• Nenhum resultado encontrado

Visualismo narrativo de expressão portuguesa e angolana

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Visualismo narrativo de expressão portuguesa e angolana"

Copied!
172
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

Visualismo Narrativo de Expressão

Portuguesa e Angolana

Pacheco Quiesse Monteiro Eduardo

Dissertação de Mestrado em Cultura e Comunicação

(2)
(3)

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

Visualismo Narrativo de Expressão

Portuguesa e Angolana

Pacheco Quiesse Monteiro Eduardo

Orientador: Professor Doutor Manuel Frias Martins

Tese especialmente elaborada para a obtenção do grau de Mestre em Cultura e Comunicação.

(4)

i

Em caso de excesso de lucidez, loucura-me.

(5)
(6)

iii Figura i - Imagina-acção. Fonte: Elaboração própria.1

(7)

iv

Agradecimentos

A conclusão deste per-Curso só se tornou possível graças ao apoio de várias “mãos invisíveis” que participaram, direta ou indiretamente, na sua passagem da

sonhalidade à realidade.

Cumpre-me agradecer à Universidade de Lisboa pelo auxílio financeiro de que fui beneficiário, através de Bolsas de Mérito Social, aquando da minha frequência da Faculdade de Direito (FDL) e, posteriormente, da frequência e conclusão da licenciatura em Filosofia (FLUL).

O altruísmo, a sensibilidade e a compreensão de muitos professores (e funcionários) levam-me a concordar plenamente com a perspetiva de que, de facto, a função de uma universidade não se esgota na escolarização, isto é, na mera transmissão de conhecimentos técnicos. A Universidade é (ou deve ser) uma casa aberta ao diálogo com diferentes culturas, um lugar de transpoemação, um espaço humanizador e de fruição, também, onde cada aluno é observado nas suas particularidades, ou seja, na sua situação concreta e vivencial.

Para não incorrer em falta, ponderei não incluir nomes nestes agradecimentos contudo a força da gratidão é maior que o receio de tropeçar no esquecimento. Assim, destaco pessoas imprescindíveis não só na realização desta dissertação, mas também (e principalmente) na efetivação dos horizontes que se ampliam para além dela e que se evidenciaram em enriquecimento pessoal. São eles o Prof. Dr. José Barata Moura, Prof. Dr. Eduardo Lourenço, Prof. Dr. Carlos João Correia, Prof. Dr. Francisco Soares, Prof. Dr. Eduardo Vera Cruz e Prof. Dr. Marcelo Rebelo de Sousa. Um agradecimento também à Prof.ª Dra. Maria Leonor Xavier, à Prof.ª Dra. Maria José Meira, à Prof.ª Dra. Catarina Gaspar, à Prof.ª Dra. Graça P. Corrêa e à Prof.ª Dra. Yvette K. Centeno.

Um agradecimento também à Dra. Anabela Machado, à Dra. Milena Sousa, à Dra. Lília Aguardenteiro, à Dra. Maria Lúcia Ramos Fonseca e à Filomena Martins, antiga secretária do Departamento de Filosofia da FLUL.

Aos professores que me acompanharam a partir de Angola, Prof. Dr. Abreu Paxe e Prof. Dr. Luis Kandjimbo.

Um agradecimento adicional a E. M. de Melo e Castro, Filipe Campos Melo e a Carolina Meireles.

(8)

v Cabe aqui endereçar, com a mais elevada consideração, uma palavra de

engrandecimento e apreço ao Prof. Dr. Manuel Frias Martins, meu orientador, por me

ter sugerido escrever não apenas sobre aquilo que outros pensaram ou disseram, mas sobre o meu próprio “trabalho artístico”. Agradeço-lhe por ter realizado exemplarmente a sua ação educativa e académica. Por me fazer entender a importância de per-correr o caminho mais difícil, aquele que é o mais fatigante, mas que paradoxalmente é, ao fim e ao cabo, o mais gratificante. Agradeço-lhe por todas as vezes que persistiu, insistiu e acreditou neste trabalho. Agradeço-lhe por me ter ensinado, não por palavras, mas por gestos, que a humildade é uma arte.

E, por fim, a Deus, aos amigos e familiares. Sem o vosso amor, eu nada seria.

(9)

vi

Resumo

A presente dissertação tem por tema a poesia visual enquanto forma específica de produção poética e cultural. Ainda que se verifique, no caso da poesia visual, uma forte componente teórica, é também certo que a ela estão associadas ideias ou (pre)conceitos nem sempre compatíveis entre si. Assim, o nosso primeiro objetivo foi traçar um mapa crítico de referência que permitisse chegar a algumas conclusões sobre as particularidades da poesia visual portuguesa, bem como sobre a forma como esta se articula (ou pode ser integrada), não só na poesia em geral, mas também no contexto das novas artes visuais angolanas e, sobretudo, na chamada prática sona, ie, desenhos narrativos realizados na areia pelo povo Tshokwe, do nordeste de Angola.

Apresentamos um projeto que se diferencia de trabalhos desta natureza, sobretudo, devido ao facto de abordarmos a pesquisa teórica de uma forma prática, através da invocação das nossas próprias produções artísticas. Por outro lado, decorrendo esta dissertação no âmbito do Mestrado em Cultura e Comunicação, pareceu-nos plausível que a nossa investigação aliasse a vertente multimédia (em torno de um sítio eletrónico) e a vertente cultural (em torno da poesia). Esta opção foi motivada pela consciência de que, com a expansão dos meios de comunicação digital, substituímos cada vez mais os livros por uma leitura via computador, que nos conduz, inevitavelmente, a desenvolver mais competências tecnológicas.

O presente projeto culminará futuramente, temos esperança nisso, na criação de uma plataforma Web com vista à divulgação da poesia visual, constituindo idealmente um suporte difusor e promotor da prática visual realizada por nós próprios e pelos principais autores de poesia visual, incluindo a arte sona angolana.

Palavras-chave: prática cultural, desenhos na areia, sona, poesia visual, diálogo

(10)

vii

Abstract

The present dissertation focuses on visual poetry as a specific form of poetic and cultural production. Although there is a strong theoretical component in the case of visual poetry, it is also true that visual poetry is associated with ideas or (pre)conceived concepts that are not always compatible with one another. Thus, our first objective was to draw a critical map of reference that would allow us to draw some conclusions on the particularities of Portuguese visual poetry, as well as on how it articulates with (or can be integrated in) not only poetry in general, but also the context of the new Angolan visual arts and, above all, the so-called sona practice, ie, the narrative drawings made in the sand by the Tshokwe people of northeastern Angola.

We present a project that differs from other works of this nature, mainly due to the fact that we approach theoretical research in a practical way through the invocation of our own artistic productions. On the other hand, given the fact that we are part of a Master's Degree in Culture and Communication, it seems plausible that our research allies the multimedia dimension (around a website) and the cultural dimension (around poetry).

This option is motivated by the awareness that, with the expansion of digital media we are increasingly replacing books with reading on computer screens, which inevitably leads us to develop more technological skills. In the future, the present project will culminate, we hope, in the creation of a web platform for the dissemination of visual poetry, ideally constituting a diffuser support and promoter of visual practice performed by ourselves and the main authors of visual poetry, including sona Angolan art.

Keywords: cultural practice, sand drawings, sona, visual poetry, inter-arts dialogue,

(11)

viii

Índice

INTRODUÇÃO ... 1

CAPÍTULO I ... 5

1. Entre a palavra e a imagem – O visualismo mágico ... 5

2. O conceito de “obra aberta” e a poesia visual ... 7

CAPÍTULO II ... 12

1. Questões em torno do conceito de arte... 12

2. Sonagismo ou a simbolização do real ... 19

2.1 Da sonagia à poesia visual ... 24

3. Poesenhos – visualismo narrativo de expressão africana ... 28

4. Intervisualidade: África e Europa ... 37

5. Nexos simbólicos entre a palavra e a imagem – da visualidade à escritalidade ... 40

6. Desenhalidades – Escritores visuais – Desenhar como quem escreve ... 47

6.1 Per(SONA)lidade e conteúdo dos desenhos na areia ... 52

6.2 Da poiesis ao grafismo Poesiente ... 56

6.3 Grafismo Poesi-ente ou a experiência originária da palavra ... 58

6.4 “De-grau zero da poesia” ... 60

6.5 Da transculturação ao sonagismo ... 62

6.6 Estereótipoesia ou Pretografias ... 67

6.7 Prática sona como narrativa poiética ... 70

6.8 O jogo na prática sona – Fruição lúdica dos desenhos sona ... 73

6.9 Geometrismo narrativo ... 76

CAPÍTULO III ... 84

1. Provisória eternidade ou a infinita efemeridade da arte ... 84

2. Da écfrase invertida à tradução intersemiótica – A legitimação da poesia gráfico-narrativa ... 87

3. A imaginação arquetipoética como ponto de partida ... 95

CAPÍTULO IV ... 104

(12)

ix

2. “PoemoGrafias” Heduardianas – Questões de publicação ... 106

3. Similitudes como medi(a)ção – Desenhos na areia-lidade... 110

3.1 A arte na geografia do mundo – Um breve comentário ... 118

IN-CONCLUSÃO ... 120

BIBLIOGRAFIA ... 124

(13)

x

Índice de Figuras

(da totalidade do documento)

Figura i - Heduardo Kiesse, pseudónimo de Pacheco Quiesse Monteiro Eduardo. ... iii

Figura 1 – Fontainha, 1983:187 ... 12

Figura 2 –À esquerda, Fontinha 1983:161. À direita, Fontinha 1983:291. ... 29

Figura 3 - À esquerda, Fontinha 1983:251. À direita, Fontinha 1983:173. ... 32

Figura 4 - À esquerda, Fontinha 1983:225. Ao centro, Fontinha 1983:227. À direita, Fontinha 1983:131. ... 35

Figura 5 - À esquerda, Fontinha, 1983:225. À direita, Poema concreto, ideograma de Melo e Castro, 1972:65. ... 37

Figura 6 – Em cima, à esquerda, Fontinha, 1983:247. Em cima, à direita, Sona recriado por Paulus Gerdes, 2012:199. Em baixo, ao centro, Fontinha, 1983:227. ... 42

Figura 7 – Fontinha, 1983:289. ... 45

Figura 8 – À esquerda, Fontinha,1983:67. À direita, Fontinha,1983:67. ... 52

Figura 9 - “Silêncios”, Poema visual, Heduardo Kiesse. Fonte: Elaboração própria... 68

Figura 10 – À esquerda, Fontinha, 1983:273. À direita, Fontinha, 1983:135. ... 91

Figura A1 - Fonte: “Visão”, Lisboa, Moraes Editores, 1972. Pág. 19 ... 2

Figura A2 - Fonte: “Visão”, Lisboa, Moraes Editores, 1972. Pág. 17 ... 2

Figura A3 - “Petroglífos de Arizona”. Fonte: Melo e Castro, E. M. de. “A proposição 2.01: Poesia experimental”. Lisboa: Ulisseia, 1965. Pág. 111. ... 3

Figura A4 - “Inscrição petroglífica de pedra lavrada” Brasil. Fonte: Melo e Castro, E. M. de. “A proposição 2.01: Poesia experimental”. Lisboa: Ulisseia, 1965. p.113. ... 3

Figura A5 - “Escrita” – Paul Klee. Fonte: Melo e Castro, E. M. de. “A proposição 2.01: Poesia experimental”. Lisboa: Ulisseia, 1965. Página 120. ... 4

Figura A6 – Fonte: Ana Atherly, “Tisanas”, Berlim: Edition Tranvia, 1998. Pág 65... 5

Figura A7 - Fonte: Ana Atherly, “Tisanas”, Berlim: Edition Tranvia, 1998. Pág 64. ... 5

Figura A8 - Fonte: Ana Atherly, “Tisanas”, Berlim: Edition Tranvia, 1998. Pág 69 ... 6

Figura A9 - Fonte: Ana Atherly, “Tisanas”, Berlim: Edition Tranvia, 1998. Pág 67. ... 6

Figura A10 - Fontinha: 1983:177. ... 7

Figura A11 - Fontinha: 1983:265. ... 7

Figura A12 - Fontinha: 1983:229. ... 7

Figura A13 - Fontinha: 1983:224. ... 8

Figura A14 - Fontinha: 1983:189. ... 8

Figura A15 - Fontinha: 1983:161. ... 8

Figura A16 - Fontinha: 1983:191. ... 9

(14)

xi

Figura A18 - Desenho na areia (Fontinha,1983:161) ... 10

Figura A19 - “Aranhão”, Salette Tavares ... 10

Figura A20 - Desenho na areia (Fontinha: 1983:161) ... 10

Figura A21- Poema concreto Melo e Castro.Fonte: Capa do livro de Frias Martins – Matéria negra- uma teoria da literatura e da crítica literária. 2.ª ed. revista. Lisboa: Edições Cosmos, 1995 ... 11

Figura A22 - Fernando Kafukeno. ... 12

Figura A23 - Frederico Ningi. ... 13

Figura A24 - Frederico Ningi. ... 14

Figura A25 - Frederico Ningi. ... 14

Figura A26 - Luís Kandjimbo. ... 15

Figura A27 - Au-essência. Fonte: Elaboração própria. ... 16

Figura A28 - Poesia – Vestuário. Fonte: Elaboração própria. ... 16

Figura A29 - Desafia-dor de palavras. Fonte: Elaboração própria. ... 17

Figura A30 - Obra-poema. Fonte: Elaboração própria. ... 17

Figura A31 - Envolve-me no silêncio dos teus gritos. Fonte: Elaboração própria. ... 18

Figura A32 – Poetamentos (com versos do poema “Ser Poeta” de Florbela Espanca). Fonte: Elaboração própria. ... 18

Figura A33 - Gritualizar o silêncio. Fonte: Elaboração própria. ... 19

Figura A34 - Poesia-me. Fonte: Elaboração própria. ... 19

Figura A35 - 100 - tidos com sentido. Fonte: Elaboração própria. ... 20

Figura A36 – eGIZtência. Fonte: Elaboração própria. ... 20

Figura A37 – Longicitude. Fonte: Elaboração própria. ... 21

(15)

1

INTRODUÇÃO

A solidão não surge por não termos ninguém à nossa volta, mas por sermos incapazes de comunicar as coisas que nos parecem importantes ou por defendermos determinadas perspectivas que outros consideram inadmissíveis. (Jung, apud Martins, 1995:36)

“Um poema visual, já o sabemos, não é um quadro, nem um desenho. Produto híbrido de códigos verbais e não verbais, ele é principalmente uma coisa que a si própria se nomeia.” Estas são palavras do poeta e crítico E. M. de Melo e Castro (1995:224), as quais nos fornecem uma definição sucinta do que é um ‘poema visual’. E além de sucinta, a definição deixa também algumas dúvidas relativamente a uma forma de poesia que, ela mesma, parece poder facilmente ser mal compreendida.

Em que sentido falamos verdadeiramente de ‘visual’ no contexto da poesia? E de que forma um híbrido de códigos verbais e não verbais pode ser entendido como poesia, tendo em conta a (con)tradição desta forma literária? Ana Hatherly explica: “Tive ocasião de refletir longamente sobre os problemas da comunicabilidade do texto, da sua legibilidade e ilegibilidade, pois constantemente estava perante textos, literalmente ilegíveis para mim – por exemplo em chinês arcaico – mas que eu, não obstante, lia.” (Hatherly, 1975:22).

Um dos pontos de partida essenciais para compreender a poesia visual é que ela nos propõe uma forma fundamentalmente nova (ou, nos dias de hoje, fundamentalmente diferente) de ler poesia. No entanto, grande parte da poesia moderna – e até alguma poesia anterior ao modernismo – prendeu-se justamente com a necessidade de encontrar novas formas de escrever e de ler poesia: “Pode datar-se com o simbolismo de Mallarmé o início de uma ruptura com as formas de expressão tradicionais, tendo como propósito a acentuação plástica da palavra, autonomizando-a de um sentido ou significado.” (Júdice, 1992:118).

A tentativa de compreensão destas ruturas fez-se frequentemente por recurso ao conteúdo da poesia, e um dos aspetos mais decisivos da poesia visual é o facto de introduzir uma delas, desde logo, no que à forma diz respeito. Nesse sentido, trata-se também de uma certa crítica da própria arte moderna, que encontra eco nos anos

(16)

2 sessenta dos Estados Unidos da América. O caso de Susan Sontag e do seu emblemático ensaio Contra a Interpretação é bastante claro: “Ao reduzir a obra de arte ao seu conteúdo para depois interpretar esse conteúdo, é o mesmo que domesticar a obra de arte. A interpretação torna a arte conformada.” (Sontag, 2004:24). É também contra este conformismo que frequentemente a poesia visual – e toda a poesia experimental, de forma generalizada – se afirma. Conforme nos diz Melo e Castro, o poema visual é “o que não precisa de ser lido para ser entendido”. (Castro, 1965:76).

O caso específico da poesia concreta e da poesia visual prende-se essencialmente com a emancipação da matéria da poesia em relação ao conteúdo. A matéria da poesia é o campo de ação da poesia visual. Como indica ainda Melo e Castro: “As palavras são a Poesia. E por palavras entendemos inclusive cores, formas, materiais de construção civil, rochas, fluído em movimento, máquinas – tudo aquilo que se possa objetivar, o que quer dizer, criar o eco, o casual, o fortuito, o sem sentido – o «real» de toda a gente.” (Castro, 1990:490).

É esta forma de chegar ao real através das formas que está, por norma, associada à poesia visual. Melo e Castro, na ideia acima referida, aponta também para uma necessidade de aludir ao “real” de toda a gente, o que significaria, em certa medida, uma recuperação poética do mundo moderno. Mas a poesia visual não está apenas associada a uma espécie de modernização da poesia. Muito pelo contrário. Ana Hatherly propõe que “dada a origem mágica da escrita, um poema, do mesmo modo que um objeto mágico, exige da parte do leitor uma receção criativa: uma suspensão da descrença, ou seja, uma meta-leitura. Como em todas as formas de comunicação significativa, tem de se ler o texto sob o texto. O leitor tem de preencher as lacunas, os vazios, as omissões, tem de ver o invisível sob o visível, ouvir o som mudo, receber a mensagem não dita, atingir o significado sob o significado”. (Hatherly 1995: 196-197).

Em larga medida, a autora propõe quase um regresso às origens da poesia, ou, pelo menos, uma forma diferente de a ler, que suspenda as convenções a que nos habituámos através dos exemplos mais canónicos. A poesia visual elimina as nossas certezas, reinaugurando as possibilidades discursivas ou expressivas.

Por outro lado, e no que particularmente aos dias de hoje diz respeito, a poesia visual pode ser uma forma de entender uma série de práticas que, tradicionalmente, não têm sido incluídas nos cânones daquilo que – neste caso, em Portugal – entendemos como arte. É o caso da arte não-ocidental, cuja investigação é cada vez mais emergente no contexto pós-colonial em que nos encontramos.

(17)

3 É sabido que o sistema colonial não favoreceu a emancipação dos povos africanos. Estes povos, por norma sem meios de leitura e escrita, enfatizaram em larga medida a sua tradição oral, particularmente no que diz respeito à transmissão dos aspetos mitológicos das várias comunidades. Segundo nos indica Muanamosi Matumona1: “A tradição oral é uma marca forte da cultura tradicional africana, pois representa um património, sendo, assim, um elemento de referência que influencia o modo de ser, de estar e de pensar do negro-africano” (Matumona 2011:32). Em sociedades onde a oralidade é uma ferramenta imprescindível para a transmissão de saberes, pode, de facto, dizer-se que “quando morre um velho, desaparece uma biblioteca”, uma ideia frequentemente associada à África. A tradição oral representa, na verdade, a forma local de arquivo, de enciclopédia, sendo também uma ontologia poética e proverbial.

O grafismo sona, ou sonagismo2, é também uma parte deste tipo de tradições

não-ocidentais, tendo sido transmitido primeiro sob formas não escritas, o que o torna mais desconhecido entre nós. No entanto, a tradição sona existe. Alguns fragmentos têm sobrevivido, sendo preservados e transmitidos através de aforismos, de máximas de sabedoria, de provérbios tradicionais, de contos e, muito particularmente, da religião.

A nossa investigação procurará estabelecer até que ponto a poesia visual – pela sua maior adaptabilidade a diferentes tipos de contextos culturais – pode ser entendida como uma forma de confluência com as tradições artísticas não-ocidentais, revelando capacidade para gerar um diálogo entre formas artísticas e culturais distintas.

É esta forma fundamentalmente “diferente” de ler poesia que nos propomos explorar neste trabalho, não apenas do ponto de vista meramente histórico, mas também com um sentido prático.

O trabalho está estruturado de forma a demonstrar o que podemos hoje entender por poesia visual, progredindo depois para uma abordagem mais pessoal, com recurso a trabalhos elaborados por nós próprios, e concluindo com a proposta de uma plataforma

web destinada a promover e divulgar a poesia visual.

1 Muanamosi Matumona foi professor de Sociologia e de Filosofia Africana na Universidade Agostinho Neto, em Angola. É autor de várias obras, entre as quais: Jornalismo Angolano: A Reconstrução de África

na Era da Modernidade. Ensaio de Uma Epistemologia e Pedagogia da Filosofia Africana (2004); e Teologia Africana da Reconstrução Como Novo Paradigma Epistemológico. Contributo Lusófono Num Mundo em Mutação (2008).

2 Sonagismo é a nossa proposta para designar a criação de desenhos narrativos em que, como no caso particular dos desenhos sona, os signos verbais são substituídos por signos visuais. Usaremos este vocábulo para nos referirmos à prática sona, em sentido lato.

(18)

4 O conteúdo do projeto responderá à necessidade de dar voz à prática experimental, muitas vezes remetida para um plano secundário, quando confrontada com outras formas mais canónicas de expressão poética. Além disso, no que concerne à plataforma web, pretende-se que esta possibilite a incorporação de trabalhos criados pelos visitantes, permitindo que estes possam não só pesquisar informação acerca da poesia visual, mas também intervir no sítio eletrónico, propondo obras ou participando na criação de eventos de intervenção urbana. O conteúdo será separado por modalidades e apresentado em diferentes “janelas”, podendo ser pesquisado por autor, tipo de modalidade ou, tratando-se de uma obra, pelo título do livro.

É nosso entender que a criação de uma plataforma nos moldes em que a idealizamos poderá servir vários propósitos, além da divulgação do que já tem vindo a ser produzido em termos de poesia visual. Entre eles, cremos que esta plataforma poderá renovar o discurso acerca deste tipo específico de prática literária, bem como evidenciar como a poesia visual pode ser agora redefinida, tendo em conta o potencial da matéria visual originada pela internete, a qual se encontrava num estádio meramente embrionário na altura das experiências mais significativas da poesia visual portuguesa – nomeadamente entre as décadas de cinquenta e oitenta.

(19)

5

CAPÍTULO I

1.

Entre a palavra e a imagem – O visualismo mágico

O poema dá-se no movimento da sua própria sombra como algo que passa e nos atravessa sem que tenhamos nem lugar para o recolher, nem horizonte onde o fixar. (Coelho, 2010:200)

Antes de iniciar este capítulo, urge explicitar uma questão: ao serem propostas novas designações, nomeadamente o que se caracteriza como visualismo mágico, pretende-se mostrar que a criatividade, sendo ilimitada, pode (e deve) abranger as mais variadas formas de expressão, não tendo de ser restringida pelos conceitos já existentes. Por combinar diversos recursos estilísticos e, consequentemente, poder conter vários significados/interpretações, a poesia apresenta-se como uma ferramenta de inegável potencial para a confluência de elementos extra-linguísticos, tornando-se, assim, um corpo em movimento – uma paisagem que se liberta do próprio suporte onde foi criada, afastando-se dos modelos poéticos tradicionais e inundando-nos das mais variadas sensações.

Com esta abordagem pretende-se encontrar uma linguagem extensível, um discurso universal, em que o fruidor seja confrontado com uma multiplicidade de suportes que, pelas suas diferentes características, o estimulam das mais variadas formas – ora através de um verso incutido numa imagem, ora através de um vídeo que o conduz à “desfragmentação” de uma palavra noutras possíveis, recorrendo apenas à mudança das posições das letras que compõem a palavra inicial, por exemplo. Daqui se conclui que a interpretação do poema permite que o próprio fruidor seja criador: de imagens mentais, de ideias, de outra(s) palavra(s), ou, até, de outros (possíveis) sentidos não (ante)vistos pelo criador.

Num poema em movimento, o que prevalece na construção da narrativa visual é a sua condição nómada, o facto de o fruidor ser conduzido pelo criador numa trajetória fixa, mas inicialmente imprevista, assemelhando-se a um deambular por territórios inexplorados, e tornando a primeira visualização de um “poema em movimento” extremamente vívida e impressiva. Conforme lemos em Herberto Helder “porque somos como as árvores, presos a um lugar, respirando através de uma lei calma e imortal. (Helder, 2006:190). Quando em movimento, o poema não está preso a um papel, a um só lugar, antes circulando por uma trajetória concebida pelo criador. É como uma

(20)

6 árvore fixa à terra que se move através das folhas, sendo o fruidor convidado a participar no movimento voante do poema, como se nele existissem “asas em volta”. O observador identifica-se com o que lhe é dado a ver e interpreta-o.

Já E. M. de Melo e Castro refere que “o dizer do poético é o dizer de tudo. O ver do poético é o ver total” (Castro, 1985: 138). O movimento de um poema capta o olhar, torna-se vertigem, não no sentido de queda, mas no de ascensão, já que a poesia nos incita a despoletar o voo.

O poema em movimento, na sua vertigem e irreverência, é um veículo comunicativo, dinâmico e estético; e é nesse exercício vivificante e de irrequietude que o poema consuma a poeticidade da sua natureza movimentacional.

Entendemos por visualismo mágico a experiência estética correspondente à contemplação do inefável, do indescritível. Não me refiro a um estado contemplativo, passivo e rígido, mas sim ao intercâmbio “mágico” que sucede entre o poema visual e o fruidor.

O visualismo mágico ocorre, portanto, quando o fruidor se prolonga para além das palavras, sendo agente ativo de uma experiência quase “alucinatória”. Nestas circunstâncias, o sentido pragmático da realidade parece ser suspenso perante a sensação de deslumbramento que o fruidor experiencia, obrigando-o, através do poema, a submergir em si.

Pela sua natureza metafórica, e por incluir vários elementos estilísticos, a poesia visual surpreende, não tanto pelo seu conteúdo, mas essencialmente pela forma como os elementos se interligam entre si, quer a nível fónico, semântico, visual ou tátil. Fernando Aguiar, diz, a este propósito, que “a poesia deixou definitivamente os discursos para entrar no domínio das formas, no terreno do áudio-visual e na dimensão do táctil” (Aguiar, 1985:155).

O poema visual, quando em movimento, ganha o sentido do deslumbramento, ganha uma dimensão mágica, produtora de espanto, produtora, diria mesmo, de uma certa “loucura sagrada”, na medida em que consagra essa espécie de “delírio fecundo”.

Com o visualismo mágico estamos, portanto, a propor uma modalidade poética que coloca a linguagem em movimento, e que já não é uma confeção artificiosa, mas é gestualidade, é resposta ao estranhamento que decorre de um espanto, um momento mágico e inenarrável, ingénuo e sincero. A originalidade do poema em movimento manifesta-se na coexistência de recursos estilísticos diversos e na tentativa de unir a palavra à imagem, de um modo ainda não explorado. Poderia ser original, na medida em

(21)

7 que modifica o nosso modo de olhar para a realidade. Mas é de uma originalidade inatingível, sempre em fuga, porque não reside na obra em si, de um modo intrínseco, mas no modo de olhar do fruidor.

O poema visual produz um efeito que exige do fruidor uma leitura afastada da dimensão lógica da realidade, e mais próxima do indizível. Portanto, representa a descoberta do “novo”, um encontro com o inefavelmente intuitivo, um cruzamento entre o racional e o não racional.

O visualismo mágico surge associado a uma necessidade de intervir no pensamento coletivo. A intervenção do imaginário não se limita a uma experiência abstrata, mas sim operante e atuante na realidade social circundante.

A magia da poesia visual reside no facto de fazer irromper a consciência de nós próprios. Entendido assim, o poema, pela multiplicidade de recursos nele inseridos, no seu mo(vi)mento em deslocação, apresenta-se de um modo omnipoesiente, quer dizer, capaz de captar todos os sentidos, capaz de voar em todas as direções da realidade.

2.

O conceito de “obra aberta” e a poesia visual

Obra aberta como proposta de um campo de possibilidades interpretativas, como configuração de estímulos dotados de uma substancial indeterminação, de modo a que o fruidor seja levado a uma série de leituras sempre variáveis; estrutura, enfim, como “constelação” de elementos que se prestam a diferentes relações recíprocas. (Eco, 1989:174)

O presente capítulo tem por objetivo introduzir os problemas de leitura que surgem no contexto da poesia visual. Nesse sentido, importa apresentar não uma história da poesia visual, mas uma matriz que nos permita compreender a poesia visual. Essa matriz articula-se com a proposta de Umberto Eco de uma “obra aberta”, que nos parece, por motivos explicaremos de seguida, adequar-se aos desafios que a poesia visual apresenta no sentido de ser lida como poesia.

Somos apologistas da tese que atribui à poesia visual o estatuto de “obra aberta”, na medida em que a poesia visual constitui um sistema aberto que amplifica a leitura por via de vários dispositivos e não apenas do código linguístico alfabético. O código linguístico, por si só, deixou de satisfazer as exigências criativas, de modo que a palavra, sendo um dispositivo da relação da poeticidade captado pela intuição ou pela

(22)

8 mente, passou a residir fora do código linguístico, não se reduzindo à palavra enquanto conteúdo.

A poesia visual é, pois, uma forma privilegiada de abertura a diferentes práticas artísticas e cruzamentos intersemióticos. É esta condição de porosidade ou permeabilidade da poesia visual que permite, por exemplo, que aspetos literários, plásticos, musicais ou cinematográficos sejam incluídos num só poema em simultâneo. Alguns dos seus autores mais representativos, como, por exemplo, Melo e Castro ou Ana Hatherly, defendem que as palavras, por terem um sentido convencionalmente atribuído, acabam por interferir no modo como o indivíduo capta o mundo à sua volta, acabando por limitá-lo. Nesse sentido, as palavras não são suficientes para apreender e expressar o pensamento. Só através das imagens é que nos é dada a possibilidade de dialogar com o inefável. Assim, a poesia visual, mais do que as palavras, aspira a um modo pluralizado de existência, ou, dito por outras palavras, procura aceder a uma tríplice função: verbal, visual e vocal de comunicação. De acordo com Melo e Castro: “a atitude experimental em poesia assenta num aprofundamento do estudo da possibilidade ou impossibilidade de comunicação entre os homens através dos vários sistemas de sinalização dirigidos especificamente às portas da percepção.” (Castro, 1981:115).

Assim, guiados por Melo e Castro, observaremos, em seguida, alguns exemplos em que a poesia experimental se pode desdobrar3: poesia visual; poesia auditiva; poesia fonética, rítmica ou melódica; poesia tátil; poesia respiratória – por exemplo, a experiência de Pierre Garnier com o sopro humano –; poesia linguística; poesia conceptual e matemática – cibernética; métodos combinatórios; estrutura numérica da obra de arte; poemas eletrónicos; poesia sinestésica e poesia espacial. Estes são apenas alguns exemplos. No entanto, podem prever-se outros tipos de poesia ligados aos sentidos e a outras atividades humanas diferenciadas.

Apesar da sua tridimensionalidade, a poesia visual é, por vezes, apontada como sendo demasiado formal. Tal como observa Manuel Frias Martins: “enquanto que na poesia (literatura) tradicional as mensagens emocionais e intelectuais prendem a atenção

3 Estes exemplos sumários dos vários tipos de poesia visual poderão ser aprofundados na obra de Ana Hatherly e Melo e Castro, PO-EX – Textos Teóricos E Documentos Da Poesia Experimental Portuguesa (1981)

(23)

9 e obscurecem, portanto, o meio por que são transmitidas, neste universo experimental-visual a atenção vai para o meio e para os materiais, minimizando-se, portanto, a mensagem ou a carga semântica” (Martins, 2001:229).

Na verdade, na poesia visual, dados os meios e os recursos que usa no fazer poético, ou seja, na sua materialidade, a carga semântica parece merecer uma “presença-ausente”, quer dizer, uma presença menos expressiva.

Na poesia visual, a interseção de signos plurais é construída por indivíduos – o que não quer dizer que seja individual. Pelo contrário, representa a antítese no singular. Essa singularidade é fundamental no que diz respeito à inclusão de conteúdos interdisciplinares que contribuem para a promoção da sensibilidade estética. Como entende Joaquim Cerqueira Gonçalves: “a obra é um processo de universalização, de unificação e de diferenciação” (Gonçalves, 2001:70). Este mesmo sentido é explorado por Ana Hatherly, quando diz que vê o poeta como “um investigador de formas e de sentidos, que são as improbabilidades que ele calcula”. (Hatherly, 2001:8). Esta “improbabilidade” situa-nos num universo poético que procura definir-se e diferenciar-se dos exemplos mais canónicos. E, mais ainda, esta particularidade justifica a grande quantidade de produção teórica apresentada pelos próprios autores de poesia visual – pelo menos, alguns dos mais destacados no contexto português – acerca do seu próprio trabalho. Ana Hatherly, E. M. de Melo e Castro, Salette Tavares, António Aragão, entre outros, frequentemente publicaram investigações literárias, manifestos e recensões críticas, bem como experimentações sobre poemas-ensaio (como acontece com O Cisne Intacto, de Ana Hatherly, publicado em 1983).

A poesia visual, enquanto artefacto cultural, é uma linguagem universal e globalizante4 por intermédio da qual, apesar das diferenças nas nossas representações, nos podemos compreender através de uma linguagem comum. A esse respeito, relembremos as palavras de E. M. de Melo e Castro: “O dizer do poético é o dizer de tudo. O ver do poético é o ver total.” (Castro, 1985:138).

O mesmo é entendido por Ana Hatherly: “A poesia visual viu o seu âmbito de tal maneira alargado que hoje engloba a produção dum vasto grupo de textos e/ou objetos que, nem sempre tendo a ver com a poesia do tipo tradicional (dependente de certas

4 A este propósito, veja-se o artigo Perspectiva da Poesia Visual, de E. M. de Melo e Castro, inserido na obra Poemografias: Perspectivas da Poesia Visual Portuguesa. Org. de Fernando Aguiar e Silvestre Pestana. Lisboa, Ulmeiro, 1985:138.

(24)

10 regras rítmicas e certos recursos retóricos), sempre tem a ver com o discurso criativo, mesmo quando este deixa de ser verbal” (Aguiar e Pestana, 1985:138).

No entanto, é necessário compreender que, no contexto português, a obra dos poetas experimentais e visuais nem sempre foi apreciada ou reconhecida pela crítica, como demonstra a polémica entre Hatherly e o crítico Nelson de Matos, em 1970, no

Diário de Lisboa (cf. Hatherly, 2001:372-381). Há, por isso, nos poetas ligados ao

movimento, uma consciência da necessidade de compreensão de uma forma nova de poesia, conforme indicado por António Aragão: “Não se procure negar ou combater esta ou aquela forma que nasce, mas antes aceitá-la ou tentar, pelo menos entendê-la no seu delineamento ôntico, seja ela qual for, assim aberta e narrada como um puro campo de

possibilidades.” (Aragão, 1981:103).

A poesia visual nasce a partir do conjunto, de um todo que se expande pela diversidade e pela (con)fusão das diferenças5. Se, por um lado, temos as palavras, a rima, as metáforas, versos métricos, etc., do outro lado temos a descoberta da visualidade, a dimensão audiovisual, a construção ou desconstrução de cenários em movimento, a construção figurativa de realidades poemáticas. Só pela convergência de diversos elementos podemos compreender a poesia visual como congregacional. Porque não segrega, representa um vértice de confluência da poesia popularmente instituída e da poesia concreta ou visual.

Umberto Eco, na sua Obra Aberta, defende que uma obra de arte tem a capacidade de ser interpretada “de mil modos diferentes sem que a sua irreproduzível singularidade seja por isso alterada” (Eco, 1989:68). Nesta perspetiva, a poesia visual não deve ser apenas considerada na sua comunicação vocabular, sem um suporte que se deixa também ele interpretar de vários modos. Mas para que tal interpretação suceda é necessário que o fruidor, o sujeito-leitor se disponibilize num gesto de abertura ao poema.

Por conseguinte, a poesia, na sua visualidade, abre-se à criação de universos plurissignificativos, por intermédio da interceção construtiva entre as dimensões plástica, afetiva, cognitiva ou lúdica, fónica ou tátil. A poesia visual é uma “obra aberta” porque une o diverso, recusa o pensamento individual, defende o dinamismo da pluralidade de interpretações, de sentidos, mundos e realidades. “Obra aberta” porque

5 O tempo de metamorfose, ou seja, de mudança, só acontecerá se tivermos em conta a transdisciplinaridade da arte, isto é, a unidade do conhecimento, a articulação dos diferentes saberes e diferentes práticas artísticas num território de cooperação e não de exclusão.

(25)

11 defende a reciprocidade e uma dinâmica conjuntiva, não obstante as diferenças dos vários produtos textuais ou espécies poéticas. E, finalmente, “obra aberta” por ser múltipla na sua riqueza diferenciada de singularidade, por ser um meio de dissolução de fronteiras.

(26)

12

CAPÍTULO II

1.

Questões em torno do conceito de arte

Figura 1 – Fontainha, 1983:187

O imaginário lusófono tornou-se, definitivamente, o da pluralidade e o da diferença, e é através desta evidência que nos cabe, ou nos cumpre, descobrir a comunidade e a confraternidade inerentes a um espaço cultural fragmentado, cuja unidade utópica, no sentido de partilha em comum, só pode existir pelo conhecimento mais sério e profundo, assumido como tal, dessa pluralidade e dessa diferença. (Lourenço, 1999:112)

O termo “arte” é uma designação de matriz eurocêntrica. No entanto, como atesta Abreu Paxe: “Embora nas línguas bantu de Angola não exista a palavra arte, a essa ideia estão associados os atos de: aproveitamento dos segredos das ciências para produzir efeitos surpreendentes, caça, cura, ato de esconder-se, magia e maneiras de encantar. Esses são dirigidos aos membros da comunidade com responsabilidades de criação e invenção, movidos por uma necessidade interna com estímulos coletivos que lhes levam a estudar, com certa profundidade, a vida” (Paxe, 2016:27).

Segundo o pensamento de Alfred Gell, aquilo que entendemos por arte é o resultado fundamental de uma genealogia de princípios estéticos, éticos e representacionais, traçados de um complexo processo de continuidades e roturas entre povos mais ou menos unidos por um conjunto coeso de condições culturais, sociais,

(27)

13 económicas e intelectuais (Gell, 1998). Isto não significa que as práticas artísticas estejam circunscritas ao ocidente ou que outras civilizações não estejam igualmente aptas a que a produção estética e artística cumpra, nos seus próprios circuitos socioculturais, um papel equiparável ao da arte do ocidente:

O homem ocidental tende a julgar a arte dos povos indígenas como se pertencessem à ordem estática de um Éden perdido. Dessa forma, deixa de captar, usufruir e incluir no contexto das artes contemporâneas, em pé de igualdade, manifestações estéticas de grande beleza e profundo significado humano. (Vidal, 1992:13)

Quer a apelidemos de “sonagismo”, de “desenhos na areia”, ou de outra qualquer designação, ao falar de arte num contexto não-ocidental, a tendência deve ser a da abertura, isto é, a de acomodar a ideia de que sistemas artísticos (ou sistemas com um valor comparável ao da arte no Ocidente) em diferentes contextos socioculturais, podem assumir características consideravelmente distintas daquelas que consideramos como centrais no Ocidente. Uma coisa não passa a ser o que é só pela designação que lhe atribuímos, nem passa a ser o que não é pelo facto de lhe retirarmos ou lhe atribuirmos uma qualquer designação ou estatuto.

Tendo em conta a pluralidade de estruturas sociais e culturais disponíveis no registo antropológico, supõe-se ser um erro atribuir um conceito ocidental (entendido como universal) a uma manifestação humana particular de artefactos étnicos – neste caso, africanos. Da tentativa de submeter as produções estéticas e visuais africanas a conceitos ocidentais (ou estruturados por referência ao mundo ocidental) poderá resultar uma inevitável distorção, uma desvalorização dos aspetos verdadeiramente intrínsecos à produção estética africana feita em nome de uma inserção em classificações e conceções ocidentais que, pela sua própria genealogia histórica, pressupõem uma grande quantidade de aspetos específicos que dificilmente poderão ser encontrados em exemplos africanos. Por outro lado, o nosso próprio entendimento destas práticas “outras” é diminuído pela nossa tentativa de as enquadrar naquilo que nos é familiar, naquilo que nós mesmos entendemos por arte. Partilhamos a ideia de Vitorino Nemésio de que “nem o abstracto nem o concreto são propriamente poesia. A poesia é outra coisa”. (V. Nemésio, apud Júdice, 1998:176).

Por outro lado, cremos que a noção de “grafismo” introduzida pela poesia concreta e visual – uma noção subversiva, mesmo no contexto dos cânones ocidentais –

(28)

14 oferece, por si, uma oportunidade de indagar a arte africana e de procurar nela alguns traços de semelhança ou laços de parentesco, sem, com isso, tentar submetê-la a qualquer tipo de prática canónica específica do Ocidente.

O que pretendemos propor é que a utilização da ideia de grafismo – conforme concetualizada pela poesia experimental, ela mesma um resultado de um diálogo transatlântico – pode fornecer um modelo de análise e compreensão do grafismo sona, sem sacrificar a especificidade do seu contexto de produção e significação. Assim, não se trata de incorporar estas práticas num conceito de arte definido pelo Ocidente, mas antes de uma tomada de consciência das suas implicações estéticas e das suas eventuais aproximações e divergências relativamente às práticas ocidentais.

“A nova sensibilidade finge uma simpatia suspeita perante a arte mais distante no tempo e no espaço, o que a faz comprazer-se nessas obras primevas é – mais do que elas próprias – a sua ingenuidade, isto é, a ausência de uma tradição que não se formou ainda.” (Ortega y Gasset, 2003:67). Esta ideia tem alguma relevância neste contexto, na medida em que muitas das apreciações ocidentais sobre a arte ou as práticas artísticas de outras sociedades estão muitas vezes tingidas destes aspetos “exóticos” que tornam essas práticas apreciáveis não pelo seu valor intrínseco, mas justamente pela sua aparente “pureza”, em comparação com a história complexa e variada da arte ocidental, desde as suas raízes greco-romanas até à atualidade.

Consideramos que o enquadramento proporcionado pela poesia concreta e pela poesia visual estabelece um quadro de referência a partir do qual é possível traçar um paralelismo com o sona africano e, retroativamente, usar estas mesmas práticas estéticas não-ocidentais como forma de renovação do discurso no contexto da própria poesia visual.

Note-se que um dos pontos mais importantes da poesia visual é a sua erradicação do discurso linear, organizado em volta de um texto canónico. A palavra, entendida já não enquanto substância, mas enquanto forma, é trabalhada através das suas possibilidades visuais e compositivas, fazendo convergir (ou confundindo) o domínio textual com o domínio visual. Nesse sentido, trata-se de uma abordagem nova, em que a perceção do texto não depende apenas daquilo que está escrito, mas principalmente da forma como o poema é escrito. Assim, o poema ganha autonomia relativamente ao seu autor e ao seu contexto, oferecendo um leque ilimitado de leituras que variarão de acordo com as interpretações do leitor, mais do que do autor. É já clássica a constatação de Wimsatt e Beardsley de que “a intenção do autor não está

(29)

15 disponível nem é desejável como um critério para julgar o sucesso de uma obra de arte”. (Wimsatt e Beardsley, apud Martins, 1995:114).

Deste modo, o poema visual transcende forçosamente o plano cultural no qual surge, e pode ser entendido em contextos radicalmente diferentes – de formas também elas radicalmente diferentes, mas igualmente válidas e igualmente inscritas no programa da poesia visual. A ambivalência dos símbolos gráficos é intrínseca à poesia visual, e, nesse sentido, oferece um programa de leitura para registos gráficos produzidos em diferentes contextos.

Por outro lado, a arte sona segue os modelos culturais angolanos. E é à luz das suas próprias premissas que deverá ser observada. Mais ainda, devido ao passado do próprio país e da sua dependência de Portugal, é ainda mais importante que qualquer leitura ‘ocidentalizada’ seja suficientemente consciente para não trair o que é característico da arte sona em detrimento de valores ocidentais desenvolvidos em sentidos inteiramente diferentes.

Angola deve acompanhar sob pena de ser arrastada pela penumbra avassaladora da hegemonia ocidental com o pretexto de que os seus modelos e padrões são pretensamente universais, quando o que qualifica uma obra de arte angolana é a sua originalidade enquanto expressão de uma cultura situada num tempo e num espaço do continente africano. (Kandjimbo, 2003:150)

Esta tendência para absolutização dos valores ocidentais tem sido denunciada por vários autores, e a nossa proposta não é, naturalmente, a de absorver a prática sona numa noção ocidentalizada da arte, mas antes dentro de uma visão africanizada, que tenha subjacente uma reflexão de conjunto, quer dizer, de uma perspetiva dialogizada da arte, sem hierarquias de géneros.

Contra essa ideia, há justamente que ter em conta a aceitação limitada e específica da poesia visual em Portugal, bem como a importante construção dos conceitos teóricos da poesia visual entre Portugal e o Brasil (para não referir outros países em que práticas semelhantes se registaram) e, talvez de forma secundária, o facto de muitos autores, incluindo alguns dos pertencentes ao próprio movimento, o terem dado como terminado a partir da década de oitenta. É o caso de Ana Hatherly, em cuja obra O Cisne Intacto, de 1983, sugere uma leve transição de uma fase – ligada à poesia visual – para outra – de experimentação com os limites do texto poético.

(30)

16 O sonagismo constitui uma prática “conjuntiva”, pressupondo uma componente mais diretamente funcional e uma outra, estética. Esta articulação entre a função prática e o prazer da contemplação é o encadeamento que está na base da leitura que aqui propomos do sonagismo, ou grafismo narrativo.

O grafismo narrativo apresenta-se como um ato de ler e de escrever, como constata o crítico literário e ensaísta angolano Luís Kandjimbo quando, na sua obra

Ideogramas de Ngandji, cita vários exemplos que nos revelam que: “Além das

conhecidas escritas pré-coloniais, desde a primeira metade do século XIX, há registos de invenções de sistemas de escrita em África. De acordo com o estado atual dos conhecimentos, tal aconteceu pela primeira vez em 1833, quando Mamolu Duwalu Bulcele, que conhecia bem a escrita alfabética latina, com a ajuda de seus amigos, criou a escrita vai. Ela ainda hoje é utilizada pelo povo Vai da Serra Leoa. Continha 122 símbolos e a sua escrita desenvolvia-se da esquerda para a direita.

Em 1921, Kisimi Kamara, um alfaiate também da Serra Leoa, inventou a escrita

mende por intermédio da qual o povo Mende registava as suas tradições orais. Era

constituída por 195 símbolos e escrevia-se da direita para a esquerda.

Em 1930, o liberiano Wido Zobo, originário de Boneketa, criou o «silabário»

loma usado pelo povo do mesmo nome que habita igualmente o território da Guiné

Conacri. Utilizado pelos supervisores da multinacional Firestone nas plantações da borracha, é composto por 185 símbolos. Ainda na Libéria foi criada a escrita kpelle por um “Chefe” chamado Gbili.

Nos Camarões e na região oriental da Nigéria desenvolveram-se outras escritas como a bamum, bagam e oberi okaime. A escrita bamum foi inventada pelo Sultão Njoya, por volta de 1903, e comportava 510 símbolos ideográficos e pictográficos. Em 1917, surgiu a escrita bagam com 100 símbolos, mas baseando-se no bamum. A escrita

oberi okaime «é referida como manifestação hierofânica do Espírito Santo». Surgiu na

Nigéria em 1930, por intermédio de Michael Ukpon e Alcpan Udofía. Ainda na Nigéria, Josiah Olunowo Ositelu, profeta e fundador da Igreja do Senhor em Ogere, criou uma escrita «Santa» para a língua yoruba.

Na África Ocidental, nomeadamente em países como a Guiné Conacri, Costa do Marfim e Senegal, registaram-se igualmente invenções de sistemas gráficos.

Em princípios de 1950, Souleymane Kante inventou uma escrita que comportava 18 consoantes, 7 vogais e 8 símbolos acessórios. Era utilizada para a fixação de textos da literatura oral. Entre 1951 e 1966, Oumar Dembélé criou um alfabeto do povo Dita

(31)

17 (Fulani) da Guiné constituído por 31 consoantes e 7 vogais, incluindo 1 símbolo para sons nasais. Antes de 1964, Adam Ba inventou um alfabeto para a língua fulani, contendo 19 consoantes e 6 vogais.

Na região do Corno de África surgiram dois tipos de escrita para a língua somali. A primeira, criada em 1920 por Isman Yusuf Kenadid, foi o far somali que era constituído por 19 signos consonânticos e 8 vogais, além de outros signos representativos de sons de acordo com o lugar dos sons nas palavras. Por volta de 1967, eram milhares os seus utilizadores. Em 1933, uma outra escrita foi inventada por Sheikh Abdurrahman Sheikh Nur. Tratava-se do gadabuursi, constituída por 21 consoantes e 10 vogais. Entre 1940 e 1965 muitas outras foram inventadas. No entanto, em 1972, com a introdução de uma ortografia unificada, assente na escrita alfabética latina, aquelas invenções foram sendo abandonadas” (Kandjimbo, 2003:123–126)

A arte, assim como a língua, não é estática. Ambas estão em permanente evolução e invenção. A história da teoria e da filosofia estéticas, bem como a história da crítica de arte, mostra-nos que o juízo estético e as ideias sobre arte têm sempre um certo grau de contingência, e que diferentes épocas e diferentes sociedades pensam a arte de formas bastante distintas. Não existem teorias absolutamente certas nem absolutamente erradas. Apesar disso, a crítica do funcionalismo moderno foi eficaz o suficiente para garantir que as teorias de caráter funcionalista da arte fossem reconhecidas pela sua amplitude reduzida e pela sua ação reducionista. A arte comporta mais do que o cumprimento de uma função ou missão. Se assim não fosse, nada separaria, por exemplo, a arte das propagandas política ou religiosa.

A articulação entre funções práticas e funções estéticas é uma das questões mais revelantes da história da arte ocidental, no entanto, esta articulação não está ausente – e nem sempre representa um conflito – quando nos posicionamos na perspetiva de registos artísticos não-ocidentais.

Da estetização dos objetos de funcionalidade prática resulta a configuração de uma matriz de caráter dúplice a partir da qual é considerada a convergência do caráter artístico e funcional.

Na visão africana, o ato estético é corroborado pela ação utilitária. Esta preocupação de esteticizar os objetos práticos não se antagoniza com a noção do belo que o povo africano tem, nem reduz os efeitos artísticos do objeto, ou seja, o uso prático de uma obra de arte em nada diminui as suas qualidades artísticas. É, pois, pela relação propositiva e dialética entre a “utilidade” e a “esteticidade” que a arte sona se sinaliza

(32)

18 como uma prática conjuntiva e aglutinadora. “Todas as vezes que somos levados a qualificar uma cultura humana de inerte ou estacionária, devemos […] perguntar-nos se este imobilismo não resulta da nossa ignorância sobre os seus verdadeiros interesses.” (Lévi-Strauss, 1952:50). É esta ignorância que deve ser combatida; e, em nossa opinião, a produção artística, ou estética, contitui um campo privilegiado para a desmantelar e para promover uma perspetiva de compreensão e abertura.

No caso da cultura africana, a arte não reside unicamente na contemplação passiva do objeto de arte. Pelo contrário, ela é convocada a participar na vivência quotidiana dos indivíduos. Desenhos, máscaras e outros tipos de objetos estéticos carregam uma dimensão de signo. Cada signo simbólico é indistinto das palavras. Neste contexto, podemos adotar o ponto de vista defendido por Michel Foucault quando nos diz que: “Do passado caligráfico que me vejo obrigado a lhes supor, as palavras conservam sua derivação do desenho e seu estado de coisa desenhada: de modo que devo lê-las superpostas a si próprias; são palavras desenhando palavras.” (Foucault, 1988:25). A obra de arte transforma-se, assim, num instrumento adjuvante da experiência humana, construtivo e propositivo.

Sobre a não separação entre o lado prático da vida e o lado estético, nem uma abordagem funcionalista, nem uma abordagem formalista podem explicar o grafismo sona. Função e forma codeterminam-se, harmonizam-se. A arte, a literatura, o sentido lúdico da poesia tem um impacto na existência quotidiana dos indivíduos. Um dos aspetos fundamentais da arte africana é esta simultaneidade de função e formação estética, que, no Ocidente, tem sido consideravelmente mais conflituosa. O pensamento de alguns povos africanos é caracterizado segundo a lógica da similaridade: o mundo está interligado com tudo o que nele reside, e todas as partes se relacionam com o todo.

No entanto, é possível afirmar que, até certo ponto, esta possibilidade se mantém sempre em aberto para o leitor/espectador do objeto artístico. A arte africana oferece-nos um exemplo de como o comportamento do olhar é determinante para a perceção da arte. É algo semelhante ao que nos indica Michel Foucault quando diz: “Para que o texto se desenhe e todos os signos justapostos formem uma pomba, uma flor ou um aguaceiro, é preciso que o olhar se mantenha acima de toda a decifração possível; é preciso que as letras permaneçam pontos, as frases, linhas, os parágrafos, superfícies ou massas — asas, caules ou pétalas; é preciso que o texto não diga nada a esse sujeito «olhante» que é voyeur, não leitor. Com efeito, desde que ele se põe a ler, a forma se dissipa.” (Foucault, 1998:26-27).

(33)

19

2.

Sonagismo ou a simbolização do real

Os poemas são arte escrita no papel branco sem cores e com letras repetidas, mas um poema pintado tem vida, cheiro e movimento também... (Malangatana, apud Guedes, 1996:7)

Não limitamos a nossa pesquisa a um estudo comparativo entre a poesia visual europeia e a prática sona, nem tão-pouco pretendemos realizar um inventário das diferenças e das aproximações; pretendemos, sim, demarcar-nos dos paralelismos, para nos focarmos no que ambas as expressões traduzem. São modos de poesia diferentes, mas conciliáveis.

Os desenhos sona pertencem à natureza mágica da poiesis6. Decorrem da ressemantização e transfiguração da identidade cultural do povo Tshokwe7. São construções imaginativas que encontram referências simbólicas que os ligam à comunidade.

Trata-se de uma poesia socializada compreendida no horizonte da comunidade. Através do recurso a símbolos visuais, o desenho é elevado à categoria de homólogo da palavra e, assim, cada “palavra” é moldada por vários “empréstimos metafóricos”. Essa categorização só acontece mediante um acordo entre os utentes da comunidade. Esta ideia parece-nos estar implícita nas palavras de Gombrich quando nos diz, a propósito da preservação dos hábitos e costumes de determinados povos: “A arte primitiva funciona justamente de acordo com essas normas preestabelecidas, mas permite ao artista margem bastante para que mostre sua índole.” (Gombrich,1979:23).

Socorrendo-nos do argumento de Stanley Fish, que defende que o ato da literatura não é forçado por algo existente no texto, diríamos que a poesia que se perceciona na arte sona emana de um consenso coletivo. É a participação ativa e, sobretudo, significativa dos membros da comunidade que decide o que os desenhos devem narrar. Segundo a perspetiva de Mário Fontinha: “Os Quiocos passam horas ilustrando suas conversas com desenhos no chão, relacionados com lendas, animais,

6 Entendemos a poiesis no sentido Aristotélico que a faz corresponder à “actividade transitiva visando um fim, ou a produção de uma obra, distintos do agente ou da própria operação” (Borges, P. A. E, in Logos - Verbo Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, 1992).

7

Utilizamos a designação na aceção proposta por Mário Fontinha, no seu livro Desenhos Na Areia dos

(34)

20 adivinhas, símbolos e jogos. Constituem esses motivos divertimento e passatempo favorito, além de ser uma curiosa forma de comunicar com a comunidade relembrando feitos e tempos passados.” (Fontinha, 1983:37).

Esses desenhos são (ou eram) geralmente feitos no chão, sobre a areia. Daí que os possamos denominar de poemas arenosos ou movediços. As palavras, os símbolos, tornam-se palpáveis, táteis ou, dito de outro modo, “sensoriais” na medida em que se estabelece um contacto físico entre o poema e o seu executor. Por isso, de certo modo, o grafismo sona, além do sentido experimental, adquire uma dimensão performática que nos confere uma boa base para a criação artística de vanguarda angolana.

Abreu Paxe, ao referir-se aos desenhos na areia e à sua relação com a escrita, diz-nos: “A escrita como visualidade nos aproxima também das artes visuais e das experimentações das vanguardas. [...] as fronteiras entre o que é escrito e o que é visualidade são elididas.” (Paxe, 2016:24).

Os símbolos dos desenhos sona correspondem àquilo que traz à presença as palavras arenosas, são poemas movediços desenhados na areia, movediços por não estarem fixos num suporte transportável, desenham-se, apagam-se e (re)desenham-se sem moldes definitivos, fruto de imagens mentais que se materializam na areia. Não há esquemas previamente elaborados. A visualidade dos símbolos converte-se em índices de figuração, diríamos que se trata de um grafismo pensante.

Nas palavras de Teresa Pereira: “A estrutura destes desenhos diagramáticos é baseada num articulado formado por pontos alinhados perpendicularmente, equidistantes entre si, que definem as proporções da forma – e por linhas contínuas que os circundam e definem a configuração da figura representada, desenhadas de forma contínua, sem interrupções, variando em complexidade, mas apresentando uma regularidade e um equilíbrio formal fundados nas relações de simetria” (Pereira, 2011:179).

Geometrizar a poesia e sintetizá-la em sinais gráficos equivale a uma procura. A procura da linguagem prístina e primordial, liberta de uma estrutura fixa e de sentido único. Os sona são poemas através de imagens, imagens que tornam possível a plurissignificação da linguagem primordial. Uma linguagem anterior às significações literais. O mesmo é dizer que, não obstante tratar-se de um ato não intencional ou consciente, criaram algo semelhante a “um modelo representativo do discurso poético em que a formação de um significado interessa menos que o próprio ato de significação que o determina” (Martins, 1983:51).

(35)

21 A comunicação só é possível mediante um acordo, um contrato, uma convenção que se estabelece entre os membros da comunidade. É preciso dar sentido aos sentidos que damos às coisas antes ainda de as imaginarmos. Há uma atribuição de existência, e o que não era poema adquire traços poéticos convertendo-se assim num repertório de possibilidades, diversas interpretações numa dimensão que a ultrapassa ou que lhe é exterior. A diferença, se é que existe, reside na questão de sabermos como atribuímos significado à arte ou a reconhecemos, se a sua existência como tal varia de acordo com a amplitude do contexto cultural em que nos encontramos. Só assim se pode compreender, por exemplo, que um texto visual isento de palavras possa ser considerado poesia no Ocidente e uma manifestação de valor idêntico possa não ser assim considerado, pois “diferentes culturas comportam diferentes interpretações do saber e da posição do saber dentro da cultura”. (Gonçalves, apud Xavier, 2001:73).

O processo de criação nem sempre tem de ser um ato individual e isolado. A obra de arte, apesar de nela estar intrínseca a visão individual do seu autor, é quase sempre produto de uma convenção de gosto, de um determinado estilo corrente, de uma tradição da técnica ou da forma. O autor está “livremente condicionado” ao contexto cultural, está ancorado à sua capacidade criativa, confinado em determinadas convenções do seu tempo, do seu povo e do seu próprio poder imaginativo. Há sempre uma tendência subjacente à obra de arte, por mais estranha, inusitada ou nova que seja. O artista, por mais inventivo e individual que seja, é corpo de um corpo maior que o domina e do qual só pela arte consegue escapar.

A prática visual sona está para além da sua funcionalidade, ultrapassa a intenção dos seus autores (que geralmente estão entre o próprio povo), para se posicionar mais além, muitas vezes só percecionado por quem está em comunhão com os costumes e práticas do grupo; ultrapassa o conceito de poesia, não porque lhe seja superior, mas porque ganha autonomia própria.

A aquisição de autonomia da arte africana, aqui em especial da arte sona, possibilita ampliar o diálogo com os sistemas de significação europeus e, por sua vez, afirmar-se como arte legítima e não apenas como uma expressão artística secundária e subalterna. Urge, assim, integrar a arte sona num campo de possibilidades mais vasto que o campo do etnocentrismo. Ora, conforme já foi mencionado, os desenhos sona ostentam a dimensão lúdica e espiritual como instâncias centrais da poeticidade nela contida. É difícil percebermos qual das dimensões melhor a identificam.

(36)

22 Porém, para entender os ideogramas sona como poesia visual, é necessário abordar a arte por caminhos não dogmáticos, mesmo quando o nosso modo de percecionar o objeto artístico não se mostre em consonância com a perceção dos outros. Para o povo Tshokwe, o desenho faz-se poesia pela espiritualização que lhe vem do interior. As suas características essenciais apontam não para um sistema linguístico-literal, mas para o caminho simbólico que apela à experiência da poesia em si. O poema, a poesia, é o modo de estar dos membros da comunidade.

Ora, como temos vindo a referir, o impulso subjacente ao grafismo sona não é essencialmente estético, apesar da sua esteticidade. O grafismo sona radica na articulação entre a necessidade de preservar a memória cultural e a necessidade de manifestar a experiência do mundo pela apropriação de uma linguagem visual significante (e significativa). Uma linguagem que se apresenta como signo de uma prática representativa do discurso poético que descreve o mundo através de símbolos nem sempre nomeados ou traduzíveis fora do contexto cultural africano (angolano), porque, ao contrário do que sucede na visão eurocêntrica da arte, se referem às práticas que materializam o “afeto coletivo” do grupo. Este processo, por sua vez, faz com que cada membro, no espaço de comunhão, amplie as possibilidades do seu poder inventivo no universo partilhado.

Nos dias de hoje, em certa medida, ainda se vê a arte africana como o resultado de uma criação pouco evoluída. Não obstante, a opinião dominante presume que é pouco provável, já que não há poesia onde só há grafismos, garatujas, mas pode haver poesia onde há poiesis.

A poesia visual atual, ao recuperar os mesmos modos de execução da tradição, não apenas barroca, mas também pelo recurso a alfabetos arcaicos ou primitivos, aproxima-se de um vasto panorama de textos figurados e poemas-objetos como, por exemplo, os haikai da China.

Não deixa de ser curioso constatarmos que a arte atual tenta um retorno às origens, ao estado primitivo – no sentido de estado de nascença, fundador e seminal; um primitivismo eloquente, capaz de imprimir modernidade à sua criação e à sua leitura. A racionalização vai dar lugar a uma necessidade de recuperação da espiritualidade supostamente recalcada no inconsciente. Assiste-se, ainda, a uma predominância da experiência sobre o saber intelectualizado da arte através de simplificações esquemáticas.

Imagem

Figura 1 – Fontainha, 1983:187
Figura 2 –À esquerda, Fontinha 1983:161. À direita, Fontinha 1983:291.
Figura 3 - À esquerda, Fontinha 1983:251. À direita, Fontinha 1983:173.
Figura 4 - À esquerda, Fontinha 1983:225. Ao centro, Fontinha 1983:227. À direita, Fontinha 1983:131
+7

Referências

Documentos relacionados

A presente exposição abrange o período em que esteve associado ao coletivo da Poesia Experimental Portuguesa (PO.EX) nos anos 1960, que abordava a poesia como discurso visual e um

Segundo Max Weber, a característica da burocracia é que a autoridade é investida não em pessoas, mas em escritórios (bureaus). Os superiores devem ter uma boa compreensão

A dose de propofol de 20 mg/kg que foi testada é recomendada para procedimentos clínicos e coletas de amostras biológicas em Lithobates catesbeianus, visto que

Desenvolvimento da motricidade fina e grossa, coordenação motora criatividade e trabalho de grupo. 50% dos idosos aderem à

(2019) Pretendemos continuar a estudar esses dados com a coordenação de área de matemática da Secretaria Municipal de Educação e, estender a pesquisa aos estudantes do Ensino Médio

Este banho é apenas o banho introdutório para outros banhos ritualísticos, isto é, depois do banho de descarrego, faz-se necessário tomar um outro

Em relação às medidas de concentração e velocidade com qualidade, os resultados mostraram que houve correlação significativa com o Teste de Concentração, embora não tenha

Este estudo tem como objetivo avaliar a influência do efeito de esteira no campo de velocidades e na EAG (Energia Anual Gerada) por um conjunto de turbinas localizadas em um