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Fonte: Fotos publicadas pelo Centro de Mídia Independente (CMI)

As marchas, a visibilização pública da atividade de trabalho e a ocupação compuseram o repertório de protestos mobilizados nessa fase da luta. Para muitos militantes e lideranças, a memória desse período é acompanhada de certa nostalgia. Ela é considerada a fase em que o movimento social cumpria mais fortemente o seu papel de mobilização. A participação dos catadores avulsos era mais facilmente alcançada nessa fase, em que ninguém tinha nada. Por outro lado, para alguns a lembrança desse período também é associada ao medo da repressão e à discriminação social. É o que relata uma catadora que participou de uma manifestação de rua:

a gente foi apoiar os catadores de Porto Alegre [...], a gente caminhou ali pela Borges de Medeiros, cantando, aí paramos na frente da Prefeitura, e antes de chegar lá, você tinha que ver o que tinha de polícia, era do choque, era brigada, era civil. Parecia que a gente era um bando de bandidos. [...]A gente é visto com maus olhos, tem gente muito preconceituosa aí. (Hilda89, catadora de Santa Cruz do Sul/RS)

Tratava-se de um período muito combativo diante da inexistência de canais institucionais de negociação. Essas formas de mobilização, por sua vez, contribuíram para a abertura do diálogo e a construção de políticas públicas que reconhecessem as associações e

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cooperativas de catadores, bem como os espaços de participação que elas passariam a ocupar, conforme expressa Alexandro Cardoso:

Em 2001 a gente não tinha conhecimento sobre muitas coisas, então nosso processo de luta era muito mais forte, muito mais combativo, porque a gente entendia que eram obrigações da gente ter as conquistas. Essas lutas foram as que culminaram na construção de leis, de políticas pros trabalhadores, que não existiam. Como a gente batia até muito forte e era um grito, digamos assim, popular sobre a reivindicação da reciclagem, reivindicação do protagonismo, reivindicação de ser uma entidade apartada e diferente da prefeitura, se criaram mecanismos através das leis pra que as cooperativas realmente fossem autônomas, de que houvesse leis para garantir o trabalho dos catadores. (Alexandro Cardoso, catador de Porto Alegre, liderança do MNCR)

Dessa forma, a fase de participação inaugurada pelas políticas públicas que reconhecem as cooperativas e associações caracteriza um período em que ao repertório da ação direta seriam agregadas rotinas de interação nas quais catadores e representantes do poder público dialogariam sobre sua implementação. Essa fase marca um período de menor assimetria na negociação, uma vez que os catadores agora dialogavam reconhecendo-se na condição de portadores de direitos, como revela o depoimento de D. Angela:

naquele tempo a gente fazia luta e não tinha conhecimento. A primeira coisa que a gente fazia era ir na porta das prefeituras, botar fogo nas lenhas, ir com grupos e fazer aquela bagunça. No caso agora que temos conhecimento a gente procura buscar as melhorias com nosso conhecimento, indo, conversando nas prefeituras, fazendo eles entenderem que a gente está indo preparado pelo fato de nós termos conhecimento, discutindo de igual para igual. Porque é bem importante agora a gente ir, sentar, conversar, dialogar, mas mostrando que nossos direitos são iguais aos deles, mas sempre sabendo que a gente tem direito de lutar por aquilo que a gente quer e precisa como catador. (D. Angela90, catadora de Santa Cruz do Sul/RS, liderança regional do MNCR)

3.4. Entre o diálogo institucional e a luta nas ruas

O diálogo para a implementação das políticas públicas ambientais que versam sobre os resíduos sólidos e contemplam o trabalho dos catadores se deu em conferências, audiências públicas, seminários e em reuniões específicas entre poder público e organizações de catadores. Paralelamente ocorreram atividades de debate público e ações diretas convocadas pelo movimento.

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Entre 2013 e 2014 foi possível documentar trinta eventos públicos (sistematizados por meio de quadro no Apêndice 1), em que catadores organizados pelo MNCR estiveram presentes. A tabela a seguir apresenta esses eventos por tipo e por instituição que os convocou:

Tabela 7 - Eventos públicos sobre resíduos sólidos e trabalho dos catadores no Rio Grande do Sul por tipo e por instituição que convoca (2013-2014).

SEM A SESA MP Comi ssão legis lativa Pref eitur as Mov iment o Audiência Pública 11 - 2 - - Conferência 1 1 - 4 - Encontro de Catadores - 2 - - 3 Ação Direta - - - - 4 Seminário - - 1 1 -

Fonte: Pesquisa de campo

De forma geral, os diferentes eventos cumprem o objetivo de adaptar as diretrizes apontadas pela PNRS ao contexto estadual e de promover a sua implementação pelos municípios. Institucionalmente, a maior propulsora desse processo é a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMA), que promoveu doze dos eventos mapeados, sendo onze audiências públicas. O segundo mecanismo de participação institucional mais frequente foram as conferências: do Meio Ambiente, de Saneamento e de Economia Solidária. Em seguida aparecem os encontros de catadores. Dois deles foram organizados pelo governo estadual no âmbito do projeto da Cadeia Binacional do Pet, programa de Economia Solidária que a SESAMP executava em parceria com o governo do Uruguai. Por fim, observam-se quatro ações diretas organizadas pelo MNCR e dois seminários organizados por instituições distintas. Entre as instituições promotoras em nível estadual, além da SEMA e da SESAMP, destaca-se ainda a Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, que no período sistematizado promoveu duas audiências públicas, mas no ano anterior havia coordenado um ciclo de debates de dez audiências públicas sobre a temática, para o qual contou com estreita colaboração do MNCR (RELATÓRIO..., 2012).

Essa sistematização torna evidente que, com a abertura de canais institucionais de diálogo, o movimento passou a participar de uma agenda mais ampla de atividades – que, por sua vez, interferiu no ritmo de sua rotina de protesto e a alterou. Esse período é, portanto,

marcado pela diminuição do número de ações diretas e pela ampliação dos espaços de participação. Desse calendário selecionamos dois ciclos de participação durante os quais o movimento complementava sua participação em esferas públicas convocadas pelo Executivo ou Legislativo com formas próprias de expressão e pressão.

O primeiro ciclo de participação analisado compreendeu as audiências públicas promovidas pelo Poder Legislativo e seus desdobramentos, que tiveram como assunto a elaboração da Política Estadual de Resíduos Sólidos, adequada à PNRS. A principal reivindicação que o movimento levou a esses espaços foi a da proibição da incineração no estado. Durante esse ciclo observou-se uma intersecção entre a rotina de participação e a rotina de protesto, que culminou na luta dos Catadores de Uruguaiana.

O segundo ciclo de participação consistiu em dez audiências públicas promovidas pelo Poder Executivo para a construção do Plano Estadual de Resíduos Sólidos.

3.4.1. Os projetos em disputa

Com os debates realizados na Conferência [Nacional do Meio Ambiente] ficou claro para nós que o modelo de gestão de resíduos sólidos que era baseado numa visão de mundo egoísta, visando o lucro e o poder, já não nos serve mais. E que se faz a hora de erguermos vozes tantas pela Reciclagem Popular, e por uma sociedade onde a riqueza, o poder e o conhecimento possam ser de todos(as) (MNCR, 2013b).

A instituição de um marco regulatório nacional sobre os resíduos sólidos abriu um campo de oportunidades e de disputa que envolve diferentes interesses, formas de manejo e tecnologias. Conforme debatemos no capítulo anterior, a efetivação das diretrizes que articulam as dimensões econômica, ambiental e social demanda a restauração do sentido público na prestação do serviço, que encontra resistência dos setores que se beneficiaram de sua mercantilização. As diferentes reuniões sistematizadas no calendário de eventos públicos apresentado anteriormente se constituíram, portanto, em palco de enfrentamento de projetos distintos. De um lado encontra-se o projeto da Reciclagem Popular defendida pelo movimento; de outro as propostas oriundas do setor privado, como incineração91,

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Por incineração compreendem-se todos os tipos de tratamento térmico dos resíduos sólidos, ou seja, todas as tecnologias que funcionam a partir da queima. Atualmente essa tecnologia é apresentada com outros nomes, como pirólise, gaseificação e combustível derivado de resíduo (CDR), que são apenas diferentes formas de combustão. Ver na internet: www.no-burn.org/index.php

conteinerização92 e triagem mecanizada93. Os espaços de debate contribuem para explicitar a intencionalidade da participação dos diferentes setores envolvidos na implementação da política pública estadual de resíduos sólidos.

O termo Reciclagem Popular é mencionado pela primeira vez num documento do MNCR em 2009. Ela consistiria em

mudar os pilares da indústria de reciclagem e manejo de resíduos sólidos no Brasil para poder solucionar esta urgente questão social. (...) é preciso investir esforços na construção de novos modelos de coleta seletiva solidária e de reciclagem autogestionária, que possibilitem o avanço dos trabalhadores nesta cadeia produtiva, ao mesmo tempo, que sirvam de referência para a construção de políticas públicas redistributivas de riquezas provenientes dos resíduos, e que sejam promotoras de direitos sociais vinculados ao trabalho. (MNCR, 2009)

Com o debate público em torno da implementação da PNRS, a Reciclagem Popular ganhou destaque nos materiais produzidos pelo MNCR e passou a ser definida em diversos documentos, vídeos, cartilhas e campanhas de divulgação94. Ela deu origem à reivindicação por uma política pública estruturante, que fosse capaz de superar o financiamento às cooperativas via edital, procedimento de seleção que exclui muitos grupos de catadores e faz com que as organizações concorram entre si. Por isso o movimento reivindica a criação de um Programa Nacional de Investimento na Reciclagem Popular (PRONAREP), com capacidade para atender a todas as associações e cooperativas de catadores segundo diferentes níveis de financiamento (MNCR, 2014a).

No contexto de uma política universal para a questão dos resíduos sólidos, a Reciclagem Popular passa a ser atrelada à consigna “100% de reciclagem com 100% de inclusão dos catadores” (MNCR, 2013c), deixando evidente que essa proposta se opõe às tecnologias de gestão dos resíduos sólidos que excluem o catador de sua atividade.

O antagonismo entre o projeto do movimento e as propostas da inciativa privada é expresso pelas diferentes relações de trabalho implicadas em cada caso. Enquanto a incineração, a conteinerização e a triagem mecanizada representam soluções tecnológicas de larga escala para a destinação dos resíduos sólidos urbanos e são intensivas em capital,

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Consiste no acúmulo do resíduo em contêiner previamente à coleta. Tal medida é mais onerosa ao erário público, geralmente ocasiona a mistura do resíduo comum com o reciclável e dificulta o trabalho de coleta e

de triagem. Ver na internet:

www.diarioregionalrs.com.br/noticias/28360/Geral/FACS_entrega_carta_com_consideracoes_sobre_edital_do _lixo_em_Santa_Cruz.

93 Consiste no processo de separação dos materiais recicláveis em larga escala e de maneira mecânica, por

meio de ímãs, peneiras etc. Esse processo ocupa menos trabalhadores do que a triagem manual e apresenta resultados inferiores, uma vez que os catadores conseguem separar uma maior variedade de tipos de materiais do que a máquina. Ver na internet: www.mncr.org.br/noticias/blog-sudeste/catadores-x-mecanizadas-1.

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gerando um número reduzido de postos de trabalho, a Reciclagem Popular é intensiva em trabalho e propõe a expansão das cooperativas de catadores e a distribuição da riqueza produzida entre os trabalhadores associados.

Os dois projetos também causam impactos diferentes sobre o orçamento e sobre a gestão pública. Os pacotes tecnológicos do setor privado, em geral, representam soluções únicas para os resíduos de uma região e necessitam de segurança financeira para a realização do investimento. Geralmente estão pautados pelo aumento constante do volume de resíduos gerados, que será o insumo de seu negócio. Dessa forma, demandam o modelo de gestão da Parceria Público-Privada (PPP) em que o poder público transfere por mais de vinte anos para a iniciativa privada as decisões sobre o que deve ser feito com os resíduos. A Reciclagem Popular, por outro lado, não representa uma solução única, mas possibilita combinar uma diversidade de formas de coleta, reaproveitamento e reciclagem que podem ser adequadas à escala local ou regional. Enquanto a proposta do setor privado gera um engessamento tecnológico e orçamentário que impede a construção de soluções variadas, a Reciclagem Popular aponta para um modelo de gestão participativa em que a sociedade civil está implicada na construção de soluções adequadas, bem como na mudança de hábito em relação ao resíduo que produz (ORS, 2013).

3.4.2. A luta por uma lei que proíba a incineração

Embora a legislação federal sobre resíduos sólidos seja bastante favorável às cooperativas e associações de catadores e à efetivação da Reciclagem Popular, ela carrega também uma ameaça na medida em que não veta a possibilidade de incineração. O texto define que esta poderá ser utilizada depois de esgotadas todas as possibilidades de reciclagem (BRASIL, 2010, Art. 9º). O lugar restrito estabelecido pela lei, no entanto, não intimida o lobby da incineração, que avança a passos largos. Não são raros os relatos sobre prefeitos que foram convidados a conhecer as modernas instalações de incineradores da Europa com as despesas de viagem patrocinadas pelas empresas interessadas em implantar essa tecnologia no Brasil. A tentativa de transferir essas indústrias para o nosso país é explicada pela legislação ambiental mais restritiva em implantação na Europa, que inclusive prevê a extinção das plantas incineradoras naquele continente até 2020 (UNIÃO EUROPEIA, 2012), o que força os detentores dessa tecnologia a procurar novos mercados.

Diante dessa ameaça, várias medidas foram tomadas pelo movimento ambientalista e pelo movimento de catadores para tentar barrar a migração dessa tecnologia. Destacam-se as ações da Aliança Global Contra a Incineração (GAIA), que, como contraponto à iniciativa empresarial, organizou viagens de lideranças de catadores à Europa para conhecer de perto os perigos dos incineradores. No mesmo sentido, a coalizão nacional contra a incineração e outras redes regionais conseguiram incidir em diversos espaços de debate e barrar95 – ou dificultar – a implantação da prática como solução para os resíduos sólidos urbanos. Nesses diferentes espaços, o movimento de catadores e o movimento ambiental aparecem unificados em torno dessa pauta comum. A mobilização nacional está refletida no resultado final da Conferência Nacional do Meio Ambiente96, que teve a proibição da incineração como a proposta mais votada.

1ª Proposta (...) Criar lei federal e/ou mudança na redação da Lei 12.305/2010, que

proíba toda e qualquer incineração de resíduos sólidos, desde a incineração de

resíduos domésticos até a incineração para geração de energia (termoelétrica), e todo e qualquer tipo de tratamento térmico, incentivando a implementação de tecnologias limpas para tratamento dos resíduos sólidos e geração de novos produtos, como a biodigestão (energia limpa) e compostagem para resíduos orgânicos (RESULTADO FINAL 4ª CNMA, 2013, grifos nossos)