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A notícia, segundo o Manual da redação

3. CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ANÁLISE

3.1. NOTÍCIA E OBJETIVIDADE: PROBLEMATIZAÇÃO

3.1.1. A notícia, segundo o Manual da redação

Impõem-se, inicialmente, algumas considerações sobre o próprio Manual da redação 2001 da Folha de S.Paulo. Trata-se de uma versão revista e ampliada da edição anterior,

lançada em 1992 – que, por sua vez, atualizava as edições de 1984 e 1987, fazendo acréscimos a elas (Manual da redação, 2001, p. 7). Não cabe levantarmos neste trabalho as

modificações incluídas na obra de 2001, a não ser uma, relacionada diretamente com o tema da objetividade: a versão mais atual classifica-se como “mais flexível” e “menos impositiva”

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do que a(s) anterior(es)15. Essa tentativa de mudança (que é considerada “evolutiva”) na

direção da flexibilização das normas vem atestada em exposições como a seguinte:

A transição de um texto estritamente informativo, tolhido por normas pouco flexíveis, para um outro padrão textual que admita um componente de análise e certa liberdade estilística é conseqüência da evolução que estamos procurando identificar. Trata-se, porém, de política a ser administrada com parcimônia e cautela, seja para que não se perca a base objetiva de informação, seja para que o leitor não fique à mercê dos caprichos da subjetividade de quem está ali para, antes de mais nada,

informar com exatidão (op. cit., p. 15, grifos nossos).

No Manual 2001 há, portanto, uma mudança no modo de encarar o texto informativo16,

que pode, a partir dessa publicação, ser mais analítico e livre. No entanto, no trecho citado, firma-se a idéia de que a objetividade do texto informativo pode ser controlada por meio da criação e da imposição de regras, bastando alterá-las para que se altere também o grau objetivo/subjetivo que o repórter destinaria ao texto.

É importante destacar que admitir que o texto seja mais aberto a análises não significa entender que a objetividade não existe. Tanto isso é verdade que a base objetiva e a exatidão permanecem como exigências para a informação.

15 Para termos pelo menos uma noção de como o manual da Folha de S.Paulo classificava anteriormente

a “objetividade” da notícia, reunimos alguns trechos da obra de 1987, citados por Maciel (2001):

[notícia] É a informação que se reveste de interesse jornalístico; puro registro dos fatos, sem

comentário nem interpretação. A exatidão é seu elemento-chave. Mas vários fatos, descritos com exatidão,

podem ser justapostos de maneira tendenciosa. Suprimir uma informação ou inseri-la pode alterar o significado da notícia. O jornalista da Folha de S.Paulo não deve usar esses expedientes (Manual da Folha de S.Paulo 1987,

apud Maciel, idem, p.57, grifos nossos).

[notícia] Puro registro dos fatos importantes que merecem estar no jornal. Sem comentários, juízos

de valor ou interpretação (Manual Folha de S.Paulo, 1987, apud Maciel, idem, ibidem, grifos nossos).

[exatidão] Informação inexata é informação errada. A busca das informações corretas e completas é a primeira obrigação de cada jornalista. Um jornal só firma seu conceito de credibilidade junto ao seu público quando é conhecido pela fiel transcrição de opiniões que colhe e pela exatidão dos fatos que apura e publica

(Manual da Folha de S.Paulo, 1987, apud Maciel, idem, ibidem, grifos nossos).

Para a construção da imagem de um jornal, mais importante do que ambiciosas reportagens é a publicação sistemática de textos com informações exatas (Manual da Folha de S.Paulo, 1987, apud Maciel,

idem, ibidem, grifo nosso).

[opiniões pessoais] O jornalista que transmite notícias ao leitor deve abster-se de expor suas opiniões

pessoais sobre os fatos que informa (Manual da Folha de S.Paulo, 1987, apud Maciel, idem, p. 62, grifo nosso).

[verbos] ‘Lembrar’, ‘garantir’, ‘salientar’, ‘sublinhar’, ‘frisar’, ‘prometer’, ‘atestar’, ‘ressaltar’, ‘anunciar’, ‘revelar’ são verbos que dão conotação positiva à declaração: ‘admitir’, ‘reconhecer’, ‘confessar’ dão conotação negativa. Tais verbos não devem ser banidos do texto jornalístico. Mas só podem ser usados quando corresponderem com exatidão ao que é descrito (Manual da Folha de S.Paulo, 1987, apud Maciel, idem,

p. 71, grifo nosso).

[notícia] O texto jornalístico deve registrar a emoção nos eventos que noticia e transmiti-la ao leitor. Mas o jornalista não deve se deixar envolver pela emoção no desempenho do seu trabalho. O jornalista também deve impedir, ao registrar a emoção do fato, que seu texto se torne choroso, triunfalista, eufórico ou piegas. A emoção deve ser registrada sem que o texto se torne ele mesmo emotivo (Manual da Folha de S.Paulo,

1987, apud Maciel, idem, p. 77, grifo nosso).

16 As expressões texto informativo, texto jornalístico e texto noticioso são usadas pelo manual como

Não há, apesar da “maior flexibilização” anunciada, um desprendimento da noção de objetividade da informação, utilizada como sinônimo de exatidão informativa, fazendo-se crer que ser ou não objetivo depende de uma decisão do jornalista a partir das orientações do Manual, e não de uma questão de linguagem. Desse modo, o alcance da noção de objetividade se restringe a uma obrigação do jornalista e a uma obrigatoriedade para a notícia.

Pela concessão de uma certa dose de subjetividade, percebemos, porém, que já se manifesta, no Manual, uma consciência quanto à precariedade em se afirmar que um texto pode ser puramente informativo/objetivo. Também é importante notar que, na obra, não há uma recusa em tratar o tema, nem é ingênuo o tratamento que lhe é dado. No entanto, mesmo em se tratando de um esforço de regulamentação lingüística, a objetividade não aparece abordada de um ponto de vista lingüístico. Seja como for, o modo como o tema da objetividade é tratado no Manual sugere uma complexidade passível de ser resolvida, aparentemente, bastando aceitar que a objetividade é entremeada pela subjetividade.

Podemos seguir reunindo outros exemplos de crença em um jornalismo objetivo, ainda que essa crença apareça num contexto em que a objetividade se mostra como algo incômodo, deixando de ser uma certeza para fazer parte de uma discussão. A nosso ver, essa discussão não é simples, e não pode ter respostas prontas.

Em alguns momentos, no Manual, aparecem afirmações que reconhecem a limitação do poder do jornal no que se refere a trazer à tona, para os leitores, a realidade tal como é ou o fato tal como acontece. Uma dessas afirmações é a de que o jornal precisa ser submetido a freqüentes avaliações, a fim de aferir (...) se seus critérios estão sendo os melhores para

franquear uma leitura ao mesmo tempo fidedigna, reveladora e útil, se não da realidade, ao menos da sua superfície diária (idem, p. 10). Há, nesse trecho, uma admissão de que o

jornalista dá conta de narrar apenas a superficialidade de um fato. Mas essa admissão fica enfraquecida quando se reconhece que (...) o trabalho do jornalista deve ser meticuloso e

refletido, a fim de oferecer ao leitor a mais correta expressão dos fatos (idem, p. 19, grifo

nosso). Mas como julgar o grau de correção de um fato narrado? O que existe são versões de um fato que, quando tornadas públicas nas notícias, serão analisadas pelos leitores como versões mais ou menos confiáveis. Nenhuma notícia é, por si só, mais ou menos correta. Acreditar numa versão “mais correta” da notícia e exigir que se busque a “maior correção” ainda é, para nós, uma tentativa de sustentar uma idéia incoerente do ponto de vista lingüístico – a idéia de que, em certos momentos da elaboração da notícia, o jornalista pode frear a subjetividade em nome da objetividade, fazendo isso de maneira sempre consciente. Por sua

vez, ao leitor caberia depreender o que há de objetivo e subjetivo na notícia tal como o jornalista previamente determinou.

Chama a atenção, também, a associação feita no Manual entre jornalismo e objetividade:

Não existe objetividade em jornalismo. Ao escolher um assunto, redigir um texto e editá-lo, o jornalista toma decisões em larga medida subjetivas, influenciadas por suas posições pessoais, hábitos e emoções.

Isso não o exime, porém, da obrigação de ser o mais objetivo possível (idem,

p. 45, grifos nossos).

A objetividade não existe, mas sim uma objetividade em grau elevado de proximidade com o real. Desse modo, o jornalista não se defrontaria mais com a objetividade, que, como fato de linguagem, não existiria, mas com a obrigação de chegar mais perto da realidade. Seja como for, permanece a crença de que a medida da objetividade da notícia é distribuída conscientemente pelo jornalista e só depende da sua vontade.

E como o jornalista consegue ser “o mais objetivo possível”? Isso também está esclarecido no Manual:

Para relatar um fato com fidelidade, reproduzir a forma, as circunstâncias e as repercussões, o jornalista precisa encarar o fato com distanciamento e frieza, o que não significa apatia nem desinteresse. Consultar outros jornalistas e pesquisar fatos análogos ocorridos no passado são procedimentos que ampliam a objetividade

possível (idem, pp. 45-6, grifos nossos).

Para conseguir se aproximar da “objetividade possível”, a dica é narrar o fato com “distanciamento”, “frieza”, “fidelidade”. Parece, porém, que os termos deveriam ser “distanciamento possível”, “frieza possível”, “fidelidade possível” para fazerem jus à busca pela “objetividade possível”. Se não existe objetividade, existiria distanciamento, frieza, fidelidade? A outra sugestão seria a de “consultar jornalistas” e “fatos análogos”. Temos, mais uma vez, no Manual, a idéia de que é a postura do jornalista ao buscar e redigir informações que conduz à objetividade desejada para o texto.

É importante mencionar que, em alguns trechos do Manual 2001, a objetividade é citada, ainda que implicitamente, não como “a objetividade possível” – portanto, ora é abordada a objetividade, numa aproximação com a concepção dos manuais anteriores, ora a “objetividade possível”, numa referência à concepção diferenciada que se quer firmar com o novo Manual.

Um exemplo aparece logo nas primeiras linhas do capítulo inicial da publicação, voltado à apresentação do projeto editorial da Folha de S.Paulo e de seu propósito: produzir

um jornalismo crítico, moderno, pluralista e apartidário (Manual da redação, idem, p. 10).

Sem explicitar, nesse primeiro momento, o sentido de “apartidário” nem a nova postura de “maior flexibilidade” do jornal, o termo pode ser entendido como “aquele que não segue um partido (político, por exemplo)”, mas também como “aquele que não toma partido”, permitindo-nos constatar a crença numa utilização ainda absolutamente controlada da linguagem e, por meio desse controle, a crença num jornalismo sem tomada de posição, imparcial e, portanto, objetivo.

O esclarecimento do termo “apartidarismo” é apresentado posteriormente e redefinido, assim como a noção de texto informativo, já com base na nova Folha de S.Paulo, mais flexível. A “atitude apartidária” é a que veda alinhamentos automáticos e obriga a um

tratamento distanciado em relação às correntes de interesse que atuam sobre os fatos e não pode servir de álibi para uma neutralidade acomodada, quando não satisfeita em hostilizar por hostilizar (Manual da redação, idem, p. 17, grifo nosso).

Há, nessa redefinição, ainda que leve em conta a “maior flexibilidade” do jornal, uma menção a distanciamento, termo que se aproxima de imparcialidade e de objetividade (aqui não sugerida como “objetividade possível”). Como ponto médio entre a falta de tomada de partido e a hostilização gratuita, ter-se-ia, então, o “tratamento distanciado”, lugar da linguagem controlada que é proposta no Manual. Esse esclarecimento confirma a idéia de que, apesar das mudanças incorporadas ao Manual 2001, permanecem nele resquícios de crença na objetividade, não se confirmando em toda a obra a nova crença na “objetividade possível”. Prega-se um novo discurso que é, por vezes, traído.

Ainda com base no Manual, podemos associar o termo “apartidarismo” ao termo “pluralismo”. O primeiro refere-se à isenção do texto quanto a favorecer grupo, tendência

ideológica ou partido político (idem, p. 36), ou seja, quanto a privilegiar um grupo em

detrimento de outro, enquanto o segundo é tomado como a inclusão, no interior do texto, de diversas opiniões divergentes17. Se é certo que é possível e desejável que sejam incluídas

17 No manual, a definição exata dos termos “apartidarismo” e “pluralismo” é a seguinte:

Apartidarismo: Princípio editorial da Folha. O jornal não se atrela a grupo, tendência

ideológica ou partido político, mas procura adotar posição clara em toda questão controversa. Mesmo quando defende tese, idéia ou atitude, a Folha não deixa de noticiar e publicar posições divergentes das suas (idem, p.36, grifos no original).

Pluralismo: Princípio editorial da Folha. Numa sociedade complexa, todo fato se presta a

interpretações múltiplas, quando não antagônicas. O leitor da Folha deve ter assegurado seu direito de acesso a todas elas. Todas as tendências ideológicas expressivas da sociedade devem estar representadas no jornal (idem, p. 47, grifos no original).

opiniões divergentes no texto jornalístico, é, porém, bastante duvidoso que se possa incluí-las de maneira uniforme, e, mesmo que se pudesse incluí-las uniformemente, permaneceria a dúvida quanto a fazê-lo de modo a garantir a objetividade. As opiniões divergentes, ainda que justapostas, se hierarquizam no texto tomando, naturalmente, dimensões diferenciadas, dimensões essas cuja recepção o jornalista é incapaz de controlar, independentemente da sua boa vontade ou ética ao distribuir tais opiniões na notícia.

Com essas considerações, queremos destacar a nova maneira como a objetividade é abordada no Manual, apesar de que o discurso da “objetividade possível” não se sustente na obra inteira. Algo realmente mudou nessa abordagem numa comparação com os manuais anteriores da Folha de S.Paulo. Se, antes, o problema era apresentado como parte de um discurso para o leitor do jornal (ecoando, no profissional de jornalismo, como uma questão de intransigência do jornal quanto à margem de liberdade que lhe era dada), atualmente parece ser apresentado como parte de um discurso para a comunidade científica (profissionais que se ocupam da teoria e da crítica do Jornalismo). Isso não altera, porém, o fato de que a objetividade é ainda tratada, longe da perspectiva lingüística, como um recurso passível de ser dosado pelo jornalista. Falta, portanto, abordar a contradição objetividade pretendida/subjetividade inevitável (que está no cerne da própria contradição entre informar/opinar) da notícia como um fenômeno de linguagem inerente ao Jornalismo e, como tal, uma contradição não-resolvível, mas talvez passível de ser administrada em outros modelos de produção, circulação e recepção das notícias.

Acreditamos que – ainda que feita de passagem – essa discussão sobre a objetividade não poderia ter sido descartada neste trabalho, já que o tema é importante dentro do Jornalismo e, no caso estudado, no interior do jornalismo da Folha de S.Paulo, de tal modo que serve como fio condutor, explícito ou não, para todo o conteúdo do Manual da redação desse jornal.

Reconhecemos tratar-se de um tema delicado. Mas julgamos importante para o jornalista empreender uma discussão do problema – do ponto de vista lingüístico – que o leve a refletir sobre o horizonte fugidio que se descortina na relação que se estabelece entre linguagem e objetividade. Em outras palavras, julgamos importante propor uma nova relação do jornalista com a linguagem que representasse uma nova relação dele com o Manual, que é, para esse profissional, o mais próximo objeto de (não)-reflexão sobre linguagem e de regulação da sua relação com o editor, com a empresa jornalística, com o leitor, com o anunciante do jornal, com os partidos políticos, com as instituições em geral (religiosas, educacionais). Acreditamos que essa nova relação pode alterar também a relação do jornalista

com esses agenciadores de poder. Relacionar-se diferentemente com essas instâncias é, para nós, uma maneira de o jornalista se posicionar menos ingenuamente quanto àquilo que escreve.