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Verbo dizer: flagrantes de não-neutralidade na notícia

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Academic year: 2021

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VERBO “DIZER”: FLAGRANTES DE

NÃO-NEUTRALIDADE NA NOTÍCIA

Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Campus de São José do Rio Preto, para obtenção do título de Mestre em Estudos Lingüísticos (Área de Concentração: Análise Lingüística)

Orientador: Prof. Dr. Manoel Luiz Gonçalves Corrêa

São José do Rio Preto 2003

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126 f. ; 30 cm.

Orientador: Corrêa, Manoel Luiz Gonçalves

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual Paulista. Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas

1. Análise do discurso. 2. Verbo “dizer”. 3. Linguagem jornalística. 4. Jornalismo. 5. Manual de redação. I. Corrêa, Manoel Luiz Gonçalves. II. Universidade Estadual Paulista. Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título.

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Titulares

Prof. Dr. Manoel Luiz Gonçalves Corrêa Profª. Drª. Maria Augusta Bastos de Mattos

Prof. Dr. Arnaldo Franco Júnior

Suplentes

Prof. Dr. Lourenço Chacon Jurado Filho Prof. Dr. Roberto Gomes Camacho

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Pelas diferentes formas de participação neste trabalho, agradeço a: Cristina Carneiro Rodrigues, Roberto Gomes Camacho, José Horta, Marize Mattos Dall’Aglio Hattnher; Caio Rodrigo Albuquerque, Paulo Magri, Melissa Diniz, Andréa Lavagnini, Silmara Dela Silva, Cecília Dionízio, Érika de Moraes, Cristiane Capristano; Giovanni Gurgel Aciole, Kathleen Tereza da Cruz, Laíze Leite, Silvia Bon, Taniella, Maria Alejandra, Lucinéia Lazzaretti; Débora Crespo Munhoz, Vera Lúcia de Albuquerque Sant’Anna, Patrícia Patrício, Suely Maciel; João Duarte, Terezinha Vieira Duarte e Elenice Zubber. A todos os amigos. AGRADECIMENTOS ESPECIAIS

A Manoel Luiz Gonçalves Corrêa, pela orientação para o mestrado e para a vida; A Aquiles Travaini Júnior (meu querido Jú), pelo imenso carinho, dedicação e paciência nesses longos 33 meses de luta; A meus pais Moacir (in memoriam) e Cidinha, pelo exemplo de coragem, perseverança e força; A Toninha, pela ajuda irretocável em momentos decisivos; A Murilo Alessandro Scadelai, pela preciosa intermediação entre mim e o computador; A Maria Ignez de Lima Pedroso, pela amizade, pela confiança, pelas dicas gentis; A Maria Augusta Bastos de Mattos e Arnaldo Franco Júnior, pelas leituras atentas/valiosas e pela compreensão; A Lourenço Chacon, em nome de quem deixo registrado meu obrigado aos participantes do Grupo de Estudos da Linguagem de Marília, interlocutor fundamental deste trabalho.

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o teor e o desfecho sem errar nem mudar uma vírgula?

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1. INTRODUÇÃO...1

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA... 5

2.1. AUSTIN E A TEORIA DOS ATOS DE FALA...6

2.1.1 Em que sentido dizer algo é fazer algo: três atos no ato de fala... 7

2.1.2. Ação realizada com palavras e em circunstâncias apropriadas...9

2.1.3. Ser jurídico, circunstâncias, convenções...10

2.1.4. A fala explicitada com o verbo “dizer”...12

2.2. BAKHTIN E A DIALOGIA DA LINGUAGEM... 14

2.2.1. Dialogismo e polifonia...14

2.2.2. Enunciado, gêneros do discurso e discurso...16

2.2.3. O discurso de outrem... 19

2.2.4. Discurso direto, discurso indireto e comentário: primeiras considerações...21

2.2.5. Discurso direto, discurso indireto e comentário: outras considerações... 23

2.3. O SUJEITO E SEU(S) OUTRO(S) EM AUTHIER-REVUZ... 27

2.3.1. De volta à questão do gênero... 29

2.3.2. Discurso direto e discurso indireto: desfazendo conceitos... 31

2.3.3. Discurso direto não-literal...33

2.4. A ABORDAGEM DO COMENTÁRIO EM FOUCAULT... 35

2.4.1. Coerção e invento na autoria...36

2.4.2. Assujeitamento e trabalho do sujeito... 38

2.5. DIALOGANDO COM PESQUISAS RECENTES... 39

2.5.1. Discurso narrativizado... 40

2.5.2. A opinião nos verbos que remetem a falas... 42

3. CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ANÁLISE...48

3.1. NOTÍCIA E OBJETIVIDADE: PROBLEMATIZAÇÃO...48

3.1.1. A notícia, segundo o Manual da redação... 48

3.1.2. A concepção de linguagem no Manual: alguns comentários...54

3.1.3. O Manual na sociedade... 56

3.1.4. Um pouco mais sobre a concepção de notícia... 58

3.2. O MATERIAL: SELEÇÃO, RECORTE E CLASSIFICAÇÃO DAS NOTÍCIAS...60

3.2.1. Seleção das notícias... 60

3.2.2. Recorte e classificação das notícias... 62

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FLAGRANTES DE NÃO-NEUTRALIDADE NA NOTÍCIA...70

4.1. ANÁLISE DA EDITORIA, DA FONTE E DAS FORMAS DE CITAÇÃO...70

4.1.1. Sobre o verbo “dizer” e as editorias do jornal... 70

4.1.2. Sobre o verbo “dizer” e as fontes da informação...76

4.1.3. Sobre o verbo “dizer” e a informação obtida da fonte...80

4.1.4. Sobre o verbo “dizer” e as formas de citação: discurso direto, discurso indireto e comentário...83

4.1.4.1. Determinação de combinações possíveis entre discurso direto, discurso indireto e comentário... 91

4.2. ANÁLISE DO FUNCIONAMENTO DO DISCURSO CITADO NO DISCURSO DO JORNALISTA...109

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS... 118

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E BIBLIOGRAFIA... 123

6.1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...123

6.2. BIBLIOGRAFIA...125

ANEXOS: ...127

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Tabela 1. Verbos declarativos. Fonte: Manual da redação, 2001, Folha de S.Paulo, p. 105 ...67

Tabela 2. Análise quantitativa dos verbos do corpus. Fonte: Análise da edição de

03/02/01 do jornal Folha de S.Paulo...72

Tabela 3. Editoria Brasil. Fonte: Análise do jornal Folha de S.Paulo de 3 de fevereiro de 2001...73

Tabela 4. Editoria Dinheiro. Fonte: Análise da edição de 03/02/01 do jornal Folha de S.Paulo...74

Tabela 5. Editoria Esporte. Fonte: Análise da edição de 03/02/01 do jornal Folha de S.Paulo...74

Tabela 6. Editoria Cotidiano. Fonte: Análise da edição de 03/02/01 do jornal Folha de S.Paulo...78

Tabela 7. Editoria Mundo. Fonte: Análise da edição de 03/02/01 do jornal Folha de S.Paulo...82

Tabela 8. Comentários encontrados no corpus. Fonte: Análise da edição de 03/02/01 do jornal Folha de S.Paulo... 87

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Este trabalho estuda o verbo “dizer” como explicitador de atos de fala em notícias de jornal. No meio jornalístico, defende-se comumente que o verbo “dizer” utilizado na classificação de falas de entrevistados na notícia é, em grande medida, neutro, ou seja, não sinaliza – ou sinaliza muito pouco – uma interpretação dessas falas ao classificá-las. A discussão empreendida por este trabalho parte da consideração do verbo “dizer” como constituinte do procedimento de integração do discurso citado no discurso citante. Questiona-se, pois, a neutralidade do verbo “dizer”, mais pela abordagem lingüística da relação entre discurso citado/discurso citante do que pela discussão, já bastante conhecida, da neutralidade da prática jornalística. Para este estudo, foi utilizada a teoria dos atos de fala, de Austin, que defende que o sentido não está apenas nas palavras (no verbo, no caso), mas também nas circunstâncias que envolvem o seu uso. No que se refere às circunstâncias propriamente lingüísticas de integração desse verbo no processo de citação, foram utilizadas as noções de

dialogia, de discurso de outrem e de gêneros do discurso (Bakhtin); de heterogeneidade(s) enunciativa(s) (Authier-Revuz) e de comentário (Foucault), por meio das quais procurou-se

entender a complexidade enunciativa das formas de citação, que inclui as relações entre: discurso citado/discurso citante; fala do jornalista/fala da fonte (um entrevistado ou uma fonte de natureza institucional) citadas em discurso direto ou indireto, resultando num compósito de vozes; formas de citação/gênero “notícia”; formas clássicas de citação/comentário (este último aparecendo também como forma de citação, já que é um modo de redizer o discurso de outrem, que, além de o reformular, busca legitimar uma interpretação para ele). O corpus da pesquisa é constituído de notícias da edição do jornal Folha de S.Paulo de 3 de fevereiro de 2001, nas quais foram encontradas 421 ocorrências verbais – 155 delas relativas somente ao verbo “dizer” – na classificação de falas. Compõe também o corpus o manual da redação 2001 da Folha de S.Paulo, uma vez que é um dos meios pelos quais se propaga a recomendação do uso do verbo “dizer” em função de um suposto parâmetro de neutralidade. Como resultado da pesquisa, a “grande medida” da neutralidade no uso do verbo “dizer” acaba negada com base na constatação de que, no encadeamento textual, ao classificar uma determinada fala em discurso direto ou indireto na notícia, tal verbo articula-se com (parafraseia, seleciona um aspecto de, muda completamente o sentido de) outros verbos (outros contextos lingüísticos) explicitadores de atos de fala, contidos em outros discursos diretos, indiretos e/ou comentários. Articulada com esses outros verbos (outros contextos lingüísticos), a fala classificada de modo supostamente neutro freqüentemente assume novos

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“neutralidade” do verbo “dizer” é, ainda, negada com base no fato de que a fala que classifica vem citada numa editoria específica do jornal e aparece sempre associada a uma determinada fonte do dizer e a uma determinada informação dada por essa fonte. Um leitor pode atribuir um sentido diferente a uma fala com verbo “dizer”, dependendo do seu reconhecimento de que a fonte que fala é ou não uma autoridade para abordar determinado assunto em uma determinada editoria do jornal. A editoria do jornal, a fonte do dizer e a informação da fonte do dizer são consideradas, neste trabalho, aspectos do funcionamento do discurso citado na notícia. Um último aspecto da não-neutralidade do verbo “dizer” está ligado ao fato de que o discurso do jornalista e o discurso do entrevistado são constituídos de (ou retomam explicitamente) discursos já ditos. Há outras vozes que falam, portanto, na notícia, em conjunto com o jornalista e com o(s) entrevistado(s). Um leitor que reconheça alguma delas tem condições de interpretar uma fala com verbo “dizer” diferentemente de um simples dito.

PALAVRAS-CHAVE:

1) formas de citação; 2) verbo “dizer”; 3) gênero notícia; 4) manual de redação; 5) jornalismo; 6) comentário

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This work studies the verb “to say” as a specifier of speaking acts in the news of a newspaper. In the journalistic means, it is commonly defended that the verb “to say” used to classifify the lines of interviewed people in the news is, “in a great measure”, “neutral”, or in other words, it doesn´t signal - or it signals very little - an interpretation of these lines when classifying them. The discussion undertaken by this work starts from the consideration of the verb “to say” as constituent of the integragion procedure of the speech cited in the citing speech. Therefore, it is questioned the “neutrality” of the verb “to say”, more from the linguistic approach of the relation between cited/citing speech than from the discussion of the “neutrality” of the journalistic practice, already sufficiently known. For this study, the theory of the acts of speeches, of Austin, has been used and it defends that the meaning is not only in the words (in the verbal form, in this case), but also in the circumstances that involve its use. As for the properly linguistic circumstances of integration of this verb in the citation process, the cognition of “dialogia”, of other people speech and of sorts of the speech (Bakhtin); of

enunciative heterogeneity(ies) (Authier-Revuz) and of commentary (Foucault) had been used,

through which they tried to understand the enunciative complexity of the citation forms, that includes the relations between: cited/citing speech; the jornalist line/the source line (one interviewed or one source of institucional nature) cited in direct or indirect speech, resulting in a “compósitorio” of voices; citation/sort of news forms; classic forms of citation/comentary (this last one also appearing as citation form, since it is a way of retelling the speech of someone else, that searches to legitimize an interpretation for it beyond reformulating it). The

corpus of the research is constituted by the February 3 of 2001 edition news from the

newspaper “Folha de S.Paulo”, in which 421 verbal occurrences had been found - 155 from them related only to the verb “to say” - in the classification of the lines. The 2001 writing manual of Folha de S.Paulo also composes the corpus, since it is one of the ways which the recommendation of the use of the verb “to say” in function of a supposed “neutrality” parameter is propagated. As a result of this research, the “great measure” of the “neutrality” in the use of the verb “to say” ends up denied based on the discovering that, in the textual sequence, when classifying a certain line in direct or indirect speech in the news, such verb articulates with (it paraphrases, it selects an aspect of, it completely changes the meaning of) other specifier verbs (other linguistic contexts) of acts of speech, contained in other direct, indirect speeches and/or commentaries. Articulated with these other verbs (other linguistic contexts), the speech supposedly classified as “neutral” often assumes new meaning effects,

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denied based on the fact that the speeches that classifies comes cited in a specific section of the newspaper and always appears associated to a certain source of saying and to a certain information given by this source. A reader can attribute a different meaning to a speech with verb “to say”, depending on its recognition that the source that speaks is or isn´t an authority to approach a certain subject in a certain newspaper section. In this work, the newspaper section, the speech source and the source information of the speech are considered aspects of the speech functioning cited in the news. A last aspect of the non-neutrality of the verb “to say” is linked to the fact that the journalist speech and the interviewed speech are constituted of (or specifically retake) speeches that have already been said. Therefore, there are other voices that speak in the news, in conjunction with the journalist and the interviewed. A reader who recognizes some of them, has conditions to interpreting a speech with verb “to say” differently from a simple saying.

KEY WORDS:

1) ways of citing; 2) verb “to say”; 3) news/sort of; 4) writing manual; 5) journalism; 6) commentary

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1. INTRODUÇÃO

A concepção mais comum a respeito do discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre é a de que são as únicas formas de citação do discurso de outrem (ou discurso citado) no discurso do eu (ou discurso citante). Suas definições costumam ser simplistas: o primeiro, supostamente mais simples, é explicado como a citação “literal”, “fiel” do discurso do outro e, normalmente, reconhecido por estar entre aspas e separado do discurso citante por um travessão ou por dois pontos; o segundo, tido, comparativamente, como mais complexo, seria o discurso do outro nas palavras do eu, sem aspas, obtido da transformação das pessoas e dos tempos verbais recolhidos da “literalidade” do discurso direto; o terceiro, apresentado, em relação aos dois anteriores, como ainda mais complexo, seria o processo de reprodução de enunciados que combina as características dos discursos direto e indireto. Segundo Authier-Revuz (1998), os três tipos de discurso, limitadamente, (...) são apresentados [pelas gramáticas em geral] como uma espécie de progressão (idem, p. 133).

Parte do que desenvolvemos neste trabalho se nutre de nossa concordância com essa autora quanto ao fato de que a visão gramatical sobre o assunto é, comumente,

empobrecedora (idem, p. 135). Isso porque, conforme Authier-Revuz, essa visão não

questiona a relação entre discursos citado e citante nem a relação entre discurso citado, discurso citante e discursos que não pertencem ao eu ou ao outro, mas vêm de ‘outros

lugares’, do ‘já dito’ dos outros discursos (idem, ibidem). Em outras palavras, essa visão

gramatical é empobrecedora porque não analisa o discurso citado como heterogeneidade

mostrada do discurso citante e, também, porque não reflete sobre o discurso citante em sua heterogeneidade constitutiva, representada por vozes que não estão mostradas, apesar de

presentes permanentemente nesse discurso.

No intuito de avaliar as formas de citação do discurso de outrem como

heterogeneidades mostradas, adotamos um ponto de vista dialógico sobre a linguagem. Na dialogia, discursos citado e citante encontram-se intimamente relacionados e essa relação,

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dinâmica, é, a um só tempo, intensa e tensa. O discurso de outrem, por exemplo, não é citado sem haver, antes, um ajustamento no discurso citante, indicando, já aí, não ser tão simples a apropriação das palavras alheias. O eu – alguém que não é um ser mudo, mas dotado de

palavras interiores (Bakhtin, 2002, p. 147), prepara-se para receber um “não-eu”. Ambos – o

eu do discurso citante e o outro do discurso citado – interagem durante todo o processo de apropriação discursiva, tal qual os seus próprios discursos. Do mesmo modo, interagem o discurso citante e o discurso citado com os discursos que lhes são prévios e com as vozes que os constituem. E além de o discurso de outrem não ser citado à revelia desse relacionamento dinâmico com o discurso do eu e com os discursos que lhes são anteriores, sua citação se dá segundo as determinações do gênero a que pertence o discurso citante. As formas de citação das palavras do outro, portanto, também estão submetidas ao gênero no qual o eu inevitavelmente (se) enuncia.

Adotar o ponto de vista das heterogeneidades enunciativas (heterogeneidades mostrada e constitutiva), levando ainda em consideração os gêneros do discurso, significa não se contentar com definições simplificadoras de discurso direto e de discurso indireto (doravante, as considerações sobre o discurso indireto livre serão apenas ocasionais, pois esse recurso de citação não é alvo da nossa análise). Considerando as heterogeneidades enunciativas e os

gêneros do discurso, pretendemos abordar os discursos direto e indireto de maneira não-usual,

lançando hipóteses para o seu funcionamento em notícias de 3 de fevereiro de 2001 da Folha de S.Paulo, que, juntamente com as informações colhidas na edição 2001 do Manual da redação do referido jornal, constituem o corpus deste trabalho.

Rejeitamos a caracterização do discurso direto como “literal”, “objetivo”, “simples”, pois, apesar de relatar falas consideradas como realmente proferidas, trata-se apenas de uma

encenação visando criar um efeito de autenticidade (Maingueneau, 2001, p. 141, grifo no

original). Rejeitamos, também, a caracterização do discurso indireto como uma forma dependente do discurso direto, uma vez que se trata de dois modos radicalmente distintos de

representação de um outro ato de enunciação (Authier-Revuz, 1998, p. 150).

Demonstraremos o nosso entendimento dos discursos direto e indireto a partir da consideração de que os dois interagem no interior do discurso citante.

Criticamos, ainda, por ser redutora, a trilogia discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre como único modelo de citação do discurso de outrem e, com base no material analisado, pretendemos demonstrar por que podemos acrescentar o que chamamos de

comentário às formas de citação. Entendemos essa “forma de citação”, por sua vez, no

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A interação a partir da qual analisamos o discurso direto, o discurso indireto e o

comentário foi-nos sugerida por um recurso lingüístico – os verbos de opinião, sobre os quais

iniciamos nossa investigação. Ao analisar tais verbos nas notícias do jornal Folha de S.Paulo, demo-nos conta de que deveriam ser estudados em conjunto com os procedimentos de apropriação do discurso de outrem, pois que este é seu contexto lingüístico natural. Para se apropriar do discurso de outrem, o eu, necessariamente, deve atribuir uma força ilocucionária (o termo é tomado de Austin, 1990), ou seja, um sentido a esse discurso, e o faz por meio dos

verbos de opinião. O fato de o verbo de opinião ser requerido no processo de citação das

palavras de outrem é, assim como a necessidade de ajustes do discurso citante para receber o discurso citado, uma outra indicação de que esse processo é complexo.

Ao analisar, por sua vez, os verbos e os respectivos discursos de outrem a que eles remetem, demo-nos conta de que uma mesma citação poderia mobilizar mais de um verbo e mais de uma forma de citação, num procedimento que envolve uma complexa interação entre esses verbos e essas formas de citação. Foram encontrados setenta e quatro verbos de opinião nas notícias da Folha de S.Paulo. Selecionamos apenas um para estudo – o verbo “dizer”, por ser considerado, pelo jornal analisado, o mais neutro (Manual da redação da Folha de S.Paulo, 2001, pp. 104-5) e, conseqüentemente, por ser visto como um curinga (Marcuschi, 1991, p. 90) no jornalismo, que teria a propriedade de barrar a opinião do jornalista sobre a fala citada de outrem.

Neste trabalho propomos, portanto, uma discussão da interação entre o verbo de opinião “dizer”, os discursos direto e indireto, entendidos de modo diferente do entendimento padrão, e o comentário, entendido, aqui, como uma forma de citação. Mais especificamente, propomos uma discussão da presença do verbo de opinião “dizer” num discurso direto ou indireto, incluindo a possibilidade de interação simultânea com outro discurso direto e/ou outro discurso indireto e/ou comentário. Nosso objetivo é negar a afirmação sustentada no Manual da redação da Folha de S.Paulo 2001 e, de certo modo, a crença, mantida no jornalismo como um todo, de que o verbo “dizer”, ao classificar uma fala, não induz o leitor – ou induz muito pouco – a uma interpretação dessa fala. Para tanto, questionamos essa neutralidade do verbo “dizer” com base no fato de que, ao fazer parte de um discurso direto ou indireto, aparece articulado com verbos de outras formas de citação na remissão a uma mesma fala.

Vale lembrar, ainda, que essa fala faz parte de uma notícia de determinada editoria do jornal e que é sempre atribuída a uma fonte (um entrevistado e/ou instituição, cuja voz é retomada), além de conter um assunto específico. A editoria do jornal, a fonte da informação

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e os dados que são fornecidos por essa fonte são aspectos importantes do funcionamento do discurso citado na notícia.

O tratamento dessas questões mostra que não nos recusamos a abordar o tema, já bastante discutido, da (não)-neutralidade no jornalismo. No entanto, essa abordagem, que não é central no presente trabalho, dá lugar, preferencialmente, ao estudo – em termos lingüísticos – do funcionamento do discurso citado na notícia jornalística. Nesse estudo, inclui-se o do uso do verbo “dizer” nas diferentes editorias da Folha de S.Paulo, considerando-se, também, a diferença de fontes e de dados fornecidos por elas em suas falas.

Iniciamos nossa exposição com um capítulo de revisão teórica. Primeiramente, trazemos a abordagem austiniana de ato de fala, que permite avançar a idéia de que o sentido não se restringe apenas às palavras. É a partir de Austin que pretendemos discutir a possibilidade de atribuição de múltiplos sentidos ao verbo “dizer” numa notícia. Apresentamos, a seguir, as idéias de Bakhtin sobre dialogia, enunciado, discurso e gêneros

do discurso e, ainda, consideradas as especificidades de cada autor, as concepções de Bakhtin,

de Authier-Revuz e de Foucault sobre os modos de apropriação do discurso de outrem. A partir desses autores, lidamos, também, com a noção de comentário, mesmo que ela não seja por eles abordada, propriamente, como uma forma de citação. Essas mesmas concepções teóricas nos auxiliarão na elaboração de uma noção de sujeito e de linguagem.

No capítulo seguinte, apresentamos o corpus e o método de análise empregado. Adotamos, inicialmente, uma metodologia quantitativa, seguida, depois, de uma metodologia qualitativa com levantamento de hipóteses sobre o funcionamento da linguagem na notícia jornalística. Ainda nesse capítulo, destacamos algumas hipóteses que nortearam a análise e abordamos detidamente a notícia jornalística, a questão da (não)-objetividade e o verbo de

opinião, de modo a criticar o tratamento dado a esses temas no Manual da redação 2001 da

Folha de S.Paulo.

O quarto capítulo é dedicado à análise propriamente dita. Nele, especificamos, numa primeira parte, os motivos da opção pelo verbo “dizer” e pelo discurso citado como elemento associado a esse verbo e, mostramos, numa segunda parte, a articulação entre discurso citado, discurso citante e verbo “dizer” em dois ou mais procedimentos de citação relacionados na notícia. Com isso, queremos oferecer uma reflexão que seja de interesse para profissionais de jornalismo, para estudiosos da linguagem e para toda sorte de não-especialistas, leitores de jornal.

Por fim, apresentamos, respectivamente, as considerações finais, a bibliografia e os anexos do trabalho.

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2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Lançaremos mão, inicialmente, da teoria dos atos de fala. Interessa-nos propor uma reflexão sobre o dizer como ato e sobre as implicações – tendo em vista a definição de ato de

fala – do emprego do verbo “dizer” numa situação particular de uso. É essa a teoria a

abrir-nos caminho para afirmarmos que uma palavra em uso (um verbo, por exemplo), seja qual for, pode assumir diferentes sentidos.

Num passo seguinte, apresentamos as teorias que tratam da citação do discurso de outrem em discurso direto e discurso indireto e que abordam o comentário, ainda que não o contemplem diretamente como uma forma de citação, mas como um conceito dialógico ou como elemento relacionado ao discurso direto e ao discurso indireto. Apresentamos, também, concepções de sujeito compatíveis com as várias noções sobre o funcionamento do discurso citado no discurso citante. Veremos que, reconhecidas as suas especificidades, essas teorias dialogam entre si, o que nos auxilia na abordagem das concepções de linguagem e de sujeito, bem como na das noções de enunciado, enunciação, discurso e gêneros do discurso.

Para finalizar, comentamos – sem pretender esgotar toda a literatura a respeito do assunto – os resultados de algumas pesquisas recentes a respeito das formas de citação do discurso de outrem e dos verbos de opinião no jornalismo.

No decorrer dessa exposição teórica, procuramos, sempre que possível, esboçar a relação entre cada teoria e a análise que propomos, antecipando algumas considerações sobre a escrita jornalística, ou, mais especificamente, sobre a imagem de escrita jornalística compartilhada pelos manuais de redação (no nosso caso, o Manual da redação da Folha de S.Paulo), pelos livros de jornalismo e pelos próprios jornalistas.

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2.1. AUSTIN E A TEORIA DOS ATOS DE FALA

Longe de ser uma simples representação dos acontecimentos do mundo, a linguagem interfere nas atitudes pessoais e nas relações interpessoais, sendo decisiva para a própria dinâmica dos fazeres humanos. Ela não traduz os fatos, mas dá a eles um valor, que pode ser o de uma ordem, um pedido, um comunicado, uma constatação, o de uma ação de algum tipo, enfim. A vinculação inseparável entre linguagem e ação desfaz o mito de que é possível abordar lingüisticamente algum acontecimento do mundo sem atribuir-lhe um valor. As palavras em uso não são nunca sem sentido, o que não significa que são elas que autodeterminam o próprio sentido.

Essa idéia de que o sentido não está apenas nas palavras é a principal contribuição, para o nosso trabalho, da teoria dos atos de fala elaborada pelo filósofo da linguagem inglês John Langshaw Austin (1990) – doravante Austin. É ele quem afirma que as palavras são apenas um dos elementos que levam ao sentido de um ato de fala, não devendo ser consideradas isoladamente, sem que se atente para quem fala, com quem se fala e em que situação se fala.

Reconhecer o ato de fala como propõe Austin é trabalhar a linguagem de uma perspectiva pragmática, não-logicista. Na perspectiva lógica, a língua é um instrumento que permite a descrição de estados de coisas do mundo, de modo que os enunciados possam ser submetidos a critérios de verdade e falsidade. Nessa perspectiva, o sujeito falante é desconsiderado, tal como a situação interacional que envolve a sua fala.

Austin parte do objeto de estudos da lógica – a “sentença/declaração em si” – para construir um outro – o ato de fala ou proferimento performativo (a consideração da “declaração em si” associada às condições em que foi produzida) –, este, sim, lugar de construção de sentidos lingüísticos1. O filósofo da linguagem critica a idéia logicista de que

dizer algo é unicamente produzir sons com uma estrutura sintático-semântica prevista por uma determinada língua, rejeitando a concepção de linguagem como sistema formal puro.

1 Os termos sentença, declaração e proferimento performativo são definidos pelo próprio Austin nos

seguintes termos:

A sentença é entendida (...) como uma unidade lingüística, possuindo uma estrutura gramatical e dotada de significado, tomada em abstrato. A declaração seria então o uso da sentença para afirmar ou negar algo, podendo ser falsa ou verdadeira. O proferimento é a emissão concreta e particular de uma sentença, em um momento determinado, por um falante determinado. Assim, a sentença da língua portuguesa, ‘A rosa é vermelha’ pode ser usada para afirmar uma característica (ser vermelha) de um objeto (a rosa), o que pode ser verdadeiro ou falso, quando proferida por alguém em um contexto determinado (op. cit., p. 21).

Ainda sobre o performativo, cabe dizer que é derivado do verbo inglês “to perform”, correlato do substantivo “ação”, e indica que ao se emitir o proferimento está-se realizando uma ação, não sendo,

conseqüentemente, considerado um mero equivalente a dizer algo (idem, p. 25). Trata-se de um neologismo,

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Para o filósofo, além de sons compatíveis com a gramática de uma língua, o que ele chama de ato locucionário, o dizer envolve outros dois tipos de ato – o ilocucionário e o

perlocucionário. Os três atos, que se manifestam simultaneamente em qualquer ato de fala,

explicam o que Austin chama de uma ação feita com o dizer, ou seja, explicam o sentido em que dizer algo é fazer algo, segundo sua teoria.

2.1.1 Em que sentido dizer algo é fazer algo: três atos no ato de fala

Dizer algo é, para Austin, como dissemos, realizar três tipos de atos ao mesmo tempo. O

ato locucionário é o ato de dizer algo ou o ato de proferir certos ruídos, certas palavras em determinada construção, e com um certo ‘significado’ (...), isto é, com um sentido e uma referência determinados (idem, p. 85). O ato locucionário é a parte estritamente lingüística do

ato de dizer. Esse é o ato central para a tradição lógica e é deste ato que a lógica se ocupa quando se ocupa da “sentença em si”, já que a analisa apenas como estrutura formal.

O ato locucionário não é isolado do ato ilocucionário, uma outra ação feita com o dizer, diferente da ação de dizer algo. É o ato mesmo de fazer algo ao se dizer algo: de se estar

perguntando ou respondendo a uma pergunta, dando alguma informação ou garantia ou advertência; anunciando um veredito ou uma intenção, pronunciando uma sentença, marcando um compromisso, fazendo um apelo (idem, p. 89).

A um mesmo ato locucionário podem ser associados diferentes atos ilocucionários, como nos casos de ‘Vai atacar’ e ‘Feche uma porta’ (idem, p. 88). Embora seja possível entender o que se quer dizer ao se pronunciar tais atos locucionários, as locuções em si não dão conta de esclarecer se têm a força ilocucionária2 (idem, p. 89) de uma declaração, ou de

uma advertência, ou de um conselho. Não esclarecem que tipo de ato ilocucionário realizam. Cumprem este papel de esclarecimento as circunstâncias imediatas de troca lingüística entre os sujeitos, caso a força do proferimento não seja explícita o suficiente para sugerir como esse proferimento deve ser considerado. Como afirma Austin: faz uma grande diferença saber se

estávamos advertindo ou simplesmente sugerindo, ou, na realidade, ordenando; se estávamos estritamente prometendo ou apenas anunciando uma vaga intenção, e assim por diante

(idem, p. 88).

O terceiro dos atos, o perlocucionário, implica na produção de efeitos pelo dizer, efeitos

ou conseqüências sobre os sentimentos, pensamentos, ou ações dos ouvintes, ou de quem está falando, ou de outras pessoas. E isso pode ser feito com o propósito, intenção ou objetivo de 2 Força ou força ilocucionária equivalem ao sentido não-lógico de um ato de dizer. É o valor que as

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produzir tais efeitos (idem, p. 91). Alguns desses efeitos são os de convencer, persuadir, impedir ou, mesmo, surpreender ou confundir (idem, p. 95) o interlocutor, que pode, no

entanto, não ser convencido nem persuadido nem impedido nem surpreendido ou confundido. O efeito nem sempre se realiza, portanto. Nesse ponto, segundo Corrêa (2003), depreende-se um fundamento retórico do ato de fala, ao lado dos fundamentos lógico e pragmático. O ato

perlocucionário, ao representar a ação que se produz no outro como conseqüência do ato de dizer, isto é, a sua eficácia, retoma, de um outro modo, a reflexão sobre como é constituído o auditório e como este último constitui o dizer do orador (op. cit., pp. 43-4).

Os três atos de que tratamos – locucionário, ilocucionário e perlocucionário – são a base para negar que o sentido se vincule exclusivamente às palavras e permitem constatar a ambigüidade inerente a todo ato de dizer (Koch, 2000), a dificuldade de controlar o sentido do dito e, pelo menos, alguma complexidade envolvendo a “compreensão” de cada coisa que é falada. Segundo Austin:

Uma vez que percebemos que o que temos que examinar não é a sentença, mas o ato de emitir um proferimento numa situação lingüística, não se torna difícil ver que declarar é realizar um ato. Além do mais, se compararmos o declarar com o que dissemos a respeito do ato ilocucionário vemos que é um ato que, exatamente como ocorre com outros atos ilocucionários, exige de maneira essencial que ‘asseguremos sua apreensão’. As dúvidas a respeito de se declarei algo, no caso de não se haver ouvido ou entendido o que foi dito, são as mesmas que podem surgir a respeito de se o que se disse sotto voce foi uma advertência ou se foi um protesto, caso alguém não o tenha tomado como um protesto, etc. E as declarações ‘têm efeito’ do mesmo modo que o tem o ato de batizar um navio. Se declarei algo, isso me compromete a outras declarações: outras declarações minhas posteriores estarão ou não de acordo com isso. Também, daí em diante, outras declarações ou observações feitas por outras pessoas estarão ou não em contradição com a minha, a refutarão ou não, etc. Se, contudo, uma declaração não pede uma resposta, isso não é essencial a todos os atos ilocucionários. E, por certo, ao fazer uma declaração estamos ou podemos estar realizando atos perlocucionários de todo tipo (idem, p. 115, grifos no original).

A complexidade da linguagem extrapola os limites de um funcionamento lógico porque a linguagem não pode ser concebida sem os interlocutores que a colocam em uso nem como uma produção de atos de fala que não têm qualquer relação entre si nem, tampouco, como isolada das circunstâncias de sua utilização. Formadas por elementos de diferentes ordens, estas circunstâncias são diversas e devem ser definidas como apropriadas para que resultem em uma ação pela linguagem realizada com sucesso. As circunstâncias apropriadas são, portanto, tão fundamentais quanto as palavras num ato de dizer.

(23)

2.1.2. Ação realizada com palavras e em circunstâncias apropriadas

As circunstâncias apropriadas são uma das condições imprescindíveis para que o

performativo resulte em uma ação realizada. Outra dessas condições, igualmente

imprescindível, é o pronunciamento das próprias palavras. Uma condição deve vir acompanhada da outra. Não basta dizer ‘Batizo este navio com o nome de Rainha Elizabeth’ (Austin, idem, p. 24, grifo no original) contra o casco de um navio para que este seja efetivamente batizado. É preciso dizer “Batizo...” e é também (...) essencial que eu seja a

pessoa escolhida para fazê-lo (idem, p. 26). Não basta dizer “Aposto” se meu interlocutor não

me disse “Feito”. Do mesmo modo, não basta dizer “Dou-lhe isto” para que minha doação se concretize. É preciso que haja, nesse caso, além da fala anunciando a doação, também a entrega de algum objeto a outrem.

São diversificadas, portanto, as circunstâncias apropriadas que podem estar ligadas, em conjunto com as palavras, à realização de um proferimento performativo – a situação física (no caso do batizado do navio, é preciso estar próximo ao navio), o compartilhamento entre interlocutores (uma aposta tem de ser reconhecida e aceita pelos apostadores para ser válida), a dependência de terceiros (uma testemunha, no caso da aposta, ou um objeto a ser doado, no caso de uma doação de algo a alguém). Entre essas circunstâncias, aparece, também, a intenção do locutor: uma promessa, por exemplo, não será efetivada só com o dizer “Prometo”; ao se prometer algo, é preciso que se tenha de fato a intenção de cumprir com a palavra. Caso a promessa não seja cumprida, terá sido “infeliz”, ou “fracassada”, ou “falha”, ou “malograda”, ou “nula”, ou “sem efeito”, ou “abusiva”, dependendo de qual circunstância tenha falhado.

As condições circunstanciais de um ato de dizer são enumeradas e definidas por Austin como segue:

(A.1) Deve existir um procedimento convencionalmente aceito, que apresente um determinado efeito convencional e que inclua o proferimento de certas palavras, por certas pessoas, e em certas circunstâncias; e além disso, que

(A.2) as pessoas e circunstâncias particulares, em cada caso, devem ser adequadas ao procedimento específico invocado.

(B.1) O procedimento tem de ser executado, por todos os participantes, de modo correto e

(B.2) completo.

(ґ.1) Nos casos em que, como ocorre com freqüência, o procedimento visa às pessoas com seus pensamentos e sentimentos, ou visa à instauração de uma conduta correspondente por parte de alguns dos participantes, então aquele que participa do procedimento, e o invoca deve de fato ter tais pensamentos ou sentimentos, e os

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participantes devem ter a intenção de se conduzirem de maneira adequada, e, além disso,

(ґ.2) devem realmente conduzir-se dessa maneira subseqüentemente (idem, p.

31).

As “pessoas”, como se percebe em especial pela leitura dos itens A.2, B.1, ґ.1 e ґ.2, têm destaque entre as circunstâncias de que nos fala Austin. Se uma “pessoa” diz algo e não é reconhecida pelo interlocutor como uma autoridade para tê-lo dito, o seu dizer tende a ser desconsiderado. Mais uma vez, portanto, na teoria dos atos de fala, a “compreensão” do que é falado aparece como algo complexo – essa complexidade está também sugerida, como já dissemos, na simultaneidade dos atos locucionário, ilocucionário e perlocucionário em todo

ato de fala.

Ainda no que se refere às “pessoas” envolvidas em um ato de fala, cabe desenvolver um pouco a abordagem do modo como o locutor e sua intenção participam, na teoria austiniana, da realização desse ato.

2.1.3. Ser jurídico, circunstâncias, convenções

O sujeito austiniano é, segundo a leitura mais comumente efetuada, um ser consciente e em posição de destaque em relação ao interlocutor, pois sua intenção determinaria como deve ser depreendida a força ilocucionária de um ato de fala, de tal modo que um ato não se realizaria sem que a intenção do sujeito do dizer fosse captada pelo interlocutor: cumpre que

o interlocutor reconheça a força ilocucionária do ato produzido pelo locutor para que este surta os efeitos desejados e, portanto, se concretize enquanto ação (Koch, idem, p. 23).

Esse sujeito é, pois, um ser jurídico, regulado pelas convenções sociais e com plena consciência do que quer dizer, do que não quer dizer e de como quer que o seu dizer seja interpretado. É alguém, portanto, que acredita ser o eixo norteador do sentido daquilo que diz.

Essa visão de sujeito em Austin é polêmica. Se mantida, levaria, no limite, a assumir que a própria intenção do sujeito determinaria, em grande parte, a produção da linguagem como ato. Entretanto, a performatividade da linguagem é algo independente do que tenciona o sujeito. Afirmar a intenção do sujeito como sustentáculo do ato de fala é considerar a

performatividade como presa inclusive a certos paradigmas formais na própria língua

(Corrêa, idem, p. 50), quando, pelo contrário, ela corresponderia a uma propriedade constitutiva – e não formal – da linguagem.

As diferentes visões sobre esse sujeito levam-nos a adotar critérios e ressalvas quando falamos em “sujeito consciente” e “cheio de intenções” em Austin. Um ponto de vista

(25)

diferente vincularia a liberdade de dizer do sujeito não à sua intenção, mas a práticas ritualizadas, entendidas como processo dinâmico, e não como práticas convencionais meramente repetíveis. Segundo Corrêa,

essas práticas ritualizadas não devem ser entendidas (...) nem como práticas estritamente ligadas a situações de uso concreto da língua, nem como práticas simplesmente repetidas. Na qualidade de práticas lingüísticas e, portanto, sociais, atravessam várias situações de uso e jamais se encontram prontas antes do próprio ato de fala. Este último não é, portanto, um simples procedimento de adequação da língua a situações ritualizadas de uso, mas – pode-se dizer – é o elemento que, ao mesmo tempo, fecha e abre o circuito da convencionalização para novos atos e novas práticas ritualizadas/por ritualizarem-se (idem, p. 51).

Interessa-nos, em Austin, o conceito de ato de fala num processo dinâmico de uso lingüístico e no interior de uma performatividade constitutiva da linguagem, sobre a qual o sujeito não tem total controle. Acreditamos ganhar, com essa noção, um argumento que nega as visões que acreditam na transparência do sentido, vinculando-o ora exclusivamente às palavras, ora às intenções do sujeito.

Para nossos objetivos é, ainda, importante a afirmação de Austin de que, na linguagem, é fundamental determinar o ato ilocucionário do dizer. Isso porque, no jornalismo – e, particularmente, na notícia jornalística – “faz toda diferença”, em termos de atribuição de sentido(s) para a notícia, esclarecer o ato de fala de uma fonte. Tanto é assim que há normas – encontradas, por exemplo, no Manual da redação que analisamos – regulamentando a prática jornalística no que se refere à classificação de atos de fala de entrevistados, restringindo-a. A nosso ver, tal regulamentação é problemática, pois tende a tratar os atos de fala apenas como atos locucionários.

Identificar os atos de fala a atos apenas locucionários como procedimento suficiente para interpretar a fala de uma determinada fonte (de um entrevistado, por exemplo), tal como aparece na regulamentação do Manual, é associar o sentido do discurso citado na notícia unicamente ao sentido lexicográfico do verbo utilizado na explicitação do ato. Ou seja, é revelar-se partidário da idéia de que o sentido está apenas na palavra (no verbo, no caso) – e não nela e em sua relação com os contextos verbal e não-verbal – e, ainda, de que o sentido é determinado unicamente no momento da produção jornalística.

Reproduzir atos de fala, incorporá-los à notícia e atribuir-lhes sentido é um compromisso do jornalista com a profissão e com a empresa em que trabalha, mas faz parte também das exigências do próprio gênero em que escreve. Na realidade, a produção jornalística está repleta de atribuições de atos ilocucionários aos dizeres citados. Pode-se,

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pois, afirmar que a incorporação de dizeres exigida pelo gênero notícia vai muito além de uma simples apresentação desses dizeres, já pelo fato de os discursos citados virem sempre associados a um ato ilocucionário.

No dia-a-dia do trabalho jornalístico, a preocupação com o ato perlocucionário também está presente, embora de uma maneira velada e apesar do fato de não se reconhecer, comumente, o ato como tal. Os atos de fala incorporados e interpretados nas notícias repercutem na sociedade e não são sempre recebidos de maneira positiva. A atribuição de um valor ilocucionário recusado por um entrevistado, por exemplo, pode ter como conseqüência uma ação judicial contra o jornal. Como modo de se prevenir contra condenações na Justiça e contra a desaprovação social, muitos jornais, como a Folha de S.Paulo, criam normas para controlar a atribuição de valores ilocucionários. Tentam, com isso, exercer o controle sobre os efeitos dessa atribuição.

2.1.4. A fala explicitada com o verbo “dizer”

Com base no conceito de ato de fala, que nega a transparência do sentido, pretendemos demonstrar que o verbo “dizer” não pode ser compreendido do ponto de vista locucionário ao ser utilizado para classificar atos de fala na notícia jornalística. Sobre este verbo, Austin faz menção especial em, pelo menos, um trecho de suas reflexões: o autor considera difícil de precisar o seu sentido ao classificar um determinado ato de fala, idéia com a qual concordamos e na qual nos apoiamos para afirmar que a explicitação de um ato de fala, ainda que por meio do verbo “dizer”, não é um simples dizer, nem garante neutralidade.

Ao defender que se fazem coisas com a linguagem, Austin afirma que esse verbo congrega várias possibilidades de atos ilocucionários, dando, em razão disso, abertura para uma variedade de sentidos. Vale notar que o autor faz essa afirmação para reforçar que o dizer nunca se dá fora da atribuição de uma força ilocucionária, justamente o contrário do que sugere o Manual da redação. Vejamos:

(...) não podemos sempre usar com facilidade ‘disse que’. Se a pessoa utilizou-se do modo imperativo ou frautilizou-ses equivalentes, diríamos ‘mandou-me que’, ‘aconselhou-me a’, e assim por diante. Compare-se ‘disse que’ com ‘saudou-me’ e ‘apresentou suas desculpas’ (Austin, idem, p. 87).

O verbo “dizer”, quando conjugado na primeira pessoa – “eu digo” –, é classificado por Austin, embora não definitivamente, como um dos atos de fala “expositivos”, atos estes que

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130). O “eu digo” já significaria, pois, uma opinião, apesar de não ser expressa pelo verbo “opinar”, isto é, como um “eu opino”.

Na lista de verbos “expositivos” elaborada por Austin, encontram-se verbos que também participam da classificação da fala de personagens da notícia tal qual o verbo “dizer”: ‘afirmo’, ‘nego’, ‘descrevo’, ‘classifico’, ‘informo’, ‘observo’, ‘aviso’, ‘menciono’,

‘argumento’, ‘concluo com’, ‘pergunto’, ‘analiso’, ‘distingo’, ‘creio’, ‘exemplifico’, ‘formulo’, ‘aceito’, ‘concedo’, ‘explico’, ‘entendo’, ‘concordo’ (idem, p. 131), entre outros.

Em todos esses casos, há uma opinião expressa em termos de explicação, classificação, argumentação, menção, formulação, conclusão, aceitação, concessão, observação, informação, descrição, crença, análise, pergunta, concordância.

A propósito, vale destacar as demais classificações dos verbos, propostas por Austin, segundo os tipos de atos que realizam. Além dos verbos “expositivos”, Austin também destaca o ato de fala “comissivo”, cuja característica é a de comprometer quem o usa a uma

determinada linha de ação (idem, p. 127). Os verbos que participam de tais atos de fala são ‘prometo’, ‘me comprometo a’, ‘estou decidido a’, ‘dou minha palavra’, ‘contrato’, ‘compactuo’, ‘me obrigo a’, ‘tenho a intenção de’, ‘planejo’, ‘pretendo’, ‘garanto’, ‘defendo’, ‘tenho o propósito de’, ‘concordo’3, ‘juro’, ‘aposto’, entre outros, que também

podem aparecer no interior da fala de um personagem da notícia jornalística.

Já os atos de fala “comportamentais”, outra denominação austiniana, incluem a idéia de

reação diante da conduta e da sorte dos demais, e de atitudes e expressões de atitudes diante da conduta passada ou iminente do próximo. Exemplos:

1. Para pedir desculpas, temos ‘peço desculpas’. 2. Para agradecer, temos ‘agradeço’.

3. Para expressar solidariedade, temos ‘deploro’, ‘me compadeço’, ‘cumprimento-o’, ‘condôo-me’, ‘me congratulo’, ‘felicito’, ‘me compadeço’.

4. Para atitudes, temos ‘me declaro ofendido’, ‘não me importo’, ‘rendo tributo a’, ‘critico’, ‘me queixo’, ‘reclamo’, ‘aplaudo’, ‘passo por alto’, ‘recomendo’, ‘lamento’ e os usos não exercitivos de ‘censuro’, ‘culpo’, ‘aprovo’ e ‘apóio’.

5. Para saudações, temos ‘seja bem-vindo’, ‘boa sorte’.

6. Para desejos, temos ‘abençôo’, ‘amaldiçôo’, ‘brindo a’, ‘à sua saúde’ e ‘te desejo’ (em seu uso estritamente performativo).

7. Para desafios, temos ‘desafio-o a’, ‘duvido que’, ‘protesto’, ‘convido a’ (defender um tema) etc. (Austin, idem, p. 129).

3 “Concordo” é classificado por Austin como comissivo e exercitivo ao mesmo tempo. Outros verbos

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Resta citar os atos de fala “exercitivos”, que consistem no exercício de poderes, direitos

ou influências. Por exemplo: designar, votar, ordenar, instar, aconselhar, avisar, etc. (idem,

p. 123).

Fizemos essa descrição um pouco extensa para mostrar a variedade de atos que os verbos podem suscitar, sendo que não há verbo em uso sem um ato que lhe seja associado. Temos interesse nessa variedade e nesse entendimento dos verbos como atos, porque, apesar de concentrarmos nossa investigação no funcionamento do verbo “dizer” no interior da notícia, o funcionamento deste verbo não acontece senão na relação com outros verbos.

2.2. BAKHTIN E A DIALOGIA DA LINGUAGEM

Trataremos, neste ponto, dos conceitos de dialogismo, polifonia, enunciado, discurso e

gêneros do discurso, todos de Mikhail Bakhtin – doravante Bakhtin –, com o fim de explicitar

o sentido em que os empregamos, uma vez que a eles estão atreladas as afirmações que fazemos sobre discurso direto, discurso indireto e comentário.

2.2.1. Dialogismo e polifonia

Não separamos língua, sociedade e história e é nesse sentido que nos apoiamos nos conceitos de Bakhtin, acima mencionados.

O dialogismo é, para Bakhtin, o princípio constitutivo da linguagem. Para o autor, a linguagem tem uma natureza dialógica, o que equivale a dizer que, independentemente de como, por que e por quem é utilizada, pressupõe sempre uma situação de interação entre enunciador e enunciatário na produção lingüística. Segundo esse ponto de vista, ainda que o uso que se faça da linguagem possa ser solitário, como em muitos casos de elaboração aparentemente monológica de um documento escrito, há um interlocutor, ao menos virtualmente constituído, que conduz as escolhas lexicais, as mudanças de parágrafo e as expectativas do escrevente.

Do ponto de vista dialógico de Bakhtin (1992), o enunciatário não é um destinatário passivo, limitado à compreensão do enunciador. Ele tem um papel ativo (op. cit., p. 292), e é tão atuante quanto o enunciador no processo de significação discursivo:

De fato, o ouvinte que recebe e compreende a significação (lingüística) de um discurso adota simultaneamente, para com este discurso, uma atitude responsiva

ativa: ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se

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todo o processo de audição e de compreensão desde o início do discurso, às vezes já nas primeiras palavras emitidas pelo locutor (idem., p. 290, grifo no original)4.

Não há protagonista ou coadjuvante na relação enunciador/enunciatário. O enunciador é um enunciatário em atitude responsiva ativa e o enunciatário é um enunciador em potencial, iminente. Quanto à atitude responsiva ativa, sempre acompanha a compreensão de um enunciado, já que toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra,

forçosamente a produz (Bakhtin, idem, ibidem).

Cada enunciado é, portanto, organizado como resposta a enunciados produzidos anteriormente, é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados (idem, p. 291), não representando um início nem um fim em si próprio: ao tomar corpo, o enunciado, ao mesmo tempo em que responde a enunciados prévios, pode suscitar respostas em enunciados que irão sucedê-lo. Essa interação entre enunciados, chamada de intertextualidade no interior do discurso (Barros & Fiorin, 1994, p. 4), é um outro tipo de dialogia defendido por Bakhtin, ao lado da interlocução direta entre enunciador e enunciatário.

Desse ponto de vista, só é possível falar em “compreensão” do enunciado porque ele representa a abertura para uma resposta do enunciatário, ainda que seja imprevisível e também indeterminada no que se refere ao tempo em que vai ocorrer. A atitude responsiva ativa pode ser imediata, ou permanecer “muda”, surtindo um efeito retardado, mas de qualquer maneira infalível: cedo ou tarde, o que foi ouvido e compreendido de modo ativo

encontrará um eco no discurso ou no comportamento subseqüente do ouvinte (Bakhtin, idem,

p. 291).

O conceito de dialogia será utilizado em dois sentidos neste trabalho: não só no que remete à avaliação do discurso jornalístico como dialógico – cada notícia é uma atitude responsiva do repórter relativamente a enunciados anteriores5 –, mas também no que diz

respeito à avaliação do discurso de outrem que aparece na notícia como dialógico relativamente ao discurso do repórter.

Da mesma maneira, utilizaremos a idéia da polifonia, estritamente ligada ao conceito de dialogia. Na perspectiva polifônica, nenhuma palavra é nossa, mas traz em si a perspectiva

de outra voz (Barros & Fiorin, idem, p. 3) – cada enunciado é um compósito de vozes

diversas, por vezes conflitantes entre si, que atravessam a voz do enunciador. Já que

4 Embora Bakhtin trate, neste trecho, o enunciatário apenas como ouvinte, ele entende que a atitude

responsiva ativa do enunciatário é um acontecimento válido não só para enunciados orais, mas também para os enunciados escritos (cf., idem, p. 291).

5 Pode-se pensar, por exemplo, na presença de intertextos literários (em sentido amplo) presentes,

potencialmente, em notícias jornalísticas de página policial, mas sobretudo, no intertexto que a própria prática jornalística (mais próxima ou mais distanciada no tempo) constitui, qualquer que seja a editoria considerada.

(30)

atravessado por essas diversas vozes, o enunciador só pode exercer o papel de centro do seu dizer na ordem da representação/simulação. Continua, pois, exercendo esse papel. No entanto, ao organizar as vozes de seu enunciado, apenas representa/simula aquela centralidade, podendo, porém, ainda assim, convencer-se a si mesmo e tentar convencer ao seu interlocutor de que ela existe de fato.

Pode-se dizer, portanto, que, visto da perspectiva polifônica, o sujeito da linguagem assume um caráter histórico e ideológico.

2.2.2. Enunciado, gêneros do discurso e discurso

Adotamos de Bakhtin a noção de enunciado, que se caracteriza pela mobilização de determinadas estruturas lingüísticas em uma situação discursiva imediata e única. Cada enunciado é, desta maneira, também único, irrepetível, já que as condições em que é produzido – a interação enunciador/enunciatário, o lugar social de onde falam, as imagens que constroem de si e do outro, o momento histórico-social, a atitude responsiva formulada – não voltam a se associar do mesmo modo, em outros enunciados. Ao mesmo tempo em que é exclusivo, digamos assim, o enunciado não é original, não tem um início nem um fim em si próprio, mas retoma, em resposta, enunciados prévios a ele, produzidos em situações discursivas anteriores e igualmente específicas, além do fato de que ele mesmo, a partir da sua existência, pode ser retomado por enunciados que ainda estão por ser produzidos. Não há contradição alguma em pensar o enunciado como exclusivo, mas não-original, portanto, quando conhecemos e adotamos a noção de dialogia.

O enunciado é a unidade real da comunicação verbal (Bakhtin, 1992, p. 287). Não apresenta uma extensão mínima ou máxima, podendo ser representado por uma única palavra ou por um romance de centenas de páginas. O que o limita não é a sua extensão, mas uma finalização que abra espaço, mais cedo ou mais tarde, para algum tipo de atitude responsiva ativa. Por exemplo, cada réplica de um diálogo, por mais breve e fragmentária que seja,

possui um acabamento específico que expressa a posição do locutor, sendo possível responder, sendo possível tomar, com relação a essa réplica, uma posição responsiva (idem,

p. 294, grifos no original). Cada réplica é, portanto, um enunciado, marcado, nesse caso, pela

alternância dos sujeitos falantes (idem, ibidem).

Mas as próprias réplicas, juntas, compõem um enunciado. Esse enunciado já não é mais delimitado pela alternância dos sujeitos falantes, pois reúne todas as falas desses sujeitos que foram produzidas numa situação discursiva específica. A situação discursiva é, nesse caso, o

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fator de delimitação das fronteiras do enunciado. A mudança de situação discursiva, por um lado, e a alternância de sujeitos falantes, por outro, caracterizam, portanto, os enunciados, demarcando-os e diferenciando-os uns dos outros.

O enunciado é sempre individual, o que pressupõe a atividade discursiva de um determinado sujeito, levando-se em conta que essa atividade é realizada em determinadas condições de uso da linguagem oral e/ou escrita. Além do fato de ser único, individual e dialógico, o enunciado caracteriza-se por um conteúdo temático, por um estilo verbal e por uma construção composicional. O conteúdo temático é o tema de que fala o enunciado; o estilo verbal é o resultado da seleção dos recursos formais (lexicais, fraseológicos e gramaticais) da língua pelo enunciador; já a construção composicional é representada pelo tipo de texto produzido – narrativo, dissertativo, retórico, jornalístico.

Não há como enunciar sem vincular-se, obrigatoriamente, a um determinado gênero do

discurso – o enunciado é sempre produzido no interior de um gênero discursivo. A relação

entre enunciado e gênero do discurso é, portanto, intrínseca. Cada gênero do discurso deve ser entendido como o conjunto de enunciados relativamente estáveis usados em uma determinada esfera da atividade humana (idem, p. 283) – palestra, crônica, grupo de discussão, aula, defesa de mestrado ou de doutorado são exemplos de gêneros ligados a determinadas esferas de atividade humana. No entanto, o gênero não é estático, cristalizado, mas muda conforme o processo histórico. Isso equivale a dizer que o modo como os sujeitos usam a linguagem numa determinada esfera da atividade humana é regido pela sociedade de acordo com a sua ideologia, cultura e momento histórico. Não há liberdade ou, pelo menos, não há liberdade plena do sujeito quando do ato de enunciação. Suas escolhas lexicais, o uso da primeira ou da terceira pessoas, a abertura para explicitar uma opinião, em vez de serem uma questão de decisão individual, são uma determinação do gênero do discurso no qual enuncia. A influência do gênero nas escolhas individuais é tanto mais decisiva quanto mais ritualizada, convencional, for a esfera da atividade humana na qual se produz um enunciado.

O conceito de gêneros do discurso põe em evidência um traço marcante em Bakhtin: a associação entre formas estáveis da língua e a vida. Para o filósofo,

ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo lingüístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida. A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua (idem, p. 282).

(32)

Há uma riqueza e variedade infinita de gêneros do discurso, pois a variedade virtual da

atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa (idem, p. 279). Os gêneros do discurso são heterogêneos,

pois incluem, indiferentemente, a curta réplica do diálogo cotidiano, o relato familiar, a carta, a ordem militar padronizada, os documentos oficiais, as declarações públicas, os modos literários e as formas de exposição científica (exemplos de Bakhtin, idem, pp. 279-80). O autor ainda classifica os gêneros em secundários (ou complexos) – caso do romance, do teatro e do discurso científico – e primários (ou simples) – a carta, a réplica do diálogo cotidiano (os exemplos também são de Bakhtin, idem, p. 281). Os gêneros chamados de secundários são aqueles que contêm um ou mais gêneros simples.

Como dissemos, todo gênero do discurso, sendo constituído por enunciados estáveis, marca-se, também, por um tema, um estilo e uma estrutura composicional. Entender a notícia como gênero é entender que a citação do discurso de outrem e a explicitação dos atos de fala por meio de verbos de opinião não se dão aleatoriamente nem só da maneira como recomenda o Manual da redação, mas, sobretudo, seguem as determinações do próprio gênero. Perceberemos mais claramente a importância do gênero para a determinação da forma de citação e de classificação da citação no jornalismo ao comparar notícias de cadernos diferentes, ou seja, um mesmo gênero com mudança de tema. Em notícias de cadernos diferentes, há uma utilização também diferenciada em termos de escolhas de verbos de

opinião para classificar falas de entrevistados (e isso apesar de a recomendação em relação às

escolhas de verbos ser única para todas as editorias!). Para nós, uma das explicações possíveis para o estabelecimento dessa diferença está na atuação do gênero no processo de incorporação do discurso citado no discurso do jornalista.

No que se refere ao enunciado, nós o entendemos, neste trabalho, como uma categoria discursiva que leva em conta o entrecruzamento entre língua, sujeito e história, e como caracterizado por um acabamento não-acabado. Esse entendimento é bem diferente do de oração, que é uma categoria da língua, marcada por um começo e um fim claramente delimitados, cuja estrutura pode ser reproduzida ilimitadamente. A oposição entre oração e

enunciado é, também, uma oposição entre o modo como Saussure e Bakhtin concebem a

linguagem: o primeiro considera a língua como um sistema de formas fechado, abstrato, autônomo e homogêneo, ao passo que o segundo não entende a linguagem sem os aspectos ideológicos, dialógicos e históricos.

(33)

O conceito de enunciação, que também utilizaremos neste trabalho, vincula-se ao de

enunciado. Trata-se da situação concreta em que este foi produzido, do nome dado ao

processo de produção de enunciados.

Falta mencionar o conceito de discurso que adotaremos, ligado aos conceitos de

enunciado e de gênero discursivo de Bakhtin. O discurso é a combinação estável de dois

domínios: o das estruturas da língua e o das esferas da atividade humana. É a representação social de enunciados individuais que vão se repetindo, ao longo da história, numa prática específica – o conjunto de enunciados produzidos na prática jornalística, por exemplo, compõe o discurso jornalístico.

Com base nessas definições, traçamos o conceito que adotaremos de discurso de outrem. Por discurso de outrem entenderemos o discurso no discurso, a enunciação na

enunciação (Bakhtin, 2002, p. 144), mais do que unicamente um tema sobre o qual fala o

discurso citante. É a enunciação de uma outra pessoa transportada para o discurso citante com, pelo menos, rudimentos da sua integridade lingüística e da sua autonomia estrutural

primitivas (Bakhtin, idem, pp. 144-5) e com a conservação de seu conteúdo.

2.2.3. O discurso de outrem

Num mesmo enunciado, a noção de dialogia pode ser aplicada de diferentes modos. O próprio enunciado é uma resposta a enunciados prévios, como já ressaltamos. Considerando um enunciado escrito, composto por vários parágrafos, os próprios parágrafos, em certos

aspectos essenciais, são análogos às réplicas de um diálogo (Bakhtin, 2002, p. 141). Cada

parágrafo representa um ajustamento às reações previstas do ouvinte ou do leitor (idem, ibidem). A organização dos parágrafos é feita, portanto, para atender às necessidades de leitura do interlocutor, sendo um indício, portanto, de maior ou menor grau de dialogia.

Quanto mais fraco o ajustamento ao ouvinte e a consideração das suas reações, menos organizado, no que diz respeito aos parágrafos, será o discurso (idem, ibidem).

Também o encaixe do discurso de outrem (ou discurso citado, como também o chamamos) no enunciado do eu (ou discurso citante ou, ainda, contexto narrativo, como também o chamamos) – caso que nos interessa particularmente, em virtude do nosso objeto de análise – representa um caso de interação enunciador/enunciatário e, sendo assim, constitui-se em um modelo de dialogia (no texto escrito, aparecendo no mesmo parágrafo ou na mudança de parágrafo).

Referências

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