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Intervisualidade: África e Europa

Figura 5 - À esquerda, Fontinha, 1983:225. À direita, Poema concreto, ideograma de Melo e Castro, 1972:65.

“Costuma dizer-se: contra factos não há argumentos. O contrário, porém, é que acontece: os factos que não se enquadram na nossa cultura, nós não os vemos” (Gonçalves, 2001:73). Aquilo que caracteriza o grafismo sona é precisamente a aceitação de que o homem está em ininterrupta relação com o todo, ainda que as interações possam não ser evidentes. O invisível e o visível, o espiritual e o material, o passado e o futuro, a escrita e a leitura.

A escrita e a leitura permitem-nos hoje mergulhar nos arcanos imemoriais do passado e da história. Enquanto meios, permitem refutar verdades que se pretenderam absolutas, foi o caso do filósofo alemão Hegel que, com a sua introdução à Filosofia Universal, sustentou não haver História em África. (Kandjimbo, 2003:122)

No século XIX, o continente africano encontrava-se desprovido de um sistema de escrita ou leitura. Esta foi a época em que Hegel defendeu o pensamento de que “[N]os negros, o característico é que a sua consciência ainda não chegou à intuição de qualquer objectividade firme como, por exemplo, Deus, lei, na qual o homem estaria com a sua vontade e teria assim a intuição da sua essência.” (Hegel, 1995:180).

O sistema colonial vigente na época, por seu turno, não favorecia a emancipação dos povos africanos. Sem meios de escrita, a comunicação ocorria primordialmente por via da oralidade. Tal como assevera o filósofo angolano Muanamosi Matumona, “[A] tradição oral é uma marca forte da cultura tradicional africana, pois representa um

38 património, sendo, assim, um elemento de referência que influencia o modo de ser, de estar e de pensar do negro-africano” (Matumona, 2011:32).

Sem recurso à escrita13, a poesia era transmitida sob a forma de aforismos, máximas de sabedoria, provérbios tradicionais ou contos. Através da arte, o Homem começou a interrogar o mundo e procura o sentido da sua aparição neste, independentemente da cultura na qual se encontra inserido.

Na realização artística sona, não há uma redução do produto artístico à sua dimensão narcísica, ou seja, individual, contemplativa. A poesia, o produto artístico é, ao mesmo tempo, uma cerimónia mágica, refletindo a Natureza, a terra, o céu, os animais, as forças invisíveis, magicamente ritualizadas. As regras pelas quais os desenhos sona se regem são previamente determinadas pela comunidade. Os desenhos sona incorporam objetos que não ocupam lugares fixos e que podem ser artísticos ou não, pois “cada objeto de arte africana tradicional vale pelo seu significado profundo e não por aquilo que pode representar de imediato” (Lima, 1981:18). Muito embora tenham conteúdos diferentes, a prática sona e a poesia visual não se anulam nas suas diferenças. Partem delas para uma dependência recíproca no que diz respeito à forma. Apesar dos aspetos comuns entre os ideogramas sona e a poesia visual europeia, as motivações são diferentes. Nos desenhos sona não há utilização de técnicas escolarizadas. Visam representar mais do que expressões emocionais – visam representar o pensamento coletivo.

Embora possamos associá-las a uma modalidade discursiva gráfico-poética, afigura-se-nos que estabelecer um paralelismo entre dois modos de expressão cultural que poderão ter algumas semelhanças visuais poderá ser uma análise algo superficial. É que apesar de ambas se movimentarem num território comum, cada uma tem a sua própria linguagem e surgem em contextos culturais e artísticos diferentes e com motivações diversas.

Há, no entanto, semelhanças entre a arte africana e a arte europeia, ecos e ressonâncias diversas. As máscaras africanas, embora remetidas para um plano secundário, de menor relevo, tornaram possível ou, pelo menos, incitaram o pensamento artístico europeu, abrindo novos horizontes no estilo inventivo dos artistas europeus que tiveram contacto com a arte africana, como é o caso de Picasso. No entanto, no

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Para o povo Tshokwe a palavra escrita é parte intregrante da comunidade. A poesia, os contos, os provérbios ou aforismos existem para serem celebrados, oralizados e narrados.

39 Ocidente, o grafismo não foi considerado objeto artístico porque tem uma função definida, uma utilidade prática e funcional.

É necessário apreender o grafismo sona, não a partir dos elementos simbólicos que constituem a arte ocidental, mas a partir de si mesmo. Paul Zougrana destaca esta ideia ao afirmar que: “o nosso desejo é o de associar a herança cultural africana, que durante demasiado tempo foi incompreendida e rejeitada. Longe de ser um esforço superficial ou folclórico para reviver algumas tradições ou práticas ancestrais, é uma questão de construir uma nova sociedade africana cuja identidade não é conferida pelo exterior” (Paul Zougrana apud Mudimbe, 2003:87).

A história da arte é governada pelo princípio de que todos os diferentes estilos históricos são de igual valor, isto é, têm um direito igual a serem reconhecidos e uma igual possibilidade de apreciação [...] ou mesmo de serem simplesmente considerados segundo uma perspectiva nova e um espírito sem preconceitos. (A. Hauser, 1978: 262)

Lutar pela descolonização artística é também universalizar o espaço da arte, é congregar diferentes saberes e múltiplas expressões numa só unidade. A este propósito, Victor Correia coloca a questão da seguinte maneira: “se um índio da Amazónia for para a Europa e pintar paisagens europeias ao estilo indígena, passa a ser arte europeia, ou continua a ser arte indígena? Picasso, mesmo nunca tendo ido a África fez obras de arte com máscaras e esculturas africanas. Essas obras de Picasso, são arte africana?” (Correia, 2015:43).

Existe, porém, uma fronteira flutuante e não estanque a delinear a prática sona e a poesia visual. As possibilidades das formas linguísticas entroncam numa espécie de ligação ancestral entre a Europa e África. Há uma prática comum de condensação da informação que aproxima o grafismo sona à poesia visual. Por contágio direto ou indireto, ou mágica prestidigitação, deparamo-nos com afinidades coletivas e simetrias visuais. Embora existam traços estéticos que aproximam o grafismo sona à produção visual ocidental, há uma certa resistência em entendermos a sua dimensão artística como tal, em pé de igualdade com outras manifestações com maior circulação e popularidade.

Não é a razão que avalia a poesia. É a poesia que, desprovida de razões, se avalia a si própria. Nasce do in-criado que brota do nada para ser tudo; de um tudo com significado próprio, que se contrapõe à razão e se abre à força imaginativa do homem. A

40 prática sona situa-nos perante uma modalidade de poesia que não é o resultado de um sistema, mas é sim, ela própria, um sistema aberto algo semelhante ao que Castro e Hatherly chamam de “texto-não-texto”. (Castro, Hatherly, 1995:228).

Na mesma obra, estes autores defendem a ideia de que a linguagem poética ultrapassa realmente a palavra, mesmo quando o conceito desta é abrangente, ultrapassando os padrões. É por isso que a poesia se revela mais sensível, mais subjetiva, como se nessa “obscuridade” residisse a multiplicidade de leituras, tantas quantas os leitores que se disponham a desocultar, a decifrar, em liberdade criativa e interpretativa, aquilo que foi criado, nunca “dito”. Parece-nos importante considerar aqui as palavras de António Ramos Rosa quando nos diz que: “O artista moderno já não aceita nenhuma determinação, já não é o eco, o porta-voz, o reflexo de nenhuma ideologia, religião ou partido – é ele próprio, um homem nu, essencial, um nada e um tudo, um tudo-nada, procurando-se, refazendo-se, desfazendo-se refazendo-se, sempre segundo este espírito experimental: o espírito da liberdade, o espírito da procura. Em vão se procurará subestimar esta liberdade: ela é o próprio espírito da nossa época, o único estatuto do poeta. Não se trata de um mito – ou será, antes, o único mito válido e fecundo do nosso tempo –, porque é por ela que o poeta se assume ante o descalabro de todos os mitos desumanizantes. Esta liberdade não lhe pertence em exclusivo, é pertença de todos os homens humanizados, embora a maioria destes não possua ainda os meios de a reconhecer, reconhecendo-se nela.” (António Ramos Rosa, Crise-

Experimentação-Liberdade, em Hatherly, Castro, 1981:50).