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A imaginação arquetipoética como ponto de partida

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O conhecimento das bases arquétipas universais incitou-me a olhar para o que existe em toda a parte e que pertence a todos como um facto psicológico. (Jung apud Durand 1979:68)

A imaginação, por seu lado, não sobrevoa o mundo, não plana sobre ele como um véu de mágica, mas é o convívio contínuo e concreto dos homens com o mundo, o contacto primitivo e original que a realidade da linguagem humana encarna. (Lourenço apud Baptista, 2003:366)

Ainda que a nossa opinião vá em contracorrente relativamente ao quadro geral de teorias partilhadas, é necessário que não recuemos perante a sentença que nos “condena à liberdade de pensar”, como diria Sartre, ou, mais perto de nós, Vergílio Ferreira. Não recuar perante as nossas pressuposições interpretativas por mais ab-surdas e mudas que pareçam, equivale a dar voz às obras que já só podem falar através de nós, pois os seus autores não nos deixaram coordenadas oubússolas que nos guiem aos seus exatos significados e, mesmo que os tivessem deixado, certamente que, guiados pelas “cores da imaginação”, teríamos pulado o muro e ido em busca das nossas próprias interpretações.

Ainda que sejam apenas do domínio da aura na nossa sensibilidade, acreditamos que a neutralidade impede-nos de expor as nossas próprias opiniões, impede-nos de ter acesso à “interpretação daquilo que as obras interrogam pelo seu próprio inconsciente ou por aquilo que não dizem, mas que, de facto, institui a sua derradeira identidade” (Martins, 2001:236).

A capacidade de nos espantarmos com o real não é um privilégio do homem civilizado. Pelo contrário, o homem civilizado já não se espanta com o deslumbramento das coisas simples. Nelas se espanca por não compreender os outros e, sobretudo, a si mesmo. O impulso para a criatividade pode ser uma manifestação do que podemos ter consciência; no entanto, e apesar disso, não o podemos escolher ou dominar por ter a sua origem num impulso inconsciente e involuntário.

É a partir da ideia da arte como um valor incondicional e como um impulso

imaginativo primitivo que melhor poderemos compreender as palavras de Martin

Heidegger, quando nos diz que: “A origem da obra de arte, a saber, ao mesmo tempo a origem dos que criam e dos que salvaguardam, quer dizer, do ser-aí histórico de um povo, é a arte. Isto é assim, porque a arte é, na sua essência, uma origem: um modo eminente como a verdade se torna ente, isto é, históric.” (Heidegger, 1977:62). De

97 acordo com Heidegger, a origem da arte está na origem do homem. A obra acontece a partir da essência poetante do homem; dito de outro prisma, o homem, no seu ato de

poetar uma obra, é simultaneamente criado por ela, ou seja, ao criar está ele próprio em

criação. Parece-nos importante destacar a reflexão de Heidegger, na medida em que, de facto, a sua linha de pensamento recai sobre a obra enquanto verdade e criadora do Ser e não sobre uma obra que é um produto da Estética, ou seja, produto de uma disciplina encarregada, não de fabricar o Homem, mas apenas obras de arte de mero embelezamento. Este autor afasta-se da visão ocidental que situa a arte num plano instrumentalizado e tecnicamente racionalizado. Uma visão que procura tecnicizar a poesia.

A poesia é a expressão artística primogénita do homem, no sentido de primordial, porque nos remete para a existência de uma espécie de intuição omnipoética presente em todos os homens, uma espécie de“intelecto cósmico” e universal que integra a experiência humana desde os seus primórdios. Algo que nos ficou dos nossos antepassados e que caberá deixar como testemunho da

reali(ver)dade aos nossos vindouros. Cremos que a poesia é pré-existente a qualquer

“construção técnica” da razão porque se instala no domínio daquilo que designamos como “arquétipo omnipoesiente”41.

De facto, como nos lembra Manuel Antunes, “cada época vive um clima próprio, em parte cria a sua e, em parte herança da anterior” (Antunes,1960:71). Numa obra diferente, o mesmo autor volta a insistir na mesma ideia e diz-nos o seguinte: “O homem dos tempos modernos existe, sente-se existir em continuidade e no prolongamento do mundo clássico descoberto” (Antunes, 1960:15). A verdade é que muitos dos aspetos do nosso comportamento atual estão profundamente enraizados na pré-história e isso não pode ser apenas compreendido à luz das necessidades exteriores, de proteção, de segurança, de alimentação, etc, ou da nossa própria evolução física, mas também à luz da necessidade que se situa além das necessidades básicas como, por exemplo, a artística.

41 Trata-se de um conceito proposto por nós, que radica na ideia de “inconsciente coletivo” de Jung, segundo o qual a humanidade comunga uma memória geneticamente herdada desde a sua origem. Na senda deste conceito coletivo de Jung e no que respeita à imaginação poética, pressentimos que a criatividade advém do caráter “genotípico” que a todos nos coube como herança. Portanto, parece-nos que há, por detrás do impulso criativo, uma essência involuntária que não está apenas relacionada com a sensibilidade ou com a inteligência; é uma espécie de “grito silencioso” que ecoa em todo o ser do artista, e esse grito, essa pulsão é individual, é de cada ser, não tem receita, e só é transmissível pela poesia, pela arte.

98 Parece-nos, pois, que a arte rupestre constitui um conjunto de sinais não de um passado remoto, mas de um passado (não ultrapassado) que permanece em nós de um modo latente, implícito e compreensível a partir de um arquétipo de índole não apenas omnisciente, omnipresente, mas também omnipoesiente e artística. Em nossa opinião, talvez a ciência não tenha provado ainda que os povos pré-históricos não se deparavam já com o mesmo fascínio que os poetas sentem perante aquilo que os faz transbordar a emoção. Talvez o homem tenha tentado poesiar-se mesmo antes de adquirir a fala e uma linguagem. Se, por exemplo, perante um perigo, o sentimento era o de medo, por que razão não poderiam também os antigos ser fruidores de sensações de prazer e de bem-estar? Não seriam essas pinturas narrativas de diversos acontecimentos? Não seriam já uma forma de fruição ou de preenchimento do vazio existencial embora in-

consciente? É necessário analisarmos a arte primitiva sem pré-conceitos. Formular

juízos que demonstrem a nossa dificuldade em suprimir um certo sentimento de superioridade perante as formas de expressão artísticas que diferem substancialmente daquilo que, para nós, é considerável obra poética. Além desta atitude de recusa não se coadunar com os princípios universais da arte é, paradoxalmente, uma despoetização da arte das nossas culturas atuais porque, se assim for, são obras que assentam, não numa “comunhão poética da imaginação”, isto é, nos valores ecuménicos da arte, mas, sim, numa atitude de menorização da arte dos Outros que tem obviamente como consequência a menorização e empobrecimento da arte em geral. No entanto, refira-se que tudo isso que ficou dito, fica dito, sem prejuízo das verdades científicas, nas quais obviamente acreditamos, pese embora tenhamos as nossas próprias ideias, quando o assunto é a poesia. Porque a verdade poética reside dentro da própria poesia.

E se “é proibida a entrada a quem não andar espantado de existir” (Ferreira, 1999:13) a arte nas sociedades primitivas era aquele momento em que o Homem, ainda destituído de palavras, arrancava o silêncio ao inefável e, na forma de desenhos rupestres, lançava às rochas o espanto de ser, estar a existir. A pulsão subjacente aqui era já a do homem à procura do “centro de si mesmo”, não numa espécie de logocentrismo, mas no poeticocentrismo, quer dizer, o homem à procura de se encontrar consigo mesmo e com o mundo que o excede. Assim, poesenhar poderia muito bem ser um modo poético de conhecimento do outro e de si mesmo, por vezes só proporcionado pela arte, essa cujo mérito reside no facto de ser uma ponte entre o homem e todas as possibilidades que o envolvem.

99 A arte rupestre, por mais remota que seja, continuará a falar para um horizonte em devir, continuará a ensinar o nosso presente às gerações vindouras até ao dia em que nós, ultrapassados pelos nossos sucessores, seremos os “primitivos” e eles, ao observarem os nossos avanços e progressos alcançados, não perceberão o porquê da nossa persistente incapacidade para nos humanizarmos uns aos outros e “civilizar” os nossos instintos mais “indígenas”; hão-de questionar-se acerca dos motivos que condicionam a vivência de uma existência transcultural genuína, hão-de se perguntar porque é que eles (neste caso nós), pese embora os êxitos contra as necessidades materiais, não alcançaram alternativas, por exemplo, à violência, “a violência com que todos nós, «civilizados» exprimimos correntemente essa mesma tendência imperativa para nos fixarmos sobre o nosso sistema privado, absolutamente pessoal, de convicções e normas de comportamento – com a consequente exclusão do outro, quer o outro nos seja tão próximo como um filho, um pai, ou um habitante anónimo do mesmo bairro. [...] A etnia privada de cada um de nós, o seu sistema pessoal de referências, as convicções, as normas, as crenças, as atitudes, os hábitos de vida com que mais fortemente se identifica – a etnia privada de cada um de nós é a medida de avaliação do outro. Fora dele, o domínio da tolerância esbate-se. E por tolerância, não entendemos aqui a piedosa inclinação para suportar o outro, sob genéricas alegações de humanidade ou de virtude, mas a capacidade para compreender para além das aparências imediatas, para compreender as motivações reais do comportamento alheio, e sobretudo, do nosso próprio comportamento. Por tolerância, não queremos significar a largueza de coração, mas acima de tudo, a largueza – possível – da compreensão.” (Monteiro, 1983:65).

Julgamos compreender o alcance da escolha da “compreensão” em detrimento da “largueza de coração”. A “largueza da compreensão” está intimamente ligada ao amor. Mas “o amor dá muito trabalho, pois é fruto de uma inteligência ecuménica, que conhece só quando mais quer conhecer, e de um espírito reflexivo, infinitamente desperto para a diversidade do Uno. Quem defendeu algo semelhante a isto caminhava para a fogueira há trezentos anos. [...] Esse homem chamava-se Giordano Bruno, e era um homem de amor, isto é, um homem que soube utilizar a sua violência para se tentar compreender a si mesmo, ao mundo e ao universo no sentido de mais compreensão, isto é, de mais violência para se compreender a si mesmo, ao mundo e ao universo, não excluindo nada, mas ecumenicamente incluindo tudo na mais bela das harmonias.” (Martins, 2001:20). De facto, como diz Abel Salazar: “No nosso

100 mundo mercantil, a arte é um luxo e não uma necessidade de compreensão e de entendimento entre os homens.” (Salazar, 2003:34).

Continuamos a preterir as plavras pelas imagens. Continuamos a pensar (e cada vez mais) por iamgens. Por mais que nos custe admitir, está inculcada em nós uma

primitividade mais acentuada do que daqueles que designamos de “primitivos” e

destituídos de capacidade de apreciação ou de sentido poético da realidade; no entanto, uma “linguagem”, por mais “grunhida” e primitiva que seja, é imaginação, condição suficiente para a produção estética. É precisamente esta perspetiva que coloca a hipótese da operatividade de um modo de raciocinar imagético que Francisco Soares nos dá como testemunho nas seguintes palavras: “A articulação de imagens não verbais é [...] a base de raciocínio e de inventividade dos homens de hoje e não uma regressão a formas primitivas de pensamento.” (Soares 2007: 113).

Portanto, o valor poético que nos sugerem tais pinturas, mais do que um retorno às formas de criatividade primitivas, é o de que elas fazem parte do nosso presente e modo de pensar por imagens. Não estamos a classificar a arte rupestre como poesia. Queremos simplesmente demonstrar que a arte ou o sentimento poético não são uma invenção do Homem contemporâneo; são, do nosso ponto de vista, uma consequência aprimorada do viver poético dos que outrora, tal como nós, se espantaram com o mundo e por ele se sentiram intuídos, envoltos num impulso que desconheciam mas que era já um prenúncio da arte atrelada a sistemas simbólicos pictóricos que, podendo não apelar diretamente à escrita, apelavam, seguramente, à tradução das perceções mais humanas.

Esse espanto, esse deslumbramento que decorre da entrada do homem nos mistérios do mundo, pode muito bem ser o que levou o homem primitivo a traduzir as suas observações em narrativas iniciáticas feitas a partir de uma “linguagem” críptica e gráfica.

A arte não reside nos objetos que observamos, mas sim, no modo como os

absor-Vemos. Esta ideia fortalece-se com as sábias palavras de Nelson Goodman, que

refere que: “A literatura da estética está atafulhada com tentativas desesperadas para responder à questão «O que é arte?» Esta questão, muitas vezes irremediavelmente confundida com a questão «o que é boa arte?», é crucial no caso da arte encontrada – a pedra apanhada na entrada da garagem e exposta num museu – e agrava-se ainda mais pela promoção das chamadas arte ambiental e arte conceptual. O pára- lamas amachucado de um carro numa galeria de arte é uma obra de arte? E como considerar algo que nem é sequer um objeto, e não está exposto numa galeria de arte

101 nem num museu – por exemplo, o escavar e encher um buraco no Central Park como prescrito por Oldenburg? Se estas são obras de arte, então todas as pedras nas entradas das garagens, todos os objectos e acontecimentos são obras de arte? Se não o são, o que distingue aquilo que é daquilo que não é uma obra de arte? O facto de estar exposto num museu ou numa galeria? Nenhuma destas respostas faz prevalecer qualquer convicção.

Como observei no início, parte da dificuldade reside em perguntar a questão errada – em não conseguir reconhecer que uma coisa pode funcionar como obra de arte em certos momentos e não noutros. Nos casos cruciais, a verdadeira questão não é ‘Quais os objectos que são (permanentemente) obras de arte?’ mas ‘Quando é que um objecto é uma obra de arte?’ – ou mais brevemente ‘Quando é arte?’

A minha resposta é que exactamente como um objecto pode ser um símbolo – por exemplo, uma amostra – em certos momentos e em certas circunstâncias e não noutras, assim um objecto pode ser uma obra de arte em certos momentos e não noutros. Na realidade, exactamente por funcionar, e enquanto funcionar, de determinado modo como um símbolo, um objecto torna-se uma obra de arte. A pedra normalmente não é nenhuma obra de arte enquanto está na entrada da garagem, mas pode ser tal quando exposta num museu de arte. Na entrada da garagem, ela não realiza habitualmente nenhuma função simbólica. No museu, ela exemplifica algumas das suas propriedades – propriedades de forma, cor, textura, etc. – O abrir e fechar do buraco funciona como uma obra enquanto a nossa atenção está dirigida para isso enquanto símbolo exemplificativo. Por outro lado, uma pintura de Rembrandt pode cessar de funcionar como uma obra de arte quando usada para substituir uma janela quebrada ou quando usada como coberta.” (Goodman, 1995:113-114).

A partir da perspetiva de Nelson Goodman, talvez se possa compreender melhor a perspetiva que temos vindo a indiciar. A esta ideia de “variabilidade” do conceito de arte que nos diz que um objeto, em determinado contexto, pode constituir uma obra de arte e noutro contexto constituir um objeto comum, sem valor artístico, associa-se a ideia de que a intenção do autor não justifica o seu valor poético ou artístico. Como já vimos, a mesma obra pode ser transportada a diversos contextos e em cada um deles despertar uma receção e uma compreensão que não serão unívocas, mas variáveis.

A ideia de que a arte rupestre não representa obras artísticas porque desconhecemos as razões por que foram criadas é uma visão redutora de algo que é efetivamente mais do que aquilo que as nossas posições teóricas podem alcançar.

102 Compete-nos a nós enquanto público, observadores, críticos e “leitores” das obras instituir-lhe significado.

Portanto, faz sentido afirmar que os desenhos primitivos, se apartados do contexto onde foram produzidos e transferidos num outro contexto, e “outro contexto” aqui não tem de ser necessariamente um museu, podendo ser uma das nossas paredes lá de casa, ganham estatuto de obra de arte, possivelmente com valoração poética. Esta lógica que da lógica não deriva, postula a ideia de que é o olhar que faz com que um objeto se transforme em obra de arte. É o observador que, ao absover e, sobretudo, ao absoVer-se na obra, confere o seu valor artístico através da sua interpretação.

O preço de uma obra de arte é condição necessária do seu valor artístico? É com base neste critério que justificamos o facto de existirem obras de arte e objetos que, sendo igualmente obras de arte, não são consideradas como tal? Ainda que uma obra de arte, num determinado contexto, não seja classificada, ou melhor, apreciada, como obra de arte, isso em nada altera o seu valor intrínseco e imanente.

O valor estético da arte [...] é variável em todos os seus graus sendo imposível que se mantenha numa imobilidade passiva. Os valores “eternos” mudam e transformam-se [...]. (Mukarovsky apud Martins 1995:238)

Aos poetas, essa espécie cujo mérito reside na capacidade de apreender o

inapreendível para depois o transmitir aos outros em forma de fulguração, cabe libertar

a arte do poder repressivo de interpretações estreitas que nos vão institucionalizando a imaginação.

A arte não está na obra em si mesma, ela começa naquele momento irremedialvelmente inefável em que, na presença de um objeto, nos sentimos reféns do silêncio e não encontramos a saída para onde encaminhar as palavras e com elas expressar o que sentimos.

É necessário pôr mais lenha no pensamento para que não se apague a fogueira evanescente da imaginação, talvez a mesma fogueira em que o homem, na sua

primitividade, nos ensinou a dar à luz a riqueza imaterial do mundo. O fogo. Esse

“nada” pré-luzente. Essa “luz original” que não era a arte, nem amor e, no entanto, paradoxalmente, continua a arder até hoje, “sem se ver”.

103 Além disso, como sublinha Abel Salazar: “o mistério é o verdadeiro conteúdo da arte, cuja forma exterior é aquilo que vemos, cuja essência é o que não vemos: e em volta de toda a verdadeira obra de arte paira essa auréola invisível que a deifica, sem a qual ela não é mais do que uma forma vazia do conteúdo. [...] Tal mistério é talvez um nada de que o homem faz um tudo; um nada que ele povoa de possibilidades impossíveis – não importa, porém, porque esse nada é, para o homem, tudo” (Salazar, 2003:141). Porque acreditamos na transversalidade da poesia, acreditamos que “existem e podem vir a existir tantas espécies de poetas quantas as maneiras de sentimentos e de invenções humanas que existem e podem vir a existir.” (G. Bruno apud Martins, 1995:106).

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CAPÍTULO IV