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A concepção de linguagem no Manual: alguns comentários

3. CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE ANÁLISE

3.1. NOTÍCIA E OBJETIVIDADE: PROBLEMATIZAÇÃO

3.1.2. A concepção de linguagem no Manual: alguns comentários

A partir da concepção de notícia “o mais objetiva possível” apresentada no Manual, buscamos traçar alguns comentários sobre a concepção de linguagem nele veiculada. O sentido do texto, por exemplo, aparece como passível de ser controlado pelo jornalista simplesmente por seguir certas recomendações. Além disso, a notícia, com alguma intensidade, chegaria ao leitor de maneira objetiva, sem aberturas a atribuições de sentido por parte do leitor. Na obra, não há, nem indiretamente, menção ao fato de que é na interação verbal que o sentido de todo enunciado ganha forma.

Desse ponto de vista, apesar de estar presente no Manual o discurso de maior liberalidade em relação às regras impostas ao jornalista, a concepção de linguagem que aparece na obra assemelha-se muito à da edição de 1987. Fazemos essa afirmação com base em Maciel (2001), que realizou minuciosa análise das prescrições do Manual da redação da Folha de S.Paulo daquele ano. A pesquisadora comparou as regras do Manual deste jornal e as do Manual de 1990 do jornal O Estado de S.Paulo (que, ao lado da Folha de S.Paulo, é um dos maiores jornais paulistas) com a prática da escrita jornalística, levantando hipóteses que criticassem a idéia de notícia objetiva presente nos manuais. As hipóteses foram levantadas a partir da análise das próprias notícias veiculadas pelos dois jornais.

A conclusão de Maciel é de que a noção de sujeito como fonte e origem dos sentidos do

dizer, aliada a uma compreensão do funcionamento da língua independente do exterior histórico e social em que ele se concretiza, norteia as prescrições dos manuais (idem, p. 134).

A questão lingüística fica, pois, reduzida a prescrições de estilo e de gramática normativa. No Manual, as regras estabelecidas para a construção do texto da notícia incluem a do apagamento da subjetividade e a da centralidade no referente18. Para Maciel, ainda que fossem

rigidamente seguidas pelo jornalista, tais regras não são capazes de evitar fissuras (idem, p. 135) na objetividade pretendida. Algumas dessas fissuras são a ordem de apresentação das informações, a apresentação verbo-visual da notícia, a modalização do discurso citado, a estruturação da notícia calcada nas falas de outrem. O jornalismo encontra, desse modo, fórmulas para propagar sentidos diversos sob a máscara da ‘limpidez’ (idem, p. 139). Em sua

essência, a notícia é também opinativa (idem, p. 142) e a objetividade e referencialidade são 18 A este respeito, cf. Corrêa (1994).

apenas uma ilusão inerente a esse gênero. Trata-se, na verdade, de uma construção

discursiva tão marcada por tomadas de posição diante dos acontecimentos quanto os gêneros jornalísticos classificados como opinativos (idem, p. 143).

Referindo-se ao Manual de 1987, Maciel afirma que ele só faz divulgar e reforçar o

mito de que a notícia é objetiva, isenta e imparcial (idem, p. 138). A divulgação desse mito

alimenta a idéia de que as notícias veiculadas relatam a realidade, fato que colabora para a sustentabilidade de um produto que se vende como imparcial e objetivo.

Como contestação da idéia de objetividade no jornalismo, também Sant’Anna (2003), apesar de não estudar os manuais de redação especificamente, questiona o teor informativo da notícia e afirma que o ato de informar de maneira objetiva – ato enunciativo básico da

imprensa escrita (idem, p. 3) – faz uso de diferentes procedimentos lingüísticos

característicos do ato de opinar. A notícia é um gênero mantido pelo embate entre a necessidade de ser objetivo/vender-se como tal e a incapacidade/impossibilidade de deixar de lado a opinião diante da obrigação de só informar. É, enfim, um lugar de incessante tensão:

Cria-se uma tensão entre esses dois pólos constitutivos da natureza do que se prescreve como sendo o papel da imprensa escrita: (a) por um lado, estar ‘fora’, isto é, transpor o fato social para o espaço discursivo do jornal, mantendo a objetividade; (b) por outro, estar ‘dentro’, isto é, enquanto espaço discursivo que reenvia sentidos ao espaço social, abrindo-se a posicionamentos ideológicos, já que ela mesma é integrante da sociedade na qual ocorrem os fatos sociais.

Essa tensão deixa traços no discurso, em diferentes níveis, podendo apontar tanto para uma adesão ou oposição claras aos fatos, quanto para uma omissão de certos detalhes que poderiam comprometer sua situação ‘de dentro’. Ou seja, denunciar aquele papel de participante do processo, que, se possível, não deveria ser nunca ‘visível’, salvo em determinados espaços especialmente destinados à apresentação de opinião nos jornais (Sant’Anna, idem, p. 4).

Para Sant’Anna, a “manipulação” de informações de algum modo participa da tensão entre informar e opinar, ainda que essa “manipulação” não seja proposital, mas de ordem prática, como nos momentos de escolha das notícias a divulgar levando-se em conta o espaço que cada página fornece ou os recursos técnicos e humanos disponíveis para se desenvolver uma determinada pauta.

Ainda de acordo com a pesquisadora, por causa, justamente, de o próprio texto que se quer informativo trazer o aspecto opinativo intrínseco, não pode ser tão óbvia a separação entre texto opinativo e texto informativo, como quer a imprensa escrita.

Corrêa (2003), que escreve em especial para comunicadores e pessoas ligadas a esse público, confirma, ao fazer uma breve referência aos manuais de redação, o risco que é acreditar que o fato existe por si só e se dá à descrição já pronto (idem, p. 75). Cada jornal

constrói os fatos conforme os seus interesses no momento da publicação ou conforme sua linha editorial. Pode-se, pois, afirmar que o fato tal como o recebemos enquanto notícia é

uma construção (idem, p. 76, grifos no original). Ainda segundo o autor, a informação do fato

não pode ser o fato porque informar, no jornalismo, pressupõe abreviar, limitar os dados pesquisados ao espaço de publicação e ao tempo de produção. Além do mais, o jornalista escreve para o perfil de leitor que o jornal antecipa e, sendo assim, guia a sua escrita e tenta deixá-la interessante para esse público. Sua produção textual adapta-se, portanto, àquilo que julga importante ser lido pelo seu público-alvo.

Junkes (1994) acrescenta que o jornalista, já que regido por normas sociais – no caso, por normas explícitas da instituição em que trabalha, contidas nos manuais de redação – não pode nunca ser pensado como um sujeito capaz de isenção.