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Grafismo Poesi-ente ou a experiência originária da palavra

6. Desenhalidades – Escritores visuais – Desenhar como quem escreve

6.3 Grafismo Poesi-ente ou a experiência originária da palavra

O desafio está, neste vaivém tensional entre a arte e o seu comentário, em procurar, argumentadamente alargar a nossa compreensão mesmo do que não é claro, tentar dizer o mais possível desse próprio indizível, que no entanto reconhecemos, mesmo sem o conhecermos. (Monteiro,1996:293)

Partindo da reflexão em epígrafe, podemos afirmar que a sonagia é um corpo indizível que reconhecemos, mesmo sem o conhecer. Enquanto signo pré-verbal, cabe dizer que é um ente pouco claro, aliás, para sermos mais precisos, incapturável e insondável. É a forma escrita de um discurso silencioso que, aparentemente, abdica de

59 um sentido sem, no entanto, renunciar “ao acto lúdico de descoberta, de sondagem e comunicação” (Hatherly,2001:8) que nele, sistematicamente, se configura.

Portanto, o grafismo sona, não sendo uma expressão muda, contém outro aspeto que nos parece importante ressaltar para uma cabal apreensão do mesmo enquanto ato

poiético, e que é a sua vertente experimental profundamente ligada à experiência. É uma

prática poiética que se propõe como acontecimento coletivo. Mais do que obra de arte, é obra de cultura, é um ato que antecede o próprio conceito de obra de arte. Vive dentro do corpo social, no interior da comunidade. Digamos que é uma experiência pré- concetual, um “pré-curso”, manifestação que antecede o conhecimento atual que temos da arte, que nos pré-existe.

O nosso entendimento de Prática Poesi-ente exerce-se pela designação da prática em que o “ente” ainda não encarnou o signo linguístico, isto é, é uma prática que, não sendo expressa por signos linguísticos, é, no entanto, o ponto de partida para a existência concreta e plena do signo. A Prática Poesiente é aquela em que, ontologicamente falando, a poesia ainda estaria em estado “bruto” (primitivo?), num estado naturalista e pré-concetual. Seria uma prática em potência22, aspirando (e esperando) a revelação, a totalidade, ou seja, no essencial, seria a essência. O que ainda se encontra em poesiência, gestação e tende a transitar para o ato, ou apanhando o tecido das palavras de Sophia de Mello Breyner Andresen: “O artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética” porque, continuando à boleia nas palavras da autora, “o artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia à qual está consusbtancialmente unido” (Sophia de Mello Breyner Andresen citada em Reis, 2005:109).

O grafismo sona é uma “não-poesia”. No entanto, essa poesia que não é poesia é, paradoxalmente, uma condição de possibilidade do signo poético, ou seja, veículo da sua manifesta-ação. É uma ausência “grá-vida” da sua própria presença, ou seja, do seu significante.

O movimento fundamental pelo qual o signo surge (ou se insurge?) do não-ser para a existência, ato que aponta o caminho sem, no entanto, nele se aventurar, é a transformação do vazio, lugar onde acontece a criação, numa presença significante, ou

22 São vários os significados de “potência”; no entanto, optamos por nos focar no que, segundo Aristóteles, se refere ao poder que uma determinada coisa tem de provocar ou desencadear uma mudança noutra coisa. Ou seja, segundo Aristóteles, no sentido que a nós nos interessa destacar, a “potência” seria a tendência ou a potencialidade dos desenhos de areia passarem à poesia, à escrita, à linguagem verbal.

60 seja, a linguagem é, antes de mais, um arrancar ao silêncio respostas concretas para a vida humana. É o que, ainda não sendo claro, iluminado, esclarecido, dá à luz o ser, a existência, a poesia, porque o signo, a palavra, predomina como um segredo inescondível.

Esta ideia remete-nos para as palavras de Maurice Denis: “Um quadro – antes de ser um cavalo de combate, uma mulher nua, ou uma qualquer anedota – é essencialmente uma superfície plana recoberta de cores dispostas numa certa ordem” (Denis apud Júdice, 2005:134).

A poesia antes de ser poesia é qualquer coisa simulada de poesia. “Vai e vem tensional” entre o que está por se realizar e o que está realizado, pronto e pleno. No grafismo poesiente, a poesia está num estado latente, concentrado e em potência, ou, por outras palavras, em poesiência, e, portanto, sempre em véspera de se transfigurar em ato, linguagem, presença visível. Platão continua a ser muito útil ao afirmar que: “A ideia de criação ou poesia é algo de muito amplo, pois toda e qualquer passagem do não-Ser ao Ser se efetua por um ato de criar; de tal sorte que, mesmo as obras produzidas na totalidade dos ofícios são criações, como criadores ou poetas são todos os seus artífices. [..] Entretanto, não lhes chamamos poetas e damos-lhes, sim, outras designações. Apenas uma parte delimitada do acto de criar (a que se liga às artes ao ritmo) recebe o nome do todo” (Platão, 2010:178).

6.4

“De-grau zero da poesia”

Quando a linguagem poética põe radicalmente a Natureza em questão, pelo simples efeito da sua estrutura, sem recorrer ao conteúdo do discurso e sem se deter na pausa de uma ideologia, já não há escrita, há apenas estilos, através dos quais o homem se volta completamente e enfrenta o mundo objectivo sem passar por nenhma das figuras da Hitória ou da sociabilidade. (Barthes, 1997:46)

Encontramos a ideia de “grau zero da escrita” expressa no pensamento de Roland Barthes, na defesa de uma “escrita branca”, ou seja, uma escrita neutra, livre de qualquer sujeição literária. Por grau zero da poesia entendemos o estado poiético em que o homem desprovido de qualquer experiência ou contacto com aquilo que hoje designamos como arte dá o seu primeiro passo em direção a essa descoberta. É um estado poiético em que a poesia ainda é capaz de re-civilizar a humanidade, capaz de

61 resgatar, salvaguardando o que de humano, em nós, ainda existe. Corresponde a uma espécie de regresso à arte sem fabricação; “grau zero” no sentido de ser uma arte e/ou escrita que não participa de nenhum regime ou categoria, “uma espécie de língua básica, tão afastada das linguagens vivas como da linguagem propriamente dita” (Barthes, 1997: 64).

Grau zero da poesia corresponde, então, a uma prática “in-significante”, no sentido de ser algo que se abre à criação original e é o lugar de onde tudo emerge, onde tudo está ainda por ser, por se transfigurar num campo determinado.

A experiência estética, mesmo sem dela termos consciência, pois corresponde a uma (pre)disposição natural extensiva a todos os homens. É a poesia além da poesia, as palavras para lá do que significam, a manifestação poiética que não se limita à manifestação artística ou estética, mas engloba a íntima relação do homem com o mundo.

A poiesis é o ato através do qual o trabalho do homem produz a sua humanidade, dá-se à existência como autodidata e aprendiz do seu próprio “fazer”, ou seja, da sua própria auto-poiesis, criação, obra que é a própria vida que não pode ser sujeita ou limitada a leis que não sejam intrínsecas da sua natureza.

E sendo ela uma necessidade primordial do homem, deve movimentar-se para lá do que é admissível pelos cânones da arte. Deve ser reinvenção do mundo. A poesia é um caminho possível para se chegar ao sonho e é com ela que se prepara o futuro. Assim, também na prática visual dos sona ou nas “poemografias”23

se encontram incluídas, numa dialética narrativa, palavras, imagens e toda uma variedade de signos imagéticos que não se esgota, mas antes se alarga, criando, a cada instante, a possibilidade de humanização do homem que é, apesar de tudo, o que torna sustentável o absurdo de se estar aqui.

A arte começa na conversão ou tradução de um pensamento num objeto que pode ou não ter virtudes artísticas. Portanto, começa, não na obra acabada e pronta a ser

23

Sublinhe-se, que em Portugal, se destacou o movimento “PO.EX”, Movimento da Poesia Experimental Portuguesa, que exerceu a sua ação durante os anos sessenta e setenta, e do qual resultou uma grande obra de poesia visual intitulada Poemografias - título que convocámos para designar o nosso trabalho artístico. Em Poemografias destacam-se alguns nomes de autores consagrados, como, por exemplo: António Ramos Rosa, Herberto Hélder, Salette Tavares, Ana Hatherly e Melo e Castro. Manuel Frias Martins, fazendo uma abordagem acerca da obra num ensaio, afirma o seguinte: “A importância deste volume decorre, desde logo, da informação nele concentrada, isto é, no essencial, as razões estéticas que subjazem a uma produção artística caracterizada (ainda) pela sua estranheza ou pelo seu radical afastamento das estruturas habituais da ideologia literária.”(Martins, 2001: 228).

62 consumida, mas no pensar que o antecede, que o pre-vê e, sobretudo, pré-sente. O pensamento é, por excelência, um dos antecedentes sígnicos da poesia. É mediante o pensar que a poesia se projeta enquanto escrita, linguagem enquanto poesia, mesmo quando esse pensar não foi concebido com uma intenção estética. Esta ideia é reforçada se a cruzarmos com as palavras de António Damásio: “Se é verdade que a comunicação do pensamento só se faz através de uma linguagem, se é verdade que, dessa articulação, resulta uma síntese de pensamento e linguagem que os torna inseparáveis, é também verdadeiro que antes da linguagem verbal, opera uma gramática fluída das imagens” (Damásio apud Soares, 2007:115). Assim, embora se pense que o conhecimento está limitado pela escrita, isto é, que só há escrita se houver conhecimento racional, nós presumimos que existe um alfabeto pré-verbal, um modo de pensamento intuitivo não dependente da fala, que emerge através da imaginação.

Os desenhos sona, apropriando-se das qualidades dos signos pré-linguísticos, revelam sugestões poéticas capazes de nos fazerem recuar ao modo de vida dos nossos antecessores e, assim, reconstruirmos a memória do que somos e vamos sendo.

À falta de uma designação com a qual possamos afrodesignar a prática sona,

sonagia constitui, assim, uma prática semiótica em que a ausência de componentes

verbais reforça o imaginário simbólico da comunidade através do seu caráter vincadamente visual e segundo uma autêntica sonagia do desenho. Diz Mário Fontinha, ao referir-se aos autores dos desenhos na areia: “O símbolo diagramático apresenta-se mais expressivo que o conceito verbalizado. [...] Nas suas representações visuais põem todas as sensações que o ambiente lhes transmite, sendo não raro o suporte de um conteúdo literário.” (Fontinha, 1998:40).