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Discurso direto, discurso indireto e comentário: outras considerações

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.2. BAKHTIN E A DIALOGIA DA LINGUAGEM

2.2.5. Discurso direto, discurso indireto e comentário: outras considerações

O discurso indireto é inseparável da característica analítica. Segundo Bakhtin, o

emprego do discurso indireto ou de uma de suas variantes implica uma análise da enunciação simultânea ao ato de transposição e inseparável dele. Variam apenas o grau e a orientação da análise (idem, pp. 158-9). Pensando no texto escrito, as emoções e a

(idem, p. 159) – por exemplo, uma exclamação ou uma expressão qualquer de entusiasmo podem ser transmitidas, indiretamente, pela palavra ‘muito’ (idem, p. 161). Essa necessidade de “acréscimos” às palavras de outrem torna o discurso indireto analítico:

O discurso indireto ouve de forma diferente o discurso de outrem; ele integra ativamente e concretiza na sua transmissão outros elementos e matizes que os outros esquemas deixam de lado. Por isso transposição literal, palavra por palavra, da enunciação construída segundo um outro esquema só é possível nos casos em que a enunciação direta já se apresenta na origem como uma forma algo analítica – isso, naturalmente, dentro dos limites das possibilidades analíticas do discurso direto. A análise é a alma do discurso indireto (Bakhtin, idem, p. 159).

Os elementos emocionais e afetivos do discurso de outrem podem passar para uma construção indireta, também, como um comentário do verbum dicendi (idem, ibidem, grifo no original). Como exemplo disso, Bakhtin cita a enunciação direta: ‘Muito bem! Que grande

realização!’ (idem, ibidem), que não pode ser transposta para um discurso indireto como ‘Ele disse que muito bem e que grande realização (idem, ibidem), mas ou como ‘Ele disse que estava muito bem e que era uma grande realização’ (idem, ibidem), ou como ‘Ele disse entusiasmado que estava bem e que era uma grande realização’ (idem, ibidem).

Interessa-nos, em particular, o fato de Bakhtin chamar o discurso indireto com verbo

dicendi de comentário, já que, como se poderá perceber no capítulo de análise deste trabalho,

separamos comentário de discurso indireto e de discurso direto. Do ponto de vista de Bakhtin, o comentário já está, portanto, embutido no discurso indireto, além de ser utilizado previamente a esse discurso. Para nós, o tratamento do comentário dado por Bakhtin a um determinado tipo de discurso indireto só reforça a tese da impossibilidade de uma apropriação do discurso de outrem que seja isenta de ajustes.

Bakhtin distingue pelo menos dois tipos de discurso indireto – um voltado para a transcrição analítica das palavras do falante ou do tema da sua fala, e o outro voltado para a análise de como o próprio falante usa as palavras – sua maneira de falar (...); seu estado de

espírito, expresso não no conteúdo mas nas formas do discurso (por exemplo, a fala entrecortada, a escolha da ordem das palavras, a entoação expressiva etc.); sua capacidade ou incapacidade de exprimir-se bem etc. (idem, p. 160). O alvo analítico da transmissão

indireta do discurso de outrem pode ser, portanto, o conteúdo propriamente dito da enunciação citada ou o modo como a citação foi proferida.

O primeiro dos tipos de discurso indireto abre grandes possibilidades às tendências à

réplica e ao comentário no contexto narrativo, ao mesmo tempo que conserva uma distância nítida e estrita entre as palavras do narrador e as palavras citadas (idem, p. 161, grifos no

original). Esse discurso indireto é muito marcado em contextos epistemológicos ou retóricos

(de natureza científica, filosófica, política etc.), nos quais o autor é levado a expor as opiniões de outrem sobre um determinado assunto, a opô-las e delimitá-las (idem, ibidem).

Embora, neste caso, Bakhtin não cite o contexto jornalístico, nós o colocamos, também, como bastante marcado pelo discurso indireto de transcrição analítica das palavras de outrem. Isso porque, ao elaborar a notícia, o jornalista é igualmente levado a nela expor, por meio do discurso indireto, entre outras formas de citação, opiniões opostas, delimitando-as e explicitando a quem cada opinião pertence.

Ao citar esse discurso indireto de análise das palavras de outrem, Bakhtin menciona o

comentário, reforçando-o como uma espécie de “dialogador”, no sentido de que representa

um diálogo, de maneira visível pelas formas da língua, com o discurso de outrem, que se encontra, até o momento de elaboração do comentário, em fase de preparação para se integrar ao discurso citante.

Quanto ao discurso indireto voltado para a maneira de dizer do discurso de outrem (idem, p. 162), Bakhtin diz que é transcrito no contexto narrativo de modo a ser facilmente percebido. As palavras de outrem, neste caso, são colocadas entre aspas, na maioria das vezes9. As aspas têm uma função importante para a demonstração de o quanto o discurso

citante dialoga com o discurso citado. Com o uso das aspas, o enunciador restringe o espaço dado, em seu enunciado, às suas próprias palavras e às palavras do outro:

As palavras e expressões de outrem integradas no discurso indireto e percebidas na sua especificidade (particularmente quando são postas entre aspas), sofrem um ‘estranhamento’, para usar a linguagem dos formalistas, um estranhamento que se dá justamente na direção que convém às necessidades do autor: elas adquirem relevo, sua ‘coloração’ se destaca mais claramente, mas ao mesmo tempo elas se acomodam aos matizes da atitude do autor – sua ironia, humor etc. (Bakhtin, idem, p. 163).

9 Para facilitar a visualização desse exemplo, transcreveremos alguns dos exemplos de discurso indireto

voltado para a maneira de dizer do discurso de outrem apresentados por Bakhtin:

Krassótkin negou orgulhosamente a acusação, dando a entender que seria realmente uma vergonha “nos dias que correm” brincar de cavalinho com os meninos da sua idade, todos com 13 anos, mas que ele fizera isso pelos “garotos”, porque ele os amava e não reconhecia a ninguém o direito de contestar os seus sentimentos. (Dostoievski, Os Irmãos Karamazov)

Ele encontrou Nastasia Filíppovna num estado próximo da completa loucura; dava gritos, tremia, berrava que Rogójin estava escondido no jardim, na sua própria casa, que ela acabava de vê-lo, que ele ia matá-la... cortar-lhe a garganta! (ibid.)

A mesma coisa aconteceu também com os poloneses: eles chegaram com uma demonstração de orgulho e independência. Afirmaram em alta voz que, em primeiro lugar, estavam “a serviço da Coroa” e que “o senhor Mitia” oferecera 3000 rublos para comprar a honra deles, e que eles tinham visto com seus próprios olhos largas somas de dinheiro nas mãos dele (ibid.). (Aqui a construção de discurso indireto retém a entoação expressiva da mensagem original.) (idem, p. 162, grifos de Dostoievski).

Nesse trecho, fica claro que o enunciador conduz as palavras de outrem conforme o objetivo que tem em mente com o seu enunciado.

Também no jornalismo encontramos casos de discurso indireto com trechos de fala entre aspas. Esses casos de discurso indireto representam, quando transportamos o pensamento de Bakhtin para o jornalismo – ou para a produção da notícia propriamente dita –, uma análise do dizer do entrevistado. As aspas têm, também, grande significado nesse contexto de produção do noticiário; é um modo de chamar a atenção para as palavras que elas recortam e, portanto, uma prova da atitude do eu citante em relação ao discurso citado.

Bakhtin distingue essa variante que utiliza preferencialmente as aspas no discurso indireto de uma outra, que usa as aspas representando o discurso direto originado do indireto10. Importa-nos, especialmente, o discurso direto originado do indireto, já que, em

nosso corpus, encontramos casos de relação entre esses dois tipos de discurso, em que o discurso direto não emerge propriamente do indireto, no sentido de os dois comporem um mesmo enunciado. O discurso indireto vem antes do direto, no enunciado anterior, em separado do enunciado que contém o discurso direto, posterior. Ainda neste caso, acreditamos que as observações de Bakhtin para os exemplos retirados de Dostoievski servem também para os nossos exemplos. Bakhtin afirma que, em se tratando da variante de discurso indireto contendo o direto, a subjetividade do discurso aparece com maior nitidez e no sentido que

convém ao autor (idem, ibidem). Além disso,

essa variante supõe um alto grau de individualização da enunciação citada na consciência lingüística, e a capacidade de perceber com discriminação as representações lingüísticas da enunciação, delas extraindo o seu sentido objetivo. Isso é incompatível com a apreensão autoritária ou racionalista da enunciação de outrem. Enquanto procedimento estilístico, essa variante só pode enraizar-se na língua sobre o terreno do individualismo crítico e realista, ao passo que a variante analisadora do conteúdo é justamente característica do individualismo racionalista

(Bakhtin, idem, p. 164).

O caso de discurso direto que emerge do indireto é uma variante tanto do discurso indireto como do discurso direto. O discurso direto, nesse tipo de variante, tem, segundo Bakhtin, o seu conteúdo, o seu tema antecipados pelo contexto e coloridos pelas entoações

do autor. Dessa maneira, as fronteiras da enunciação de outrem são bastante enfraquecidas 10 Convém, também aqui, citar pelo menos um dos exemplos usados por Bakhtin para essa variante em

que o discurso direto emerge do indireto:

Trífon Boríssovitch tentou como pôde ser evasivo, mas depois de ter sido questionado pelos camponeses, acabou confessando que tinha achado a nota de cem rublos; acrescentou somente que ele tinha no mesmo momento devolvido tudo escrupulosamente a Dmitri Fiódorovitch, “palavra de honra,

só que, vocês vêem, o cavalheiro, como estava naquele momento completamente bêbado, não consegue lembrar-se” (Dostoievski, Os Irmãos Karamázov) (idem, p. 163, grifos no original).

(idem, p. 166). Essa observação acaba desmistificando, pelo menos em parte, a idéia comum de que o discurso direto é o reflexo da fala exata de outrem, sem contaminação de quem a cita em determinado contexto de produção textual. Queremos deixar registrado que, em nosso

corpus, como se verá, encontramos um caso de discurso indireto que emerge do discurso

direto, sendo que os dois, nesse caso, compõem um mesmo enunciado.

Bakhtin aborda, ainda, outras variantes de discurso direto que chegam a representar palavras que pertencem ao mesmo tempo ao contexto narrativo e ao discurso citado, tal a relação intrínseca existente entre ambos.