de morte, dependendo, como vimos, da sociedade e da cultura em que se está inserido. Nas sociedades ocidentais, muitos preferem ignorá-la ou, mesmo, negá-la449, chegando ao ponto de

444 Levinas, Emmanuel (2008): Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 233.

445 Pozo, C. (s.d.): “Morte”. In: Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura. Lisboa: Editorial Verbo, 1390. 446

Secretariado Nacional do Apostolado da Oração (1987): Concílio Ecuménico Vaticano II (GS, n.º18). Braga: Editorial A.O, 356.

447 Jankélévitch faz a distinção entre morte «na terceira pessoa», morte «na segunda pessoa» e morte «na

primeira pessoa»:

“Alguém desaparece e o seu lugar é ocupado por outra pessoa, seja ela quem for, como seja a de um passante atingido por uma embolia… É a morte sem mistério. […] No que diz respeito à morte na primeira pessoa, ou seja, a minha, já não poderei falar dela, porque se trata efectivamente da “minha” morte. Levo o meu segredo, se é que existe segredo, para o túmulo. Resta a morte na segunda pessoa, que é a morte do próximo e que resulta numa experiência filosófica privilegiada, porque é tangente às outras duas. Assemelha-se mais á minha sem ser a minha e também sem ser a morte impessoal e anónima do fenómeno social.” - Jankélevitch, Vladimir (2003): Pensar a Morte. Mem Martins: Inquérito Editorial, 12.

448

Kübler-Ross, Elisabeth (1985): La mort, dernière étape de la croissance. Paris: Éditions du Rocher, 64,65.

175 esconder os idosos ou de desafiar o desenvolvimento biológico, no sentido de «enganar» o tempo: “Nós escondemos a nossa idade, gastamos fortunas para esconder a nossas rugas, nós preferimos enviar os nossos idosos para lares.”450

Alguns enveredam por uma atitude fatalista, sentindo-se impotentes perante ela, outros revoltam-se e desesperam-se451. Outros, ainda, encontram na imortalidade da alma o sentido procurado. Como já tivemos oportunidade de afirmar, a grande maioria das pessoas professam uma fé. Para estas, a finitude da vida terrena é apenas uma transição para uma vida diferente e, normalmente, as acções realizadas neste mundo têm correspondência directa com a qualidade e, até, com a forma da vida futura.

De acordo com a visão cristã, a morte aparece como caminho para a vida eterna, sendo, por isso, libertadora. Ao contrário do que afirma Heidegger, nesta perspectiva, o homem não é um «ser-para-a-morte», mas sim um «ser-para-a-vida»452.

Quanto aos seguidores de Buda, consideram a morte como algo absolutamente natural. Trata-se de um período de tranquilidade, em que se recuperam energias para um novo ciclo de existência453. A tradição budista tibetana considera a morte uma etapa, num processo vasto e de mortes sucessivas. Ela não é, assim, um acontecimento traumático. Ela é a dissolução do suporte físico454.

Os islâmicos, embora encarem a morte como um acontecimento triste, não o vêem como definitivo. Muito pelo contrário, dentro do possível, tentam prepará-la como se se

“ En nuestro mundo, colonizado por el paradigma del triunfo y el êxito, subygado por la

estulticia de una estética externa cifrada en lo material, vertiginosamente servil al omnímodo poder en cualquier âmbito y profesión, cubrimos como algo sucio y vergonzoso, escandaloso y insoportable, la realidade ineluctable de la muerte, cuando podría sin embargo contemplarse como el momento culminante de nuestra vida, su coronación, aquello que le confiere valor y sentido.” - Duque, Esteban Roberto (2009): Ensayo sobre la Muerte. Madrid: Ediciones Encuentro, 84.

450“Nous cachons notre age, nous dépensons des fortunes pour cacher nos rides, nous préférons envoyer nos vieillards

dans des hospices.”- Kübler-Ross, Elisabeth (1985): La mort, dernière étape de la croissance. Paris: Éditions du Rocher ,65.

451 Oliveira, J.H. Barros (1998): Viver a Morte. Coimbra: Livraria Almedina, 27. 452 Poch, Concpció (2009): La Muerte nunca Falla. Barcelona: Editorial UOC, 127. 453 Idem, Ibidem, 130.

454 Eis a explicação de uma especialista:

“Contrariamente a certas teorias postulando que o renascimento é sempre num sentido evolutivo, o Budismo vê a vida como um fluxo contínuo, por vezes ascendente, por vezes descendente, em função da natureza positiva ou negativa do nosso karma, ou seja, da resultante positiva ou negativa das nossas acções. Isto quer dizer que somos responsáveis pelas nossas reacções, do caminho positivo ou negativo que tomamos, e que é muito importante conhecermos as implicações das escolhas que constantemente temos de fazer na vida.” -

Monja Tsering Paldron (2004): “Vida Morte e Renascimento segundo o Budismo Tibetano”. In União Budista Portuguesa. Internet. Disponível em http://www.uniaobudista.pt/dharma.php?show=textos (consultado em 12 de Julho de 2011)

176 tratasse de uma viagem e, em conformidade, saldam dívidas, fazem testamentos, dão conselhos aos mais novos e despedem-se dos seus entes queridos455.

O que é seguro é que, de uma forma ou de outra, cada ser humano vai encontrando uma resposta para o sentido da vida ou para aquilo que considera ser a sua ausência; caso contrário, a humanidade não continuaria a caminhar e a desenvolver projectos significativos.

Independentemente de se acreditar ou não numa vida além da morte, há necessariamente um conjunto de acções que dão sentido à existência humana. Na verdade, a questão do sentido da vida coloca-se, normalmente, porque todos sabemos que ela vai ser atalhada pela morte. Mas a nós surge-nos uma outra dúvida: e se fôssemos imortais? Se não tivéssemos um tempo estabelecido para viver? Que sentido fariam as nossas vidas, tal como as conhecemos? Seria a vida um projecto que, tal como afirma Sartre, é totalmente aniquilado pela morte?

Ainda que corramos o risco de parecer superficiais no exemplo, comparemos o decurso da vida a um jogo de futebol. O objectivo do jogo é simples: marcar o maior número de golos na baliza do adversário, num tempo pré-estabelecido. O que aconteceria se o jogo não terminasse nunca e se se pudesse continuar indefinidamente a marcar golos ao adversário? Continuaria o jogo a fazer sentido? Não se perderiam os objectivos? Também quanto à vida de cada um de nós, é o tempo e consequentemente a antecipação da morte que dá ao ser humano a noção clara de que é urgente agir e de que ficar parado à espera torna a existência inútil e vazia:

A morte, essa que todos havemos de viver um dia, a que fere os nossos próximos ou os nossos amigos, talvez seja o que nos leva a não nos contentarmos em viver à superfície das coisas e dos seres, o que nos move a penetrar na sua intimidade e na sua profundeza.456

O homem, ao confrontar-se com a morte, questiona-se sobre a necessidade de se realizar, por meio da sua actuação, consigo mesmo e com os outros que, com ele, coabitam o mesmo mundo e é nessa premência que se vê a indispensabilidade de valores que, numa hierarquia axiológica, darão consistência a um verdadeiro projecto de vida:

O problema existencial com que o homem se defronta face à morte é, na verdade, o problema do sentido último e radical da sua existência; então, a questão da morte torna-se metafísica, na medida

455Poch, Concpció (2009): La Muerte nunca Falla. Barcelona: Editorial UOC, 132. 456 Hennezel, Marie (2002): Diálogo com a morte. Lisboa: Editorial Notícias, 12.

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em que há que tornar compatíveis a verdade da morte e as exigências do sentido. Só o homem que espera, apesar da certeza da morte, encontra explicação para si mesmo num domínio que transcende o tempo e as próprias possibilidades pessoais. E é neste itinerário, marcado pelo desejo de plenitude, em confronto com o fracasso das situações-limite que o homem identifica e assume os valores e, em particular, os valores culminantes da pirâmide axiológica a instituir e a organizar como decisória no seu existir concreto. A identificação dos valores e a opção livre, feita por eles, decide-se nesta experiência radical da contingência. 457