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Discurso direto, discurso indireto e comentário: primeiras considerações

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.2. BAKHTIN E A DIALOGIA DA LINGUAGEM

2.2.4. Discurso direto, discurso indireto e comentário: primeiras considerações

Para Bakhtin, a língua não é o reflexo das hesitações subjetivo-psicológicas, mas das

relações sociais estáveis dos falantes (idem, p. 147). Essas relações sociais estáveis

determinam o modo como a língua irá gramaticalizar, em determinado momento histórico, a citação do discurso de outrem no contexto narrativo. Os discursos direto, indireto (casos que nos interessam particularmente e aos quais retornaremos) e indireto livre, por exemplo, são manifestações da apreensão ativa do discurso de outrem nas formas sintáticas da língua7 e, ao

mesmo tempo, são desenvolvimentos diferentes da inter-relação dinâmica entre discurso citado e discurso citante.

Bakhtin afirma que essa inter-relação dinâmica pode ser estabelecida de modo que o discurso de outrem seja conservado em sua integridade e autenticidade em relação ao contexto narrativo, sendo que, nesse caso, a língua esforça-se por delimitar o discurso citado

com fronteiras nítidas e estáveis (idem, p. 148), ou, numa direção oposta, de modo que o

enunciador do discurso citante consiga infiltrar suas réplicas e seus comentários no discurso

de outrem pelo fato de a língua elaborar meios mais sutis e mais versáteis de transmissão

desse outro discurso (idem, p. 150, grifo nosso)8. 7 Bakhtin lembra que está

bem longe (...) de afirmar que as formas sintáticas – por exemplo as dos discursos direto ou indireto – exprimem de maneira direta e imediata as tendências e as formas da apreensão ativa e apreciativa da enunciação de outrem. É evidente que o processo não se realiza diretamente sob a forma de discurso direto ou indireto. Essas formas são apenas esquemas padronizados para citar o discurso

(idem, p. 147).

8 Mais uma vez, o comentário é citado indiretamente pelo autor. Bakhtin o associa a uma certa

No caso do discurso direto, denota-se uma maior impessoalidade na transmissão do discurso de outrem – os esquemas lingüísticos e suas variantes têm a função de isolar mais

clara e mais estritamente o discurso citado, de protegê-lo de infiltração pelas entoações próprias do autor, de simplificar e consolidar suas características lingüísticas individuais

(idem, pp. 148-9). São criados contornos exteriores nítidos (idem, p. 150) à volta do discurso de outrem, para que não haja confusão entre o que “pertence” ao enunciador do discurso citante e ao enunciador do discurso citado. No caso do discurso indireto e, de maneira ainda mais acentuada, do discurso indireto livre, o processo é exatamente o oposto: o contexto

narrativo esforça-se por desfazer a estrutura compacta e fechada do discurso citado, por absorvê-lo e apagar as suas fronteiras (idem, ibidem). Os contornos exteriores nítidos da

palavra de outrem são atenuados e os diferentes aspectos da enunciação podem ser sutilmente

postos em evidência (idem, ibidem). Desse modo, para o autor, não é somente o sentido

objetivo da enunciação de outrem que é apreendido, a asserção que está nela contida, mas

também todas as particularidades lingüísticas da sua realização verbal (idem, ibidem). Nos

tipos indiretos de citação do discurso de outrem, são várias as estratégias que o enunciador do discurso citante pode utilizar visando ao disfarce das marcas de presença do outro. Como, por exemplo, apagar as fronteiras do discurso citado, a fim de colori-lo com as suas entoações, o

seu humor, a sua ironia, o seu ódio, com o seu encantamento ou o seu desprezo (idem,

ibidem). Quanto mais enfraquecidas as fronteiras do discurso de outrem no contexto narrativo, mais dominante/forte/ativo (idem, p. 151) se mostra o discurso citado na relação com o discurso citante, que é, então, mais absorvido, tem o seu espaço “autônomo” mais ocupado e submetido. Nesse caso,

o discurso citado é que começa a dissolver, por assim dizer, o contexto narrativo. Esse último perde a grande objetividade que lhe é normalmente inerente em relação ao discurso citado; nessas condições, o contexto narrativo começa a ser percebido – e mesmo a reconhecer-se – como subjetivo, como fala de ‘outra pessoa’. Nas obras literárias, isso é muitas vezes composicionalmente expresso pelo aparecimento de um narrador que substitui o autor propriamente dito. O discurso do narrador é tão individualizado, tão ‘colorido’ e tão desprovido de autoritarismo ideológico como o discurso das personagens. A posição do narrador é fluida, e na maioria dos casos ele usa a linguagem das personagens representadas na obra

(Bakhtin, idem, ibidem).

As formas diferenciadas de apreensão do discurso citado, cujas fronteiras podem se mostrar mais ou menos perceptíveis, são influenciadas por fenômenos lingüísticos diversos. Pela finalidade do discurso citante, por exemplo. Os discursos retórico, literário, jurídico,

político, para mencionar os casos abordados por Bakhtin, absorvem o discurso citado de modo particular:

O discurso retórico, diferentemente do discurso literário, pela própria natureza da sua orientação, não é tão livre na sua maneira de tratar as palavras de outrem. Ele tem, de forma inerente, um sentimento agudo dos direitos de propriedade da palavra e uma preocupação exagerada com a autenticidade. A linguagem judicial intrinsecamente assume uma discrepância nítida entre o subjetivismo verbal das partes num processo e a objetividade do julgamento. A retórica política é análoga. É importante determinar o peso específico dos discursos retórico, judicial ou político na consciência lingüística de um dado grupo social numa determinada época (idem, p.

153).

Além da finalidade envolvendo o discurso citante, é importante, para a maneira de apreender o discurso citado, a posição que esse discurso ocupa na hierarquia social de

valores (idem, ibidem). Quanto mais forte for o sentimento de eminência hierárquica na enunciação de outrem, mais claramente definidas serão as suas fronteiras, e menos acessível será ela à penetração por tendências exteriores de réplica e comentário (idem, ibidem).

Também influente em termos de apreensão do discurso de outrem é o receptor, a pessoa a

quem serão transmitidas as enunciações citadas (idem, p. 146). Essa orientação para uma terceira pessoa é de primordial importância: ela reforça a influência das forças sociais organizadas sobre o modo de apreensão do discurso (idem, ibidem).

Tal como os discursos retórico, jurídico e político, também o discurso jornalístico, do qual analisaremos um dos gêneros – a notícia – preocupa-se com a autenticidade. O jornalismo joga com a autenticidade da notícia para ganhar o leitor. Sendo assim, seguindo o pensamento de Bakhtin, também na notícia não haveria tanta liberdade na maneira de citar o discurso de outrem. Partimos desse princípio, sem nos esquecermos de que cada editoria do jornal é orientada para determinado perfil de leitor e traz falas de entrevistados com perfis também diferenciados entre si, ligados a posições específicas que ocupam na hierarquia social.