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6. Desenhalidades – Escritores visuais – Desenhar como quem escreve

6.9 Geometrismo narrativo

Os anos sessenta foram um paroxismo de estilos, no curso da afirmação dos quais, me pareceu – e foi esta a base de ter começado a falar do “fim da arte” – que gradualmente se tornava claro, primeiro através dos novos realistas e da arte Pop, que não havia nenhuma maneira especial como as obras de arte tivessem de parecer, em contraste com o que designei de “meras coisas reais”. Para usar o meu exemplo preferido, nada tinha de marcar a diferença, exteriormente, entre Brillo Box de Andy Warhol e as caixas de Brillo no supermercado. E a arte conceptual demonstrou que nem sequer precisava de haver um objecto visual palpável para algo ser uma obra de arte visual. Isso significava que não se podia ensinar o significado da arte por exemplificação. Significava que, no que dizia respeito às aparências, tudo podia ser uma obra de arte, e significava que, se queríamos saber o que é a arte

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teríamos de deixar a experiência e virar-nos para o pensamento. Em resumo, tínhamos de nos virar para a filosofia.27 (Danto, 1997:13)

Não há um autêntico reconhecimento da arte africana em geral. Se erradamente ainda se julga que na arte africana não está presente a intervenção da imaginação devido ao aspeto formal e abstrato de parte das suas realizações artísticas, se erradamente se julga que a poesia não pode constituir um jogo, ou que uma representação gráfica não constitui um poema devido ao esvaziamento da carga semântica, é porque a maior parte das vezes pensamos na arte, mas sem pensar com arte.

Tal como habitualmente sucede com a consagração dos poetas, o objeto artístico nem sempre ganha estatuto no momento em que nasce. Por vezes, só muito mais tarde adquire esse entendimento. Objetos que não eram considerados arte, passaram a sê-lo mais tarde, e objetos que eram considerados obras de arte tornaram-se obsoletos e desatualizados e perderam esse estatuto. Além disso, embora os desenhos sona na areia se distanciem da poesia visual na sua interioridade, ou seja, em termos de conteúdo, fisicamente, no que tange à forma, como já o dissemos, não nos parece haver constrangimentos ou incompatibilidades que inviabilizem a artisticidade dos desenhos sona. O objeto artístico, mesmo quando ainda não tenha adquirido esse estatuto, mesmo quando ignorado no seu tempo de produção ou no seu território cultural, não perde a sua essencialidade, a sua expressão, continua a fazer parte do património artístico, ainda que esse património não exista de um modo institucional, porque faz parte do património poético universal. De acordo com António Damásio: “As imagens são a moeda universal da mente.” (Damásio, 2017:132). Este autor vê a imagem como passível de uma leitura universal que, enquanto “moeda”, pode ser trocada, isto é, traduzida em qualquer linguagem. No fundo, a mensagem aqui subjacente é ideia de que o pensamento é traduzível por imagens, imagens que podem ser compreendidas por qualquer povo.

Os significados incorporados nos desenhos sona e, por conseguinte, a

poeticidade que com ela é veiculada, ultrapassa as balizas do que é e do que não é arte

para se abrir à experiência da ação humana. Com isto, pretendemos dizer que a arte sona, enquanto produto de uma vontade coletiva, tem a incumbência de impulsionar a capacidade transfiguradora dos constituintes da comunidade. Mais do que um veículo

78 de entretenimento, é uma permuta e, sobretudo, a experiência de fazer com que os outros se tornem conscientes de si próprios, que é um dos objetivos da arte, da poesia e da literatura em geral.

Portanto, a diegese visual sona está intrinsecamente ligada à ação cognitiva, ou seja, reporta-se também ao caminho do (auto)conhecimento para a permuta e partilha dos valores totalizantes e universalistas da humanidade. É uma forma de conhecimento na qual se conjugam aspetos conscientes e inconscientes.

[...] A arte figurativa está, na sua origem, diretamente ligada à linguagem e muito mais próxima da escrita no sentido lato do que a obra de arte. (Gourhan, 1965:84)

Precisamente como nos desenhos narrativos codificados, nos dias de hoje o retorno aos modelos antigos constata-se pelo uso de signos simbólicos enquanto objeto que nomeia uma determinada realidade. O advento da razão tem vindo a dar espaço ao ressurgimento e valorização dos aspetos espirituais da arte.

Hoje, ao referirmo-nos à arte, podemos afirmar que há determinadas manifestações poiéticas que se regem por um sistema de equivalências semânticas isoladas. O desgaste a que tem sido submetida a poesia, enquanto género “menorizado”, banalizado no quadro económico em que a arte tende a seguir as regras do comércio geral das artes, poderá, eventualmente, ter como consequência um retorno ao passado... Não o passado fossilizado e falacioso como lugar estático, mas como passado atuante, regenerador de possibilidades e fecundo.

Pela invocação da poesia visual construímos os alicerces do nosso trabalho. Não é uma prática exclusivamente gráfica, ao contrário do que acontece na prática sona. No entanto, as ressonâncias da poesia visual repercutem-se e vibram no nosso trabalho. É uma prática poética que se (con)centra nos aspetos visuais e nos valores visuais dos objetos do quotidiano.

Houve tentativas dispersas de alguns autores para se aproximarem do que podíamos nomear uma poesia visual angolana, mas ficaram-se por aí, por tentativas mal conhecidas, desconhecidas, ou simplesmente mal conseguidas. Mas o potencial para uma forte expressão verbi-visual e verbi-voco-visual angolana ainda não se perdeu. Creio mesmo que

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emergirá a qualquer momento – de um rio, de uma lagoa, do oceano. (Francisco Soares, 2014)

A mensagem da nossa poesia orienta-se para uma fala harmonizante entre imagem e palavra. É nessa relação dupla, entre a palavra e a imagem, que a nossa poesia se orienta, não exclusivamente por uma escrita fonética, mas também pela exploração dos aspetos visuais dos objetos por invocação ou por apropriação das características que compõem a poesia visual.

Cada poema é acompanhado de uma imagem, um verso, uma frase solta ou até mesmo uma única palavra isolada. A ideia é a de expandir o sentido textual da poesia e ilimitar o significado ou as interpretações do poema. O espaço, o atelier de criação pode ser a rua, o mar, um rio, ou outro lugar qualquer.

As palavras distribuem-se pelo texto-imagem, criando diferentes sentidos de leitura, sendo a utilização de recursos tipográficos variados que podem assumir diferentes estilos ou tamanhos de letra. Essa articulação de vários recursos, aparentemente inconciliáveis na formação de uma palavra ou frase, originam frases de múltiplos sentidos e interpretações.

A maioria das obras de poesia visual não são facilmente vendáveis, tal como acontece com a prática sona. Mas estas não visam o lucro. São práticas distanciadas de interesses materiais, criadas não para o consumo das massas, mas para um consumo mais restrito. É uma arte que se dá com graça e de graça. E é nesta perspetiva de doação que também entendemos a nossa prática, ou que devemos entender a nossa prática artística como um produto não lucrativo.

Além disso, a condição de aprendizes uns dos outros impõem-nos reconhecer os contributos da interculturalidade. Impõe-nos, sobretudo, reconhecer que a arte, esse adubo natural dos povos que habitam o mundo, não pertence a uma única cultura.

Como temos vindo a observar, não é nítida essa fronteira que poderia separar o que é e o que não é poesia. O nosso trabalho faz parte de um conjunto de expressões artísticas marginais, remetidas, muitas vezes, à sua própria invisibilidade quando confrontadas com obras de maior alcance ou ainda quando expostas a um mercado que só toma por poesia o que à poesia tradicionalmente pertence, não admitindo a possibilidade daquilo que, não pertencendo habitualmente à poesia, possa ser suscetível de ter valor poético.

80 São, afinal, obras que têm uma maior aceitação nas chamadas redes socias do que em qualquer outro circuito de divulgação da arte.

[Posicionamo-nos na defesa de um futuro que,] além da pintura, da escultura e arquitetura englobe produções que eram julgadas menores por serem objetos do quotidiano ou artes do corpo, tais como escarificações, máscaras, artefatos têxteis, penteados e respetivos adornos, propondo que seja avaliada a variedade dos materiais usados. (Kandjimbo, 2003:148).

Ao destacarmos os valores estéticos das práticas artísticas mencionadas neste trabalho, não pretendemos, obviamente, enfatizar clivagens, nem menosprezar o valor das outras artes do mundo, pelo contrário, a nossa pretensão defende que, em arte, é desadequada a existência de artes “menores”. Essa disputa, quando transferida para a problemática da poesia, ofusca os valores poéticos, colocando em primeiro plano valores meramente extrínsecos, económicos. No dizer de Isabel Garcez, encontramos o seguinte raciocínio: “Se os produtos artísticos, estéticos e científicos constituírem apenas uma forma de os capitalistas tradicionais aumentarem a sua conta bancária, então não estaremos a fazer justiça à importância real que têm os produtores, mediadores e receptores desses produtos.” (Garcez, 2017:250-251).

Assiste-se hoje a um esgotamento das formas de expressão. Deixou de interessar a fruição dos artefactos artísticos, tendo passado a despertar maior interesse uma arte que se inscreva no filão da vida e que, de facto, se mostre importante para a instituição humana no seu todo, uma arte em que a vida e a arte se confundem e se fundem numa só dimensão, tal como refere Dufrenne: “Porque a experiência estética situa-se na origem, naquele ponto em que o homem, confundido inteiramente com as coisas, experimenta a sua familiaridade com o mundo.” (Dufrenne apud Barbosa, 1995:173).

Neste sentido, o ato criativo não obedece obrigatoriamente a um conjunto de regras ou a uma disciplina que determina e ajuíza, no objeto, onde começa a fruição e onde termina o que nela é a função, podendo o objeto artístico assumir um papel dúplice, ser simultaneamente um meio, um instrumento para as necessidades da comunidade, como também um fim em si mesmo. “Se a obra de arte não fizer isso, ela não cumpre a sua função de nos conduzir a uma viagem, a saltar fronteiras e a

81 desobedecer certezas.” (Mia Couto28). Ora, uma arte que não se deixe subjugar pelos interesses que em nada contribuem para a elevação intelectual do homem será a arte mais desobediente às certezas estáticas. Será uma arte produzida para enfeitar ou ornamentar o nosso egoísmo. Portanto, cabe-nos devolver à arte o seu caráter pedagógico-construtivo. Cremos, tal como Manuel Antunes, que “a poesia exerce ainda – e tem de continuar a exercer – a sua função educativa, múltipla e diversa, insubstituível, ou, quando menos, dificilmente substituível. Função de dizer a realidade verdadeira pelo retorno ao ser, às profundezas do ser, ao Espírito e à Vida.” (Antunes, 1960:43).

À arte cabe, então, como refere Vitorino Nemésio, a propósito da poesia: “Fazer o ser”, pois na sua máxima expressão é a edificação de um novo humano no homem. Cada artista revela-se no outro e o que produz é sempre um produto de conjugações e confluências, apropriação e invocações.

Assim, a posição que temos vindo a defender vai no sentido de não se desvirtuar a vivência comum que inter-liga os povos e as suas diferentes manifestações artísticas. A existirem “árbitros” ou educadores do gosto29 para “temperarem” ou apurarem gosto dos consumidores do objeto artístico, sugerindo e propondo diferentes perspetivas, cabe-lhes, acima de tudo, não reprimir, mas a-largar o nosso entendimento enquanto ouvintes, visualizadores ou leitores, em suma, artespectadores.

[O poema] não precisa de ser lido para ser entendido. (Castro, 1965:76)

Partindo das palavras de Melo e Castro, podemos, portanto, admitir que no campo da poesia existem práticas de cujo alfabeto não temos conhecimento, mas para as quais o nosso entendimento é constantemente projetado. Compreender a escrita visual sona é, também, interpretar, compreender para além dos limites convencionais do que é

“escrevível”.

Entendemos, pois, que na expressão visual sona estão infiltradas uma série de imagens ou “poesenhos” que suscitam letras ou palavras. Não só suscitam como re-

suscitam e invocam a poesia visual ocidental por metamorfose ou, dito por um sinónimo

designado por nós, por sonamorfose. Por sinestesia, a poesia corporifica-se em imagens que são letras.

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Em entrevista para a revista on line “ISTO É” (Edição 15/06/2017 - nº 2479) (ver bibliografia) 29 “Há que educar o gosto” (Lopes-Graça, citado em Garcez, 2017:223).

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Se quisermos compreender a história da arte, faremos bem em recordar uma vez por outra que imagens e letras são, realmente, parentes consanguíneas. (Gombrich,1979:30)

A poesia é a arte privilegiada, como sabemos, porque só ela consegue re-unir todas as diferenças, todos os litígios, todas as (p)artes e assim alcançar, de um modo quase infalível, o âmago e a alma da nossa humanidade. Portanto, deixa de ser uma surpresa que a poesia, por ser uma estrutura viva e em permanente transforma-ação, seja um terreno fértil para a inclusão de todas as línguas, de todas as linguagens e de todos os modos de expressão, escritos, desenhados, cantados ou apenas pensados.

A poesia assume, assim, um papel primordial no desenvolvimento da per-sona-

lidade humana, na medida em que permanece aberta ao entendimento,

independentemente da interpretação ou conhecimento que se tem dela. O impulso do ornamental e do lúdico exercem, na prática sona, uma ação conjuntiva conduzindo o desenho à descoberta de novos significados.

São mensagens que não nascem de palavras nem se limitam ao plano verbal, mas por obedecerem à gratuidade natural da vida em comunidade, são arte, são poesia, são manifestações de permuta, ora nascendo, ora desaparecendo, mas sempre sendo mais qualquer coisa-além, sem outra finalidade que a de se concretizarem como um alfabeto humano, indizível e imponderável, como só as coisas atingidas pela poesia podem ser.

Não nos podemos esquecer de que o primeiro meio que o homem encontrou para se encontrar a si próprio foi a poesia. Devemos, então, concluir que a prática sona é, em parte, poesia visual e que é uma arte não menos poética do que a poesia visual propriamente dita? Podemos afirmar que a poesia é o instrumento mais sensível na construção de qualquer povo? Responde Munari que: “O artista é quem, criando as próprias impressões subjectivas, sabe descobrir um significado objectivo e expressá-lo de forma convincente” (Munari,1968:5).

Nas narrativas sona, a poesia surge em função de um ritmo interior como se de uma ação instintiva se tratasse. Ora em ziguezagues, que se fecham em quadrados, ora em linhas arenosas quebradas dis-paradas em todas as direções, ora em movimentos circulares como se em andamento. Em desenhos que vêm e vão com o vento, como areia atirada à cara da imaginação, embora nessas “impressões subjetivas” se note mais uma vontade de obedecer ao curso natural da vida do que a uma preocupação de exibir

83 dotes artísticos. No entanto, ainda assim, o que por nós pode não ser classificado sob a designação de poesia ou escrita pode ser uma consequência da nossa compreensão rudimentar em relação à poesia ou à escrita de outros povos? Diz João Sousa Monteiro que: “Em geral, quando classificamos uma tribo, uma sociedade, ou uma raça de «primitiva» o fundamento do nosso juízo reside, ironicamente, numa atitude ela mesma profundamente primitiva.” (Monteiro,1983:57).

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CAPÍTULO III