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Nexos simbólicos entre a palavra e a imagem – da visualidade à

escritalidade

Uma palavra pode substituir uma imagem. Uma imagem pode substituir uma palavra. (Magritte apud Júlio Pomar, 2014:37)

O facto de os grafilitos não se encontrarem isolados entre si, mas funcionarem numa associação conjuntiva, isto é, num sistema pensado e ligado a um corpo de significados, faz com que o desenho possa ser lido e os signos geométricos que compõem as figuras, em associação, assumam um caráter verbal.

Assim, os signos visuais desempenham a mesma função que a palavra, conferindo a cada signo uma atividade verbal que faz emergir a sua legibilidade e, consequentemente a sua dimensão poética. No desenho sonálgico há um claro

41 predomínio dos signos visuais. De acordo com a nossa posição, trata-se, antes de mais, de uma expressão estética que assume um modo de leitura que não está em consonância com a forma habitual de ler. Cada forma geométrica é lida de um modo restrito, aliás, dito de outro modo, a sua compreensão está limitada à leitura que a comunidade dela fizer, daí apelidá-la de poesia socializante.

A mensagem dos sona é sintética e essencialmente visual, e apesar de pressupor uma leitura diferente da que estamos habituados, a forma como se deve encarar o “texto” coincide com os parâmetros definidos para a poesia visual europeia. Conforme refere Dalila d'Alte Rodrigues: “A arte moderna foi renovar-se numa antiguidade que a arte académica já não tinha olhos para alcançar” (Negreiros apud Rodrigues, 2002:111).

O que nos surpreende na compreensão dos desenhos sona, além de os traços que os compõem terem o mesmo valor significante da escrita convencional, e além da sua abertura ao diálogo com os homens, é o facto de pré-nominar e transfigurar o quotidiano numa linguagem geometrizada, em que o que aparentemente não tem significado e se apresenta ilegível e críptico personaliza e desnuda o mundo e a experiência que os homens têm desse mesmo mundo.

Trata-se de uma leitura que pressupõe o conhecimento desse código, na medida em que é esse código que indica o significado da leitura. O desenho sona, ao tornar-se legível, pelo que atrás já referimos, confere aos signos geométricos sona poder de representação, mostrando que a poesia é passível de ser construída não só com palavras, mas também com uma combinação de elementos que se afirmam com o mesmo poder de mediação que as palavras estabelecem na relação entre o homem e o mundo, ou indo um pouco mais além, na relação que o homem estabelece com o imaginário coletivo.

O sonagismo surge como uma das formas possíveis de expressar o pensamento simbolicamente. Mário Fontinha observa que o povo Tshokwe: “Sentia necessidade de fixar por imagens o seu pensamento” e, mais à frente, acrescenta que “ao traduzirem certas imagens e pensamentos, por símbolos visíveis, são curiosas vias de conhecimento” (Fontinha, 1983:73).

O sonagismo emerge de narrativas extrínsecas aos modelos verbais, revelando- se em construções poético-visuais que nos remetem para poemas, parábolas, adivinhas, provérbios sob uma forma figurada geometricamente. Não se pode dissociar a dimensão poético-comunicativa presente nestes desenhos textuais, pois são eles que corporizam a experiência humana. No entanto, por mais poética que seja a mensagem de uma parábola simbolicamente expressa, por exemplo, não se pode afirmar que a sua

42 intencionalidade se paute por razões poéticas ou literárias. Apesar do processo criativo subjacente à construção sona, há uma narrativa que confere um sentido à poesia, ao articular um labirintado cunjunto de linhas, uma história, frases; e, ao estabelecer equivalências semânticas entre elementos, à partida, distintos entre si, faz emergir esses sentidos inéditos e estranhos à poesia. Daqui surge a necessidade de um novo olhar sobre a contradição que só encontra justificação na força do poder criativo da metáfora, capaz de lhe atribuir novas significações e inovar semanticamente as lógicas comummente aceites.

Trata-se de uma prática que representa imageticamente a palavra. Narra por intermédio de imagens a memória identitária da comunidade. Este género de grafismo (estético, mas não estático) preserva os acontecimentos passados revelando-se tanto em provérbios, como em poemas, ao evidenciar um acentuado pendor poético; portanto, não é uma mensagem fechada sobre si mesma, mas que abre novos sentidos, reedificações e, por isso, não se restringe ao tempo da sua criação nem àquele que pretende invocar. Os sona, enquanto prática visual, só são aceitáveis se os entendermos num quadro criativo que encara a imagem poiética não só como elemento subsidiário das palavras, mas também em que a imagem ganha estatuto de palavra no modo de pensar e no modo de traduzir esse mesmo pensar.

Figura 6 – Em cima, à esquerda, Fontinha, 1983:247. Em cima, à direita, Sona recriado por Paulus Gerdes, 2012:199. Em baixo, ao centro, Fontinha, 1983:227.

43 A conexão dos signos abstratos do sona revela a mensagem; as suas ligações comunicam essa mensagem; os signos exprimem ideias. Estabelece-se, então, uma substituição das palavras por sinais que exprimem conceitos. Ora é justamente nesse sentido que a prática sona se autonomiza e se consagra a si própria como uma (linguagem) manifestação artística que já não é subsidiária da escrita ou da poesia. A prática sona é, antes de mais, além da sua configuração narrativa e poética, um campo de possibilidades onde só a poesia, como linguagem primacial do homem, possibilita a busca da essência que nele habita.

Os pictogramas sona, ou “lusona”, no plural (termos para “letra”, “desenho” ou “escrita”), constituem uma combinação de pontos e traços predominantemente desenhados na areia pela comunidade Tshokwe angolana. O facto de, nos ideogramas sona, “não haver possibilidade [...] de isolar uma unidade discreta, uma unidade autónoma como um fonema e articular fonema com fonema, para criar outro tipo de unidade, por exemplo um morfema” (Gil, 2010:11), remete-nos para a ideia de uma linguagem que tem de ser lida no seu todo, pois nem sempre é possível isolar um signo e interpretá-lo de um modo individual. Traduz-se numa linguagem conjuntiva e “contínua, isto é, em que aquilo que vale é o conjunto, o qual não é divisível em signos discretos como acontece com o texto linguístico” (Martins, 2009:430).

Com o desenho também se podem escrever acontecimentos. Os desenhos na areia são sósias das palavras. Neles, “a imagem aparece e, a partir dessa aparição, representa um papel comparável ao da palavra” (Pomar, 2014:56).

Como os hieróglifos, eles concentram num conjunto simples de traços uma densidade e sugestão poética e narrativa assinaláveis. Cada uma daquelas figuras, no seu contexto e com a leitura espacial que provavelmente implicavam, era uma letra. Mas uma letra que equivaleria hoje a uma frase, a um verso. Por isso dispensavam a letra, porque já eram letra. (Francisco Soares, 2014)

O grafismo sona é emancipado e, diríamos também, antecipado, anterior ao próprio conceito de arte que temos hoje. Remete-nos para o território da pré-escrita, um conjunto de sinais germinativos, não isolados, numa combinação de signos “abstratos”, mas agregados num plasma de alusões e memórias reconstituídas simbolicamente.

São desenhos que tendem a significar, tendem a agregar em si os signos verbais numa espécie de (g)rito comunicante. Trata-se de uma linguagem que se apropria de

44 imagens, para se fazer significar em palavras e, ao significar-se, legitima a sua circulação no horizonte dos signos linguísticos, mas, mais do que isso, ou por isso também, possibilita inevitavelmente uma certa sistematização e/ou convenção de que os seus utentes podem dispor para se comunicarem e, nessa comunicação, cifrarem e decifrarem os códigos recrutados ao campo da palavra.

A arte primitiva começa pelo abstracto e até mesmo pelo pré-figurativo. Tais obras não são, como ainda hoje se afirma, uma como que explosão espontânea de entusiasmo. (Leroi-Gourhan, 1965:188)

Há que distinguir os ideogramas sona (geralmente associados ao grafismo étnico ou primitivo) dos ideogramas produzidos na Europa, por exemplo, por Melo e Castro, Ana Hatherly ou Salette Tavares (ligados à poesia visual ocidental). No primeiro caso, as manifestações artísticas estão geralmente associadas a mitos e ao sentido do maravilhoso, tendo como objetivo primordial não a realização estética, mas a preservação e a continuidade da tradição. No segundo caso, o da poesia visual europeia, o objetivo é precisamente o inverso: criar ruturas nos discursos artísticos-poéticos tradicionais, razão pela qual Melo e Castro refere que “falamos sempre em ruptura, mas essa ruptura diz respeito a um convencionalismo que nos era imposto, nunca ruptura com uma tradição que era preciso reconstruir” (Castro & Hatherly, 1981:20–21).

O que se pretendia era propor um discurso essencialmente inovador, visual, partindo de uma suposta linguagem original, afastada das abordagens poéticas habituais. Por sua vez, Ana Hatherly acrescenta que “essa ruptura é uma recusa do ambiente que nos rodeia, e nunca é uma ruptura com as nossas raízes. […] Pois, porque na verdade muitos dos meus trabalhos têm base numa espécie de quase reelaboração de maneiras de trabalhar antigas” (Castro & Hatherly, 1981:21).

Na poesia visual europeia não se pretende, no entanto, um discurso completamente desligado da linguagem precedente, mas partir dela para criar o novo. Ora, estas disparidades parecem querer mostrar que a diferença, em certa medida, também se encontra na maneira de pensar o mundo, no modo de viver a poesia. Por isso, apesar de a prática sona não recorrer a técnicas sofisticadas e de ter objetivos diferentes dos da poesia visual europeia, mesmo diante da inexistência de distanciamento em relação aos objetos do quotidiano, a prática significante sona tem um efeito artístico muito semelhante ao da poesia visual.

45 Com a globalização, é difícil, hoje, falar de uma arte exclusivamente africana ou de uma arte exclusivamente europeia. Ambas as manifestações artísticas partilham da mesma atmosfera poética. Sem dúvida que a poesia visual moderna contém vestígios das expressões artísticas africanas. A grande diferença prende-se com o facto de, na cultura de matriz europeia, muitas vezes, se privilegiar a dimensão racional em detrimento da espiritual. A este propósito, António Cândido salienta que “a dificuldade está em equilibrar os dois aspectos, sem valorizar indevidamente autores desprovidos de eficácia estética, nem menosprezar aqueles que desempenham papel apreciável, mesmo quando esteticamente secundários.” (Cândido, apud Mata, 2001:38).

A dimensão poética dos ideogramas sona resulta não só da combinação gráfica de que se compõe, mas, sobretudo, de um contexto cultural determinado. É o resultado da articulação de códigos culturais que operam dentro de um sistema de valores partilháveis. Os ideogramas sona, ao criarem o seu próprio sistema sígnico, permitem, por exemplo, que a sua figuratividade ultrapasse a representação do visível ou do material.

Os ideogramas sona são muito mais do que símbolos aleatórios desenhados de um modo arbitrário. São mais do que pictogramas, na medida em que reproduzem analogicamente a realidade. Apesar de conterem signos abstratos, a sua figuratividade vai além da representação do visível ou material. Torna-se capaz de representar fenómenos espirituais, a alma ou o tempo, por intermédio da metáfora.

46 O grafismo sona é uma prática que se aproxima do estado de infância da humanidade. São desenhos que, não tendo estatuto de arte, são relegados para o passado e para a ancestralidade, o que, de certo modo, amplia a ideia de que os desenhos sona não têm uma dimensão estética e que correspondem a um emaranhado de linhas calígrafas em estado bruto, sem qualquer sentido estético ou lógico, próprios de uma pré-arte, pré-escrita ou de um vocabulário figurativo. Não derivam do propósito de fazer arte experimental ou de vanguarda e não são feitos para serem contemplados na qualidade de obras de arte visual, no sentido tradicional. Nós é que podemos dar-lhes essa função, que os seus autores dificilmente admitiriam. O povo Tshokwe não os cria com explícita intenção de produzir artefactos artísticos, mas sim de comunicar graficamente. A arte emana, por vezes, de uma não-intencionalidade expressa, espontaneamente.

Um dos equívocos em torno de manifestações gráficas semelhantes aos desenhos sona consiste no não reconhecimento do valor poético-narrativo, por se despojar de palavras. No entanto, como refere Melo e Castro: “A tipografia criadora é uma das consequências imediatas da poesia concreta, mas o que todas essas mensagens visuais nos dizem, e o modo como o fazem, é mais do que somente arte gráfica” (Castro, 1981:164).

Com efeito, entendendo-se como poesia apenas os textos que contêm signos verbais, colocam-se fora da esfera poética as manifestações igualmente poéticas (como grande parte da poesia visual, concreta ou gráfica), como se apenas as palavras constituíssem o traço dominante da poesia e assim garantissem a sua poeticidade (de um produto artístico.) Os desenhos sona representam um meio de acesso à poesia visual e a poesia, enquanto livre criação artística, não é determinada por nenhuma agenda, por nenhum código regulador da poesia. A natureza da poesia é a liberdade, ou seja, estar do lado de fora. Ao estar isenta da obediência a um paradigma, adia o seu divórcio com a natureza humana e faz com que ela permaneça o que é. Poesia.

Uma arte cujo horizonte não é o da arte, mas o de uma abstração de conteúdo humano e de um potencial narrativo, permite ao sonagismo, o papel de se deixar, não apenas ver, mas sobretudo ler, enquanto “objeto estético”. Imagens que nos remetem não apenas para a representabilidade do mundo exterior, mas para a interioridade de um mundo humano. Arte com pendor naturalista inerente à comunidade e à sua cultura. Arte integradora, no sentido de envolver os membros do grupo.

47 A prática significante sona sai empobrecida quando nela se sobreleva a sua dimensão gráfica e se negligencia a sua capacidade de interpelar o mundo. As obras de arte africana são muitas vezes remetidas para os museus de antropologia como se apenas comunicassem para o passado e nada tivessem a dizer ao futuro.