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2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.5. DIALOGANDO COM PESQUISAS RECENTES

2.5.1. Discurso narrativizado

Já abordamos a concepção de sujeito heterogêneo, lugar de confluência e de confronto de diversas vozes sociais. Falamos, também, que essas vozes, no discurso citante, ora se mostram e facilitam o reconhecimento da sua presença nesse discurso, como nas citações em discurso direto e em discurso indireto; ora podem ser reconhecidas apesar de menos marcadas, como no caso do comentário no interior do discurso citante; ora estão totalmente assimiladas, de tal maneira que é impossível reconhecê-las e delimitá-las, pois são constitutivas do discurso.

Sant’Anna (2003) chama a atenção para uma das formas menos marcadas de citação do discurso de outrem, mais difíceis, portanto, de serem percebidas como momentos de elucidação da presença do outro no discurso do jornalista. Isso, porque fogem dos esquemas mais conhecidos de entrevista (transcrição de perguntas e respostas claramente identificadas como pertencentes ao jornalista e ao entrevistado, respectivamente, com recuperação de todo

um efeito da situação de enunciação jornalista-entrevistado, como se [a entrevista] estivesse ocorrendo naquele momento – idem, p. 13), do discurso direto, das ilhas do discurso direto

(apenas algumas palavras entre aspas ou em itálico num enunciado do discurso citante), do discurso indireto e do discurso segundo, que se refere à forma de introduzir o discurso do

outro [no discurso do eu] a partir de certos marcadores – por exemplo: segundo fulano; ...a partir de fontes bem informadas; ...parece que; ...diz-se que; ...para fulano... (Maingueneau,

apud Sant’Anna, idem, p. 12).

Essa forma de citação a que Sant’Anna se refere, sem mostrar a presença do outro e sem crédito de responsabilidade ao outro pelo dizer, é chamada por ela de discurso narrativizado –

um modelo de discurso citado, ao lado da entrevista, do discurso direto, das ilhas do discurso direto, do discurso indireto e do discurso segundo.

O discurso narrativizado é o discurso citado despersonalizado, uma marca mais

atenuada da presença do discurso do outro no discurso do eu (Sant’Anna, idem, p. 16). É

formado por um conjunto de informações citadas pelo jornalista, conjunto ao qual é vinculada uma ação que desencadeia reações, sendo que a ação é sugerida pelo verbo da citação. Vejamos os exemplos de discurso narrativizado dados pela pesquisadora:

Los industriales de las principales empresas automotrices se fueron a quejar ayer ante diputados. La protesta fue por los subsidios que aplica el Brasil en ese sector y que ofician de aspiradora de inversiones hacia el nordeste del vecino y socio. (Clarín)

El ministro de hacienda de Brasil, Pedro Malan, se comprometió ayer, em nombre del gobierno de su país, a poner límites a la política de otorgamiento de subsidios que sus estados federados utilizan para incentivar la radicación de industrias. (Clarín)

Os ministros da Fazenda, Pedro Malan, e das relações Exteriores, Luiz Lampreia, desembarcam hoje em Buenos Aires para explicar aos argentinos a posição brasileira frente ao Mercosul. (FSP)

A filial da Ford confirmou sua decisão de investir US$ 1 bilhão em suas instalações no país, apesar da política brasileira de benefícios fiscais para as indústrias automobilísticas (FSP) (idem, p. 19, grifos no original).

Diante de exemplos como os acima, Sant’Anna questiona-se:

O que observamos nesses fragmentos? Exatamente o apagamento da fonte das informações (...): quem disse que os industriais foram se queixar? que o ministro se comprometeu? que Pedro Malan e Lampreia desembarcariam tal data, em tal lugar? que a Ford confirmou sua decisão? Os próprios ou outras fontes? (idem, ibidem).

Sant’Anna situa o discurso narrativizado no interior de um continuum, no qual são distribuídas as formas de citação de acordo com a maior ou menor explicitação da presença do outro no discurso citante. Deste modo, o discurso narrativizado está numa das pontas deste

continuum, como ocorrência mais apagada do discurso citado. Na outra ponta, a ocorrência

mais explícita – a entrevista.

Quanto mais clara a presença do outro no discurso citante, menos responsabilidade sobre o dizer costuma ser dada àquele que faz a citação. No caso do discurso narrativizado,

há um diálogo entre o eu e o outro, entre discurso citante e citado, mas de modo que esse diálogo aparece camuflado, quase irreconhecível, embora o outro tenha dado alguma contribuição para o que foi dito.

O conceito de discurso narrativizado – segundo Sant’Anna, polêmico e de difícil identificação, pois confunde um relato com o ato de informar – será utilizado, neste trabalho, ao tratarmos do comentário na notícia. Servirá, também, de apoio para demonstrarmos a presença do outro em lugares em que parece estar ausente. Essa afirmação serve como contraponto à que fizemos ao final da apresentação do conceito de discurso citado direto não- literal, de Venâncio (2002), segundo a qual é a subjetividade que aparece em lugares em que comumente é vista como mais apagada. Esse contraponto é importante, porque, como adiantamos, interessa-nos observar as fronteiras entre o trabalho do jornalista com a linguagem e a atuação do outro/Outro em seu discurso.

Aproveitamos, pois, essa interessante contraposição dos resultados das duas pesquisas para nos permitir observar como as posições simplistas sobre a linguagem, identificadas na tentativa de determinar lugares para o sujeito citante que não sejam ameaçados pelo eu citado e vice-versa, estão alicerçadas nos usos lingüísticos aparentemente mais resolvidos e acabados. A citação em discurso direto, em Venâncio, ou a falta de citação explícita do outro, no caso do discurso narrativizado, discutido por Sant’Anna, são boas fontes de crítica às posições simplistas sobre citação do discurso do outro. Essas posições simplistas preferem reduzir a heterogeneidade discursiva em função de uma homogeneidade facilitadora e capaz de distorcer a percepção do papel do sujeito e do funcionamento da linguagem e da sociedade. O jornalismo é um lugar de forte manifestação dessas posições simplistas que refutamos, ora situando o sujeito como centro do seu dizer (posição mais difundida), ora fazendo a crítica a essa posição, de modo a apagar qualquer possibilidade de trabalho do sujeito com a linguagem.