• Nenhum resultado encontrado

A ABORDAGEM DO COMENTÁRIO EM FOUCAULT

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.4. A ABORDAGEM DO COMENTÁRIO EM FOUCAULT

Na abordagem do comentário em Michel Foucault (1996) está implícita a consideração da dialogia, levando-se em conta que os discursos recuperam-se uns aos outros no interior de práticas discursivas marcadas por disputa de poderes e controle social. O discurso em si já é um objeto de luta e de desejo de apoderação, na medida em que para tomar a palavra não basta ter vontade e, muitas vezes, nem oportunidade, mas permissão – do grupo social, da situação discursiva, do interlocutor, da instituição em nome da qual se fala.

O comentário faz parte de um sistema de autocontrole dos discursos. Funciona a título de classificação, de ordenação e de distribuição discursivas. É um esquema de repetição dos discursos pelos próprios discursos, disfarçado pela “utopia” de que os discursos repetidores são inéditos, quando não têm nada de originais, como Foucault conclui.

Essa repetição discursiva está, segundo o autor, no cerne de uma suposição social de desnivelamento entre, de um lado, os discursos ritualizados, que “se dizem” uma vez e conservam o ato desse seu primeiro dito nos ditos seguintes porque nesses discursos se

imagina haver algo como um segredo ou uma riqueza (idem, p. 22); e, de outro, os discursos,

como o jurídico, o religioso, o literário e o científico, que estão na origem de outros dizeres e são retomados e reformulados com uma alteração do ato de fala primeiro. No entanto, diante da dinâmica do funcionamento discursivo, a idéia de discurso fundador que será reafirmado ou modificado por outros discursos não se sustenta. Não há, de um lado, a categoria dada

uma vez por todas, dos discursos fundamentais ou criadores; e, de outro, a massa daqueles que repetem, glosam e comentam (idem, p. 23). Os discursos não podem ser compreendidos

senão como comentários uns dos outros, tornando-se impossível estabelecer quem veio primeiro, que discurso originou qual, haja vista que o que é tido como discurso primeiro pode já ser um comentário e, como tal, ter servido de base para outros comentários, numa relação que não cessa, embora sofra mudanças com o tempo, tomando formas múltiplas e divergentes a cada época.

A consideração do desnível entre texto primeiro e comentário, apesar de utópica, faz-se necessária. Isso porque Foucault atribui funções à existência “imaginária” de discursos fundadores e discursos de retomada:

Por um lado [o desnível] permite construir (e indefinidamente) novos discursos: o fato de o texto primeiro pairar acima, sua permanência, seu estatuto de discurso sempre reatualizável, o sentido múltiplo ou oculto de que passa por ser detentor, a reticência e a riqueza essenciais que lhe atribuímos, tudo isso funda uma possibilidade aberta de falar. Mas, por outro lado, o comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro. Deve, conforme um paradoxo que desloca sempre, mas ao qual não escapa nunca, dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito (idem, p. 25, grifos no original).

O comentário pode chegar sem ter saído sequer do ponto de partida, não passando de uma recitação, mas exerce a sua parte no jogo discursivo. O importante, em relação ao

comentário, não é dizer algo não-dito, pois o dizer algo novo não passa de ilusão, mas

permitir a circunstância da repetição de discursos, permitir que os discursos não sejam um acaso. O novo não está no que é dito [pelo comentário], mas no acontecimento de sua volta (idem, p. 26). A nosso ver, o comentário é uma das condições de realização dos discursos e de atualização dos gêneros discursivos.

Apesar de Foucault não tratar especificamente do comentário como forma de citação do discurso de outrem, utilizaremos a reflexão do autor para tratar a noção de comentário no interior da notícia, como marca de retomada de um dizer que não tem dono – nem é (só) do jornalista nem é (só) do entrevistado, porque já foi dito alhures –, mas é, sutilmente, incorporado no discurso jornalístico, que, de modo quase imperceptível, rediz o que o entrevistado (não) disse.

2.4.1. Coerção e invento na autoria

Assim como a idéia de discursos como eternos comentários uns dos outros, que faz eco à idéia bakhtiniana de dialogia, a noção de sujeito adotada por Foucault parte do pressuposto, presente também em Bakhtin, de autoria não-inaugural ou de sujeito como não-origem do dizer. A esta consideração, somam-se em Foucault as coerções sociais capazes de comprometer a autoria, dado que o sujeito não é livre para tomar a palavra nem para organizá- la como bem entende (nesse ponto, reconhecemos a aproximação feita entre coerção social, de Foucault, e os gêneros discursivos, de Bakhtin). As coerções sociais prescrevem, inclusive, o papel da autoria numa determinada época. Lembra Foucault que,

(...) na ordem do discurso científico, a atribuição a um autor era, na Idade

Média, indispensável, pois era um indicador de verdade. Uma proposição era considerada como recebendo de seu autor seu valor científico. Desde o século XVII,

esta função não cessou de se enfraquecer, no discurso científico: o autor só funciona para dar um nome a um teorema, um efeito, um exemplo, uma síndrome. Em contrapartida, na ordem do discurso literário, e a partir da mesma época, a função do autor não cessou de se reforçar: todas as narrativas, todos os poemas, todos os dramas ou comédias que se deixava circular na Idade Média no anonimato ao menos relativo, eis que, agora, se lhes pergunta (e exigem que respondam) de onde vêm, quem os escreveu; pede-se que o autor preste contas da unidade de texto posta sob seu nome; pede-se-lhe que revele, ou ao menos sustente, o sentido oculto que os atravessa; pede-se-lhe que os articule com sua vida pessoal e suas experiências vividas, com a história real que os viu nascer. O autor é aquele que dá à inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real

(idem, p. 28).

Ao mesmo tempo em que enxerga coerção no modo como o sujeito se faz autor e um tanto da linguagem da ficção na imagem de autor também fora da literatura, Foucault não nega a existência de um indivíduo que escreve e inventa. Esse indivíduo, que precisa de um espaço para escrever e se manifestar, consegue, por causa dessa necessidade, desvencilhar o discurso de um mero acaso, assim como o faz, também, por ocasião do comentário. O discurso não pode ser um acaso em se tratando do lugar em que diversas identidades, que têm a forma da individualidade e do eu (idem, p. 29), jogam entre si.

O sujeito foucaultiano não segue uma linha descritiva de sujeito oposta à que apresentamos em Bakhtin e Authier-Revuz e à que adotamos neste trabalho. Podemos, pois, dizer que o jornalista é um ser dialógico, recortado pela ilusão de ser centro do próprio dizer; um autor submetido à coerção social, e, mais diretamente, à coerção da empresa em que trabalha, no interior da qual constrói a notícia. Com Foucault, reforçam-se a noção de coerção como algo que rege a vida social e a idéia da vida social como algo que rege a coerção no interior dos gêneros discursivos, embora o autor não chegue, em sua reflexão, a citar os

gêneros propriamente ditos.

De Foucault, adotamos, ainda, a associação entre a coerção social e o papel de autor. A coerção influencia o modo de manifestação da autoria e a sua importância nos diferentes tipos de discurso – no jornalístico, por exemplo. Nossa proposta é, em se tratando da notícia, pensar os espaços da autoria do jornalista e do entrevistado no interior da coerção institucional. Essa coerção impõe a necessidade ao jornalista de trazer algum tipo de autoria externa e com voz – a do entrevistado, a de um papel social, a de uma instituição... –, a fim de criar um efeito de verdade para o que é noticiado.

2.4.2. Assujeitamento e trabalho do sujeito

O sujeito que consideramos neste trabalho é, pois, coagido pelas normas sociais, pela regulamentação dos gêneros do discurso e pelas determinações do(s) seu(s) outro(s)/Outro. Apenas ilusoriamente pode assumir-se como centro do seu próprio dizer. No entanto, esse trabalho de representação/simulação de um centro pode ser visto também como uma característica de um trabalho do sujeito com a linguagem.

Segundo Sírio Possenti (1995), podemos falar em uma certa criatividade, uma determinada novidade mesmo que, inevitavelmente, se parta, na produção do discurso, do já dito, do já criado e, portanto, do em nada inovador.

Se é verdade que o sujeito do discurso

nem sempre tem consciência do que ocorre, quase nunca detém o controle, é constantemente surpreendido (...) por matéria discursiva vertida pelo id, ou é dominado pelo superego ou por algum instância produtora de discursos que o cerca, domina-o, submete-o, seja ela uma episteme, ou uma teoria, uma doutrina, um locutor indeterminado, enfim, uma instância que é não-eu, que é outro ou Outro (op.cit.,

idem, p. 46),

não é verdade, porém, segundo o autor, que a falta de consciência do sujeito ou a dominação exercida sobre ele pelo outro/Outro chegue a anulá-lo. Possenti reafirma a presença e a influência do outro/Outro na atividade lingüística do falante/escrevente e destaca o “descobrimento” e difusão desse “sujeito assujeitado” pela Análise do Discurso, fazendo ressalvas, porém, em relação à anulação de sua capacidade criativa.

O autor afirma que o eu tem voz e ela é tão firme e importante quanto a dos demais interlocutores que se entrecruzam e participam do seu discurso. O locutor sempre age no espaço textual (embora não seja dono desse espaço, uma vez que não é origem do dizer) e é mais um dentre os outros tantos enunciadores que falam na sua fala.

Para fazer valer esse ponto de vista, Possenti lança mão de textos humorísticos curtos, avaliados de acordo com o momento histórico em que foram produzidos. É nas construções lingüísticas que exibem humor (seja ele irônico, sarcástico, bombástico, crítico), mas não exclusivamente em tais construções, que o eu se marca e põe em evidência uma capacidade – ou uma atividade – criadora de destaque. Possenti percebe, portanto, alguma (manifest)ação individual no trabalho do enunciador com a linguagem.

A atitude advogada em favor do eu diante do próprio dizer procura caracterizar tal dizer como sendo desse eu e não de outro. O eu, segundo o autor, age criativamente quando evoca de modo especial o que já foi evocado, quando ressuscita a memória do receptor para algo

familiar que não seja simplesmente a reprodução do já conhecido. Age, ainda, criativamente quando recorta do passado um enunciado e o transporta para o presente de maneira crítica, desmontada e, desse jeito, com sentido singular. Por fim, age criativamente e até sabe o que

está fazendo, pelo menos em boa parte (Possenti, idem, p. 52), sem se caracterizar como livre

do outro/Outro em sua criação: o eu é “assujeitado”, o que não quer dizer que não seja criativo.

Queremos ressaltar que a questão do sujeito do discurso não está resolvida nem fora nem tampouco dentro deste trabalho. Enxergamos o eu nessa fronteira com o assujeitamento, nesse tumultuado jogo de coerções sociais, de dialogias, de tomadas de palavras. Não considerar nenhum papel para o sujeito é, para nós, negar que o jornalista – em nome da empresa em que trabalha – adapta o seu trabalho a um público e tem objetivos para as notícias que produz. É justamente essas fronteiras fugidias entre o trabalho do jornalista com a linguagem e as determinações que atingem o seu discurso o que nos interessa destacar.