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2. Sonagismo ou a simbolização do real

2.1 Da sonagia à poesia visual

A história da imaginação dos povos, ela é também e sobretudo a história do seu vocabulário. (Steiner apud Hatherly, 1979:108)

No imaginário mítico africano convergem realizações poéticas que nem sempre concebem a obra poética da mesma forma que no Ocidente. No caso de Portugal, torna- se cada vez mais importante abrir perspetivas sobre a arte não-ocidental,

25 particularmente os exemplos africanos, dado o passado colonial do país, e também dada a coexistência de comunidades ocidentais, mas também africanas, no espaço português. Segundo Kandjimbo: “A falta de conhecimento dos angolenses e o não saberem alguns europeus os idiomas africanos, é que faz com que se desconheça muita coisa que esta província tem de notável.” (Kandjimbo, 2003:240).

A poesia visual fornece um campo de contacto entre uma realidade ocidental, especificamente portuguesa, e esta prática angolana. Independentemente das diferenças de conteúdo entre a poesia visual e os desenhos na areia, há elementos comuns que perpassam as realizações artísticas de ambos os territórios. Além das afinidades formais, constatamos, em ambas as expressões, a não utilização de recursos exacerbadamente emocionais. O foco prende-se na forma, no desenho, nos signos visuais, porque é neles e por meio deles que o olhar é captado.

Podemos dizer, usando uma metáfora de largo escopo, que a poesia visual em Angola começou com povos pré-históricos, com as gravuras do Tchitundu-hulu e outras da mesma era. (Francisco Soares, 2014)

É certo que a carga semântica dos desenhos poético-visuais-sona – ou numa só palavra os sonemas8 – se afirma, na sua totalidade, pela expressão formal. A suposta ausência de referentes fenomenais ligados à dimensão emocional da experiência humana não esvazia nem esgota a capacidade de comunicar dos desenhos sona. Os signos visuais funcionam como vocábulos combinados integrados no universo simbólico do desenho. Não nulificam a mensagem, a comunicação: pelo contrário, a carga da mensagem é reforçada pela capacidade imaginativa dos elementos da comunidade que leem uma história, um poema, um conto ou provérbio num só desenho. Alberto Pimenta, poeta português, também ele frequentemente ligado ao movimento da Poesia Experimental, diz: “A arte poetográfica é uma arte através da palavra, porém na qual o indivíduo rompe as fronteiras semânticas. É uma arte na qual o indivíduo destrói o sentido que a sociedade total atribui a si mesma, para encontrar deste modo o seu

8 Confrontados com a necessidade de formular uma designação que identificasse cada composição da arte sona, ou seja, a necessidade de darmos um significado ao seu significante, sonema surgiu espontaneamente como a proposta mais adequada. Note-se que, ao desbravarmos um caminho novo torna-se necessário dar nomes às pedras que vamos encontrando, pois são elas que irão sinalizar, como pedaços de pão, o caminho de regresso. Portanto, criar a partir do que ainda não tem existência, quer dizer, a partir do “não-ser” é, paradoxalmente, uma forma de fazer o ser aconte-ser. Assim, os sonemas deverão constituir uma noção alargada de poema.

26 sentido individual na afirmação sem limites da presença do seu corpo no mundo” (Pimenta, 1978:104).

Esta noção de uma “presença do corpo no mundo” é importante quando estamos perante uma modalidade de poesia em que o conteúdo é indissociável da forma, como é o caso da poesia visual. Mas o grafismo sona tem também alguns pontos de contacto com esta ideia. Os arranjos geométricos sona pressupõem um modo coletivo de pensar o mundo. Porém, esse modo coletivo de pensar comporta o pensar individual de cada membro. É uma prática pluralmente singular. Traduz a realidade da comunidade de um modo sintético e aforístico, fornecendo tanta informação como se fosse uma frase ou texto. O que nele podemos encontrar é, antes de mais, não um mero simulacro da palavra, mas o conhecimento vivo do mundo que secretamente habita o ser humano.

Por via da analogia, é possível construirmos uma senda relacional e de aproximações. Desta forma, a sonagia9 aproxima-se do universo da poesia visual, e uma componente “textual” começa a surgir através das múltiplas possibilidades simbólicas dos signos gráficos. Ernesto de Sousa refere que: “Muita gente ignora, ainda hoje, que a arte dos negros é algo mais que simples curiosidade exótica; é original, variada e tão profunda que pôde inspirar grandes artistas e escolas de arte europeias. Esse desconhecimento é consequência, não só da geral falta de educação artística, como também do preconceito, não menos geral, da inferioridade do negro.” (E. de Sousa apud Pereira, 2011:261).

De acordo com esta ideia, podemos asseverar que o fazer poético dos desenhos sona, tendo como suporte predominante a areia, não tem um lugar fixo ou um caráter definitivo. Também são realizados nas cabaças, tambores, costas de cadeira, cachimbos, nas paredes das casas, no corpo, em madeira, em cerâmica, em ráfia, em ferro, nas rochas que configuram a arte rupestre do leste de Angola. São imagens que se revestem de nudez, que se revelam e desvelam deixando sempre um espaço ao (im)previsível, à latência, à ocultação. O grafismo narrativo sona representa um código restrito que assenta em significados partilhados, comunicados por via de uma imagem narrativa e simbólica. Condensa o pensamento verbal através da geometrização num processo

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Designação criada por nós para identificarmos o processo através do qual os desenhos sona são elaborados. Poderemos usar este vocábulo com vários sentidos, assim, mais do que representar o processo através do qual são elaborados os desenhos sona, a sonagia corresponderá à arte ou à habilidade de desenhar poeticamente a realidade e fixá-la de um modo estético em determinados suportes, como, por exemplo, na areia. Assim como a poesia representa um género literário, a sonagia corresponderá a um género poiético-visual.

27 semelhante ao descrito por Vilém Flusser: “as imagens são mediações entre o homem e o mundo. O homem «existe», isto é, o mundo não lhe é acessível imediatamente. As imagens têm o propósito de lhe apresentar o mundo. [...] O seu propósito é serem mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver o mundo em função das imagens.” (V. Flusser apud Baptista, 2009:67).

Ao mesmo tempo, dado o seu enraizamento na tradição, o desenho sona permite- nos constatar como os antepassados encontraram forma de transfigurar a realidade. Uma das singularidades dos sona é servir de mapa do passado ou um espelho retrovisor daquilo que é a herança deixada pelos habitantes mais velhos.

Ao fazer um contraponto entre a sonagia e a poesia visual, é importante não operar uma absorção de um pelo outro – o que implicaria, necessariamente, uma perda da realidade da parte absorvida. Pelo contrário, trata-se de usar o terreno comum do grafismo narrativo ou significativo como ponto de partida para uma observação, quer do desenho sona, quer da poesia visual, inquirindo até onde este terreno comum nos permite subverter os signos através dos quais compreendemos e concetualizamos o mundo, nós mesmos e os outros. Aqui, parece-nos oportuno lançar um convite às palavras de Saramago: “A vida, que parece uma linha recta, não o é. Construímos a nossa vida apenas nuns cinco por cento, o resto fazem-no os outros, porque vivemos com os outros e, por vezes, contra os outros. Mas essa pequena percentagem, esses cinco por cento, é o resultado da sinceridade consigo mesmo.”10.

Esta ideia ganha uma pertinência redobrada quando temos consciência de que a hegemonia das realizações artísticas dos países com maior poder simbólico (e obviamente económico) tendem a menosprezar ou branquear a arte dos povos menos desenvolvidos economicamente. Nesse sentido, é importante não classificar os ideogramas sona segundo o que eles têm de similar com a arte ocidental, mas segundo o contexto em que eles são produzidos. Por outro lado, sancionar uma expressão artística como não-arte por não usar um discurso universalizado ou pelo facto de os seus próprios criadores não conceberem o seu trabalho da forma que os artistas ocidentais o concebem, faz pouco sentido numa era pulverizada por formas de criação artística em que a subversão e a recusa da norma tendem a ser valorizadas.

10 Entrevista de Ima Sanchís em 1 de setembro de 1997, Barcelona, em La Vanguardia. (Fundação José Saramago – sítio eletrónico)

28 O contexto e os modelos a partir dos quais avaliamos uma obra interferem na legitimação dessa mesma obra como arte ou não arte. Aquilo que aceitamos como obra de arte depende das premissas que temos acerca da arte mediante o modelo que nos é familiar. Nesse sentido, a reavaliação de formas de arte não-ocidentais, bem como de arte não escolarizada, assume uma feição importante, pois não apenas multiplica o nosso campo de perceção sobre arte, como nos permite explorar de forma mais livre o registo antropológico, ganhando uma noção mais alargada daquilo que é a arte em diferentes contextos.