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Da écfrase invertida à tradução intersemiótica – A legitimação da poesia

poesia gráfico-narrativa

Hoje em dia assistimos a uma espécie de “écfrase invertida”, na qual as imagens são usadas para explicar as palavras. (Jay David Bolter apud Martins, 2009:429)

A incessante tradução em linguagem de toda e qualquer imagem que se nos cruze a mente será, porventura, o modo mais espetacular de enriquecimento da mente. (Damásio, 2017:135)

Não cabe neste trabalho tecermos um estudo aprofundado acerca da figura da écfrase, pelo que limitaremos a sua abordagem aos aspetos que estão diretamente relacionados com a temática principal da dissertação e que julgamos pertinentes, como é o caso da sua articulação com a figura da tradução intersemiótica31.

A “écfrase corresponde a representação verbal de um texto real ou fictício composto num sistema sígnico não verbal.” (C. Clüver, apud Conrado 1996:28). O conceito clássico de écfrase tem origem no Grego e significa “descrever” ou “descrição”. Não havendo uma linha nítida que separe os diferentes territórios artísticos, o processo através do qual acontece o contágio entre diferentes manifestações artísticas designa-se por “écfrase”. No entanto, conforme refere Frias Martins: “O alargamento contemporâneo do conceito de écfrase a várias manifestações do diálogo interartes aconteceu muito naturalmente, e o conceito passou a operar teoricamente no sentido de cobrir todas as expressões de «traduções» entre pintura-literatura, literatura-música, música-literatura, literatura-cinema, etc.” (Martins, 2009:428).

Optamos pela definição de écfrase menos clássica e restritiva, aquela que não deixa de fora manifestações artísticas como, por exemplo, a música, a arquitetura, a arte urbana ou ainda a dança. Daqui podemos depreender que o princípio ecfrástico permite colocar diferentes expressões artísticas em diálogo, evidenciando os laços poético-

31 Refira-se que os desenhos sona não são dependentes de tradução, como poderia acontecer, por exemplo, com outro tipo de figuras em que a geometria não constitui já um léxico. É certo que a tradução intersemiótica dos sona corresponde a transfiguração de signos simbólicos para signos verbais. Mas, tenhamos atenção que, no imaginário da sua comunidade, representam palavras, ou seja, só são signos simbólicos fora do seu contexto de receção. Diferente é traduzir uma composição pictórica que, em si mesma, não retém já narrativas. Caso contrário, estaríamos perante uma redundância, uma tradução dulpa.

88 afetivos entre elas. “Já não há obras de arte, há unicamente situações artísticas” (A. Moles, apud Martins, 1995:145).

Hoje não estamos apenas no plano da descrição e representação, mas também estamos perante a possibilidade de lermos verbalmente algo que foi “escrito” por imagens e vice-versa, ou seja, corresponde ao redimensionamento de um sistema de signos para outro sistema semiótico diferente. “Hoje a imagem já não é representação. [...] é invenção, é possibilidade de outra coisa que não existia antes e cria outro plano de realidade” (Jorge, 2003:41). Esse novo plano corresponde à ocasião em que a imagem, por emulação, adquire o mesmo significado que a palavra, tal como acontece com os desenhos na areia. Pela tradução intersemiótica, podemos compreender melhor o percurso de permuta e intercâmbio da imagem à palavra, do grafismo ao verbal, ou ainda do “paralelismo entre a pintura e a poesia” (Conrado, 1996:25) que, segundo a mesma autora, remonta, por exemplo, à escrita hieroglífica.

Pode datar-se com o simbolismo de Mallarmé o início de uma ruptura com as formas de expressão tradicionais, tendo como propósito a acentuação plástica da palavra, autonomizando-a de um sentido ou significado. (Júdice,1992:118)

Diz Maria Conrado que o poema pictórico “é uma forma de diálogo entre a literatura e as artes plásticas (não forçosamente só a pintura, como o nome pode sugerir) em que se verifica, não uma referência específica a uma obra de arte, mas a um processo de criação plástica, isto é, o poema não descreve o objeto, nem o comenta, nem medita sobre ele, mas cria formas e processos de competição de tal modo equivalentes que surgem na mente do leitor um determinado «tipo» de obras de artes visuais e não uma em particular.” (Conrado 1996:20). Tendo em consideração a reformulação do conceito da écfrase introduzida por Claus Clüver32, esta passou a designar não apenas a simples

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As definições da écfrase envolvem diversas contradições, dada a divergência de opinião de cada teórico. No entanto, interessa-nos, sobretudo, aflorar o seguinte: em 1978, Claus Cluver introduz uma definição mais frutuosa do conceito de écfrase tendo em conta o surgimento de novas formas de expressão como, por exemplo, o poema pictórico. O conceito de écfrase deixou de ser demasiado restrito e significar apenas “representação” e “descrição”. Apesar da relutância de alguns teóricos em adotar uma definição mais ampla da écfrase, esta passou a ser aplicada, por exemplo, também à poesia concreta, privilegiando a relação inter-artes. Segundo Maria Conrado, a poesia visual, a poesia concreta, caligramas e todo o género de transposições intersemióticas, com base na conceção de Claus Clüver, podem ser enquadrados na definição da écfrase.

89 descrição de seres ou de objetos do mundo real ou fictício, mas também a dimensão narrativa dos objetos inerentes às artes gráficas.

O que nos fica da definição mais abrangente introduzida por Claus Clüver

é a ideia de que, da mesma forma que existem textos verbais, também existem textos não verbais, podendo estes ser textos visuais, como sucede no caso dos desenhos de areia, na medida em que possuem “sistemas sígnicos próprios [...] que podem ser traduzidos ou re-escritos noutro sistema sígnico.” (Conrado 1996:30).

O que há de impressionante na minha escrita poética é o que nela há de recusa de expressão. O peso e o tamanho do que eu me recuso a exprimir eis o que eu digo-não-digo e finalmente digo. (Hatherly, 1998:34)

Como temos vindo a constatar, o sentido etimológico da palavra écfrase (ekpharis em grego) significa ir além do que está escrito e expressar por palavras algo que originalmente não contém palavras. Ora, não obstante a sua neutralidade face à presença de signos verbais, como temos vindo a referir, conta histórias, narra acontecimentos, constitui-se uma prática que se expõe pelo não-dito como se numa “escrita branca” em que não veem as palavras ditas. Explica Pierre Macherey que “[o] não-dito do livro não é uma falta a preencher, uma insuficiência que conviria anular. Não se trata de um não-dito provisório que se poderia eliminar definitivamente.” (P. Macherey, apud Martins, 1995:209).

A ekphrasis acaba por contar uma história desconhecida para o leitor e/ou ouvinte, ao trazer para seus olhos e/ou ouvidos algo que está distante, ou mesmo, traz uma história conhecida, como aquelas presentes em telas clássicas, mas revelando algo que o quadro apenas sugere, deixa implícito. Mas é preciso acrescentar que esta figura retórica introduz o objeto da arte gráfica, essencialmente espacial, no mundo temporal, ao lhe dar movimento e, por conseguinte, o status de narrativa. (Cardoso e Teixeira, 2014: 192-193).

A força e a originalidade do talento consistem em dar relevo e evidência ao que é grande e passa por pequeno, insignificante e ignorado. (Pinto, 1996:69)

90 Vale pena partilharmos as palavras de Melo e Castro acerca da operatividade ecfrástica no quadro da poesia visual:

“Sendo a écfrase de natureza descritiva de um objecto e sendo um poema visual um OBJECTO,... teoricamente perece-me que a utilização da ecfrase resultaria num objecto de um objecto. Por outro lado põe-se a questão de saber se existem poemas visuais que sejam descritivos de uma situação ou de um sujeito? Creio que não, porque a poesia visual é um objecto em si próprio e por isso não é descritivo. No entanto um poema como a CHOVE de Apollinaire representa a chuva mas por isso não a descreve. Porque me parece que a descrição é diferente da representação. No entanto, na poesia escrita normalmente a écfrase aparece muitas vezes, por exemplo, em Cesário Verde e até em Fernando Pessoa, e é um poderoso instrumento de análise de numerosos poemas. Na verdade, a poesia visual é essencialmente substantiva, ou seja, cada poema É O QUE DIZ e POR ISSO não é uma descrição. Mas esta questão é complexa porque pode haver poemas visuais que sendo objectos sugiram uma situação descritiva. Alguns poemas caligráficos de Ana Hatherly podem servir de exemplo. Pode ainda argumentar- se que a maioria dos poemas visuais são ideogramas e isso impede que sejam descritivos, e mesmo até que sejam de natureza comparativa ou metafórica.”33

Recodificar códigos não linguísticos em signos linguísticos é o mesmo que dizer por palavras o que só às imagens pertence. Entender os desenhos sona sob a perspetiva da tradução intersemiótica34 equivale a encará-los como uma prática que, através do grafismo, se abre à linguagem do mundo. E por esse ato transconfigurativo, os gráficos e traços adquirem significação, cada gráfico contém em potência35 a palavra do porvir, transportando o verbo que há de ser, e, sob o efeito de tradução intersemiótica, indicia, presume o poema, prenhe e preenchido de poesia.

Portanto, parece-nos que a figura da tradução intersemiótica se enquadra melhor no contexto da poesia visual.

33 Texto-resposta de Melo e Castro às questões por nós colocadas, via conversas mantidas por correio eletrónico. A sua reprodução foi gentilmente cedida pelo autor para esta dissertação.

34 A tradução intersemiótica permite que as diferentes linguagens reenviem umas às outras as suas marcas identitárias, ou seja, corresponde ao transporte de sinais mútuos entre as expressões. A linguagem de uma arte é deslocada para as outras artes e, entre si, comunicam-se, intercambiam-se. Portanto, há também um efeito de indução e dedução e entrecruzamento assim como reinvenção.

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“A potência é o poder de se efectuar uma mudança noutro ser ou um poder de se auto-realizar. É uma coisa intermédia entre o não ser e o acto já realizado” (Público, 2008:75).

91 Figura 10 – À esquerda, Fontinha, 1983:273. À direita, Fontinha, 1983:135.

Os desenhos na areia não são um conjunto de signos que se limitam a descrever ou representar algo. Mais do que isso, recodificam, transfiguram e expressam signos verbais. São uma expressão artística dotada de forte sugestão imagética capaz de transfigurar o silêncio de uma imagem em discurso, tornando explícito o que era ilegível. Aqui, é oportuno introduzirmos um outro conceito interessante, para entendermos convenientemente a importância da figura tradução intersemiótica em articulação com os desenhos de areia. Trata-se do conceito de enárgeia36. A enárgeia corresponde àquilo que aflora aos nossos ouvidos com uma vitalidade tal que acaba por provocar uma espécie de “visão-presente”. Não só provoca como, sobretudo, evoca imagens mentais que podem ser traduzidas textualmente. Através da enárgeia tudo o que cabe dentro de uma narrativa torna-se presença. “As lavras, as terras vermelhas do café, os rios, as montanhas, as florestas, a frescura da mulemba, as nossas tradições, os ritmos, as fogueiras, a marimba e o quissange”37, tudo isso a que “havemos de voltar”, volta no momento da leitura, ou seja, é como se as imagens provocadas pela narrativa se colocassem diante dos nossos olhos numa presença só possível por via das forças “mágicas” do texto.

Mário Fontinha, na sua obra Ngombo – (adivinhação) Tradições do nordeste de

Angola,38 referindo-se à arte do povo Tshokwe, afirma que: “A verdade visual é por vezes alterada pelo sentido mágico.” (Fontinha, 1998:118). Há que relembrar que, para

36 Termo de origem grega; etimologicamente significa “clareza” ou “evidência”. 37

Referências retiradas do poema Havemos de Voltar, de Agostinho Neto.

38 No presente trabalho procurámos restringir o nosso foco na relação poética que os desenhos na areia estabelecem com a poesia visual, invocando o nosso próprio trabalho artístico. No entanto, refira-se que para o aprofundar do conhecimento sobre a cultura do povo bakongo do nordeste de Angola seria interessante e esclarecedor ler a obra de João Vicente Martins, Os Bakongo ou Tukongo Do Nordeste de

92 o artista Tshokwe o que importa não é a estetização dos objetos, mas sim a ideia ou o significado desses objetos. Desenvolvendo a questão de outra maneira, diríamos que é libertando a obra dos ruídos ou afloramentos estéticos que ela melhor cumpre o seu “sentido mágico”. É este que se sobrepõe ao sentido estético, permitindo que visualizemos a narrativa sem desvios ou distrações, mas observando o que ela tem de essencial e indescritível. Se a nossa leitura estiver correta, isso significa que a verdade visual de que Fontinha fala corresponde ao que é observável, restrito e concreto, ou seja, aos atributos reais de um objeto. A alteração introduzida pelo “sentido mágico” corresponde ao que escapa a todas as fórmulas e se instala numa dimensão inefável, que nos obriga a interpelar o mundo para lá do que nele é visível e nos deixa “mudos de beleza”. O homem cria, através do “sentido mágico”, a imagem simbólica do mundo. Fontinha acrescenta que “é uma arte de acção mesmo quando é simbólica, devendo para o efeito uma espécie de linguagem surda, que exprime uma vida pensada com necessidade de ser comunicada.” (Fontinha, 1998:118).

Diz Eduardo Lourenço que: “Palavra alguma é mais poética que o real mesmo, em estado de absoluta ficção.” (E. Lourenço, 1988:207). Existe uma tensão frutuosa entre o texto e a imaginação do leitor que, por interferir e modificar o(s) sentido(s) do texto, acaba por também ele participar no ato criativo da obra. Curiosamente, no caso dos desenhos de areia, é bastante nítida essa ideia. Cada figura traz à memória uma imagem e, por sua vez, essa construção mental, ou mnemónica, ao corpori-ficar-se na nossa imaginação, torna vívido o texto, deixando-nos suspensos entre a sonhalidade e a realidade. Conforme José Martins Vaz afirma, para o povo Tshokwe: “A imagem é uma realidade viva e dinâmica.” (Vaz, 1970:23). Acreditam que a imagem torna vivo e presente o objeto representado.

De repente, o desenho passa a escrita (traduzido intersemioticamente) e, por sua vez, a proeza do que fica escrito transfigura a narrativa em presença real, ou na ilusão de uma. É aquilo que passaremos a designar “paradoxos da ausência-presente”.39 É como se o texto presentificasse o que evoca diante da nossa imaginação. Digamos que é também uma espécie de enermagia40, se considerarmos como um momento mágico

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Ideia desenvolvida a partir da contradição apresentada por Mikel Dufrenne quando nos diz que: “O ser no mundo vive o paradoxo de pertencer ao mundo e ao mesmo tempo estar separado dele.”(Dufrenne, apud Martins, 1995:166).

40 Designação criada por nós para definir o efeito de presentificação de uma ausência por via de uma composição artística. É como se a arte tivesse o poder de trazer à nossa presença o que ela evoca, o que ela desoculta.

93 aquele em que o que é narrado se manifesta na nossa mente fazendo-nos aceder à realidade do texto através da janela da imaginação. “A arte não sendo o visível, é antes aquilo que torna visível” (Almeida, 2002:212). Dito de outro modo, designamos por

enermágica a capacidade que um texto artístico possui de nos incitar a imaginar. Essa

capacidade de tornar visível e/ou presente o escrito, e, mais do que isso, tornar sentível o escrito, é sem dúvida uma ação “mágica”, quando estamos envolvidos na leitura, quando a leitura é sentida. Quase se consegue tocar na pele do poema, a poesia torna-se tátil, sentível, ganha um corpo, espessura e concretude. A ilusão esticada até ao seu ponto máximo, em que não pode já ser outra coisa senão rebentar e transmutar-se em realidade.

Os obetos que atualmente não são designados como obras de arte, amanhã, num ponto de receção diferente, poderão mudar de sentido, ou são inalteráveis? De que forma é que se criam as premissas de uma definição para que ela seja comummente aceite na nossa época histórica? O sentido do texto, sendo “móvel”, muda de “rumo” consoante o seu contexto?

A nossa perspetiva é a de que “o texto modifica-se à medida que é lido em novos contextos” (Martins,1995:155). Portanto, nem mesmo o “contexto autoral” aprisiona a multiplicidade de sentidos que um texto, uma obra de arte ou simplesmente um poema podem adquirir numa mudança de contexto, pois nem mesmo o autor detém a propriedade dos sentidos da sua obra. Segundo Duchamp, “todo o acto de criação se deve também ao espectador, porque é ele quem «estabelece» o contacto da obra com o mundo exterior decifrando-a nas suas qualificações mais profundas.” (Duchamp apud Pires, 2005:320).

Por isso, ainda que estejamos de acordo com o argumento que refuta que os desenhos de areia representem poemas visuais propriamente ditos, por tudo o que foi indiciado até aqui cabe-nos interrogar: o sonagismo, pela sua capacidade de produzir imagens mentais, adequa-se à operatividade da écfrase? Será, assim, admissível alargarmos a extensão do conceito de poesia visual à prática sona, tendo como argumento a sua relação de proximidade ecfrástica?

Podemos concordar com o reconhecimento de que, apesar de serem desenhos “discursivos” e estarem em consonância com a fisionomia da poesia visual europeia, não são necessariamente poemas visuais. Podemos concordar que representaram um estímulo à criação de diversas expressões artísticas atuais, como é o caso da própria poesia visual. Podemos concordar que se trata de desenhos erguidos pelo condão da

94 criatividade popular e que, apesar de os seus “leitores” terem sido previamente “treinados” para a sua compreensão, encontram um grau de parentesco mútuo com a linguagem alfabética. Podemos concordar com tudo isso. No entanto, mais importante do que esse reconhecimento, é deixar as fronteiras abertas ao que virá, misterioso, incerto e desconhecido, despoletar novos horizontes de possibilidade e sentido.

O mistério é o verdadeiro conteúdo da arte, cuja forma exterior é aquilo que vemos, cuja essência é o que não vemos: e em volta de toda a verdadeira obra de arte paira essa auréola invisível que a deifica, sem a qual ela não é mais do que uma forma vazia do conteúdo. [...] Tal mistério é talvez um nada de que o homem faz um tudo; um nada que ele povoa de possibilidades impossíveis – não importa, porém, porque esse nada é, para o homem, tudo. (Salazar, 2003:141)

De acordo com Claus Clüver, “a obra de arte é um «texto» em qualquer sistema sígnico que as comunidades interpretam ou lêem como obra de arte." (C. Clüver, apud Conrado, 1996:29). Por sua vez, Maria Conrado atesta que “embora se saiba que aqui se verifica uma extensão metafórica da palavra «ler» esta parece ser uma formulação aceitável e produtiva uma vez que, de facto, é às comunidades que compete aceitar ou não os objetos como obra de arte.” (Conrado, 1996:29). Na afirmação de Conrado parece-nos estar latente a ideia de que compete a comunidade, mediante um acordo, um pacto, decidir o que deve ser interpretado como letra, frase, poema ou uma história figurativa.

“A definição de écfrase inclui a verbalização dos objetos não considerados artísticos.” (Conrado 1996:29). Apesar de a comunidade Tshokwe não reconhecer os sona como objetos artísticos, pela transmutação que opera a écfrase, podem, independentemente disso, ser verbalizados. Porque a matéria (poesia) que lhes serve de suporte pode não ficar retida nas intenções do autor e ir para além da interpretação dele. A vontade do autor não pode subsumir o “gosto” ou a interpretação geral da comunidade a que ele pertence. Em poesia, o escre-ver ou o ver-balizar cumprem simultaneamente a função de ver. E a coisa vista (o poema) transcende a intenção de quem o deu a ver.

Há influências que se incorporam nas expressões artísticas de campos estéticos diferentes. Há em cada prática artística, como diria Jorge de Sena, uma “repercussão poética das outras artes.” (V. Moura, apud Sena, 2012:84).

95 Nem sempre é possível traduzir verbalmente para a nossa língua uma obra de um contexto estranho ao nosso. O que não é do domínio da palavra tem de ser lido com as premissas que o fazem significar. Os significados repercutem-se nos desenhos sona através de composições pictóricas em que a palavra, estando ausente, aparece re-velada. Assim sendo, os signos gráficos dos desenhos na areia, por tradução intersemiótica, tornam-se veículo de acesso às palavras. Uma ponte para se ir mais além. Acrescente-se a esta ideia de “rasgar limitações”, quer dizer, convocação e incorporação dos signos de uma arte nas outras artes, nas palavras de Vasco Graça Moura:

[A relação intersemiótica entre as artes é] uma maneira de ir ‘mais além’, de apostar na abertura para outras dimensões do espírito e do mundo, de reconduzir a poesia às vias de uma equação inesperada, de procurar a produção de um sentido diferente e mais denso, a partir do envolvimento pela palavra poética, de algo que não tinha originariamente a ver com ela. [...] Mas a questão mais relevante dessa maneira de procurar a coincidência entre a criação poética e outro tipo