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A idéia divulgada no Manual da redação da Folha de S.Paulo, comumente compartilhada no meio jornalístico, é a de que classificar a fala de um personagem da notícia com o verbo “dizer” garantiria, em alguma medida, isenção por parte do jornalista. Isso porque, aparentemente, explicar um dito como um ato de “dizer” seria apenas reforçar para o leitor o óbvio: que o entrevistado pronunciou algumas palavras, ou seja, disse – mas não prometeu nem comentou nem insinuou nem protestou contra nem indagou sobre – algo. O verbo “dizer” contribuiria para a contenção de sentidos do dito, fazendo apenas indicar [a]

autoria de uma declaração (Manual da redação 2001, pp. 104-5).

No entanto, acreditamos ter mostrado que o uso do verbo “dizer” para classificar uma fala não garante, em medida alguma, isenção por parte do jornalista. Nem mesmo é possível raciocinar em termos de graus de isenção, uma vez que:

a) pensar em graus de isenção, do ponto de vista estritamente lingüístico, isto é, pela escolha, nesse caso, de um verbo, significaria dar atenção apenas ao ato locucionário, desconsiderando as circunstâncias em que esse ato se concretiza como ato de fala;

b) do ponto de vista da produção e da recepção de um texto, não é possível medir o alcance nefasto de um certo grau de isenção senão na relação entre jornalista, o produtor do texto, e leitor, seu receptor – pensar em graus de isenção é atribuir uma prerrogativa de objetividade circunscrita ao desejo do jornalista, é pressupor uma espécie de identificação entre jornalista e leitor; no entanto, o que pode ser um grau alto de isenção para o jornalista, pode ser um grau baixo de isenção para o leitor. Como afirma Maciel (2001), na recepção da notícia, é bem comum que o imaginário de objetividade criado e divulgado pelo próprio discurso jornalístico se desarme: pront[o] para receber informações neutras, transparentes e

isentas, [o receptor] tem acesso a conteúdos que ultrapassam a mera informação e direcionam para uma determinada conclusão acerca dos fatos (idem, p. 142).

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Admitimos, com base na teoria dos atos de fala de Austin, que o uso do verbo “dizer” não deixa clara a relação entre marca verbal e sentido ou entre ato locucionário e ato

ilocucionário, tal como o fazem verbos como “prometer”, “comentar”, “insinuar”, “protestar

contra”, “indagar sobre”. Mas admitir isso não é afirmar, em hipótese alguma, que o verbo “dizer” é neutro, como divulgado no Manual da redação, ou que uma fala classificada com o verbo “dizer” está mais protegida da atribuição de sentido(s). Pelo contrário: ao fazer uso desse verbo, o jornalista deixa uma lacuna na fala citada, a ser preenchida com alguma força

ilocucionária, permitindo que essa fala seja classificada, pelo leitor, com os mais diferentes

sentidos – pode ser entendida como uma promessa, um comentário, uma insinuação, um protesto, uma indagação ou como um ato de qualquer outro tipo. A escolha do verbo “dizer” favorece, na verdade, que os verbos excluídos pelo jornalista apareçam e que as possibilidades de atribuição de sentidos à fala se multipliquem.

Com base nos conceitos de dialogismo e de gêneros do discurso, de Bakhtin, e na(s)

heterogeneidade(s) enunciativa(s) de Authier-Revuz, apontamos “lugares” de onde o leitor

pode recuperar, em notícias da Folha de S.Paulo, o(s) sentido(s) da fala classificada com o verbo “dizer”:

1) na relação entre o discurso do entrevistado e o discurso do jornalista, ou seja, no modo como o jornalista prepara o seu discurso para receber um discurso que ele reconhece como não sendo seu. Essa relação pode estar demonstrada na notícia na forma de articulação entre discurso direto, discurso indireto e comentário. O jornalista, ao citar as palavras de outrem em discurso direto ou indireto com verbo “dizer”, mobiliza, nesse processo de citação, outro discurso direto e/ou discurso indireto e/ou comentário e, também, outros verbos. A mesma fala que aparece em discurso direto ou indireto com verbo “dizer” pode ser introduzida ou seguida por um outro discurso direto, e/ou por um outro discurso indireto, e/ou por um comentário elaborados com verbos diferentes do “dizer” – por exemplo, com os verbos “atacar”, “afirmar”, “informar”, “fazer comentário”. Nesses casos, portanto, o leitor poderá atribuir à fala com verbo “dizer” os sentidos de “atacar”, “afirmar”, “informar”, “fazer comentário”.

2) na relação entre o verbo “dizer” e três aspectos relacionados ao processo de citação: a editoria, a fonte da informação e a informação obtida da fonte. Um leitor pode reconhecer ou não na fonte da informação uma autoridade para abordar determinado assunto em uma determinada editoria do jornal, e, tendo em vista esse (não)-reconhecimento, pode interpretar a fala classificada com o verbo “dizer” como uma mentira, uma crítica, um elogio, um alerta. Lembramos que o próprio fato de a fonte ter sido requisitada pelo jornal para falar sobre

determinado tema numa editoria específica já é um reconhecimento, pelo menos por parte do jornal, de que aquela fonte é uma autoridade.

3) na relação entre o discurso do entrevistado e o discurso do jornalista com os discursos que não pertencem nem ao entrevistado nem ao jornalista, mas vêm de outros lugares, de outras vozes – vozes que podem ser identificadas pelo leitor como sendo do jornal, de um partido político, de um grupo social, da oposição ao governo, do governo, do senso- comum, de uma instituição religiosa ou educacional, por exemplo. A identificação da voz que fala na voz do jornalista ou do entrevistado favorece que uma fala citada com o verbo “dizer” seja interpretada como um ataque, uma afirmação, uma informação, um comentário. As possibilidades de atribuição de sentidos a esse verbo são, desta maneira, inúmeras, e fogem do controle do jornalista, pois, no seu discurso, os leitores podem reconhecer uma voz que nem mesmo ele reconheceria.

Essas outras vozes que falam no discurso do entrevistado e no discurso do jornalista podem ser recuperadas:

– do discurso direto, que não é considerado, neste trabalho, como a “reprodução literal” das palavras do entrevistado, mas como uma fala construída pelo jornalista de acordo com os objetivos da notícia que redige. Essa fala construída não tem autoria definida, podendo ser atribuída a alguém que não precisamente o entrevistado. Tal noção de discurso direto não- literal é tomada principalmente de Authier-Revuz.

– do discurso indireto, que não é considerado, neste trabalho, como a simples transmissão das palavras do entrevistado nas palavras do jornalista, mas como as palavras do entrevistado acrescidas da análise do jornalista. Essa fala construída pode ser, mas não necessariamente, atribuída ao entrevistado. Tal noção de discurso indireto analítico é tomada principalmente de Bakhtin.

– do comentário, que é considerado, neste trabalho, como uma forma de citação, pois traz embutida a fala de outrem. Formulado especialmente com base em definição de Foucault, o comentário implica em o jornalista “redizer” o que é dito na notícia em discurso direto ou em discurso indireto, ou seja, implica em o jornalista “redizer” o que é dito não necessariamente pelo entrevistado, mas por outras vozes que falam na voz deste último ou que falem a respeito desta voz. O comentário acaba se constituindo no resultado de um diálogo claro entre discurso citado e discurso citante.

A partir desse entendimento sobre discurso direto, discurso indireto e comentário, e, também, do entendimento de que o discurso direto, o discurso indireto, o comentário e as vozes que eles divulgam são relacionais, não-isolados, reconhecemos a complexidade do

funcionamento do discurso do entrevistado no discurso do jornalista, bem como a complexidade da atribuição de sentidos ao verbo “dizer” no processo de citação na notícia.

A constatação que fazemos sobre a impossibilidade de o verbo “dizer” ser neutro acaba por colocar em xeque uma das bases nas quais o discurso do Manual da redação da Folha de S.Paulo se apóia para comprovar a tentativa do jornal de ser “o mais neutro possível” no relato de um fato. Em outras palavras: ao negar a neutralidade do verbo “dizer”, questionamos um dos recursos usados pela Folha de S.Paulo para legitimar o seu jornalismo como “o mais neutro”, “o mais imparcial”, comprometido unicamente com o fato.

Do ponto de vista lingüístico, não há como o jornalista ser objetivo nem “o mais objetivo possível” no relato de um fato, ainda que se utilize, preferencialmente, do verbo “dizer” na classificação do discurso de entrevistados, ou que siga outras recomendações – como usar a língua sem erros, verificar previamente as informações a serem publicadas, sustentar tecnicamente as análises presentes em seu texto – contidas no Manual no esforço de barrar a opinião na notícia.

Nossa reflexão não pretende, no entanto, ao negar a objetividade da notícia, afirmar que o jornalista pode agir como bem entender na produção de seu texto. Em primeiro lugar porque, como sujeito social, que trabalha para uma empresa, estará sempre submetido à coerção das regras que são determinadas por ela, ainda que essas regras visem a uma neutralidade que nunca será alcançada. Em segundo, porque, como sujeito que fala dentro de um gênero, estará sempre submetido às determinações desse gênero. Em terceiro, porque, como sujeito heterogêneo, não é origem do próprio dizer nem controla o sentido daquilo que escreve, de modo que sua escrita no jornal só pode ser considerada objetiva a partir de uma ilusão associada à ilusão de ser centro do próprio dizer.

O fato de a notícia não ser objetiva, não anula, portanto, a obrigação do jornalista de conhecer as diversas variedades lingüísticas da língua (a culta, inclusive), de dar preferência ao verbo “dizer” na classificação de uma fala, de verificar previamente as informações a serem publicadas, de sustentar tecnicamente análises referidas em seu texto, de usar o lide, de publicar diferentes versões de um fato, de ser ético, enfim, não anula as obrigações do jornalista impostas pela linguagem e pela profissão. Afinal, essas obrigações são ou institucionais ou impostas pelo gênero em que escreve.

Para nós, não há contradição no fato de a notícia ser, ao mesmo tempo, não-objetiva, prescritiva, padronizada, compromissada, responsável. Ou, se há nisso contradição, não é passível de ser resolvida, mas de ser administrada pelo jornalista, a partir do momento em que estabelece uma nova relação com a linguagem.

Tentamos, tão-somente, despertar o jornalista para essa nova relação, abrindo caminho para que sua prática de escrita não seja cercada de ingenuidade e para que deixe de pensar o seu texto como algo que ele, definitivamente, não é. É essa tentativa de favorecer o estabelecimento de uma nova relação do jornalista com a linguagem – o que implica, para nós, em favorecer uma nova relação do jornalista com o Manual da redação, com o editor, com os entrevistados, com o seu texto, com as instituições sobre as quais escreve diariamente – que justifica, principalmente, a realização deste estudo.

Uma tal relação do jornalista com a linguagem poderia ser estabelecida pelo jornalista ao ser levado a pensar:

– no verbo “dizer” na notícia como não-neutro e na ilusão de ele considerar uma palavra ou um texto como objetivos.

– no discurso direto e discurso indireto como construções analíticas que são de sua responsabilidade.

– na existência do comentário como forma de citação (forma de “redizer”, implicitamente, o que é dito pela fonte da informação).

– na articulação entre essas formas de citação do discurso de outrem.

– na não-objetividade do processo de citar as palavras dos outros para autenticar as suas próprias palavras.

– nas diferentes relações estabelecidas com o leitor, o Manual da redação, a fonte do dizer, a informação obtida da fonte e o editor conforme a editoria na qual escreve.

– na ilusão de ser o centro do dizer, de ser origem do sentido e controlador da objetividade do seu texto.

Além do jornalista, acreditamos que este trabalho interesse também aos estudiosos da linguagem, uma vez que discute o funcionamento do discurso citado no discurso do eu. A um leitor que não seja nem da área de Lingüística nem de Comunicação Social, talvez este trabalho venha a servir para que, em sua leitura diária, reconheça o processo de citação na notícia como um recurso para expressar opinião – ainda que nesse processo o jornalista utilize majoritariamente o verbo “dizer” – e não para fornecer uma mera informação. Esse reconhecimento é importante principalmente se levarmos em conta que as falas de um entrevistado divulgadas no jornal contribuem para a formação de uma imagem social sobre o entrevistado, a partir da qual ao projetar, contra ela, a sua própria, o leitor estabelecerá uma relação com ele e consigo próprio. Atentar para o fato de essas falas serem construídas e não simplesmente reproduzidas pelo jornalista, em nome do jornal, é também um modo de ler a notícia distanciada e criticamente.