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Capítulo 3 Movimento dos catadores no Rio Grande do Sul: entre o diálogo

3.2. A origem do MNCR/RS

No Rio Grande do Sul, assim como em Minas Gerais e São Paulo, as primeiras organizações coletivas de catadores datam do final da década de 1980 e são fruto da atuação de pastorais populares e de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica que iniciam o trabalho de agrupar aqueles que sobrevivem do lixo. Como menciona Martins (2003), a Igreja Católica representava, no contexto da ditadura militar, a instituição menos vigiada e, portanto, menos sujeita a repressão. Isso fez com que os setores mais progressistas da Igreja passassem a canalizar diversas demandas populares. Fruto do trabalho de alguns religiosos, a primeira associação dos catadores do Rio Grande do Sul foi fundada em 1987, na Ilha Grande dos Marinheiros. Como mencionamos no capítulo anterior, esse local era então utilizado para deposição dos resíduos de Porto Alegre e para a criação de suínos. Segundo relato das lideranças religiosas que trabalharam para a organização dessa primeira associação:

o que nos chocou imediatamente foi a grande quantidade de lixo, particularmente na Ilha Grande dos Marinheiros, lado Norte, cobrindo toda a superfície habitável, com grandes montes sobre os quais estava a maloquinha de cada família, rodeada de pequena criação de porcos. Todo esse lixo provinha das calçadas de Porto Alegre, retirado por carroceiros que, com suas cargas atravessavam as maravilhosas pontes do Guaíba. Lixo roubado, apostrofavam os administradores da cidade, porque, “uma vez nas calçadas, o lixo torna-se propriedade do poder público”. (CECCHIN, M e CECCHIN, A; 2015, p.48)

Nesse mesmo período, um grupo de catadores de um assentamento urbano, denominado Santo Operário, na cidade de Canoas, começou a se articular também com o apoio dos religiosos e a reivindicar o apoio da prefeitura para seu trabalho (CECCHIN, M e CECCHIN, A; 2015). Os dois grupos, o da ilha e o de Canoas, eram constituídos por carroceiros, que utilizavam suas carroças nas primeiras passeatas públicas para reivindicar o apoio da prefeitura, conforme registrado pelo jornal Zero Hora:

Em 30 carroças decoradas com faixas reivindicatórias, os catadores de ferro-velho de Canoas, dirigiram-se à Prefeitura daquele município para pedir o acesso ao lixo para benefício da comunidade. O prefeito Carlos Giacomazzi, no entanto, não atendeu o pedido da categoria. Ele pretende instalar uma usina de lixo “e com isto, abrir a possibilidade de 80 empregos diretos”. (Zero Hora, 04/05/1987, apud CECCHIN, M e CECCHIN, A; 2015, p.45.)

Conforme Matilde e Antônio Cecchin (2015, p.45), que articularam esses primeiros grupos, a ideia de utilizar as carroças na manifestação de rua deve ser oriunda da procissão anual das carroças realizada para celebrar o aniversário da Vila Santo Operário. Foi

de carroça, com as casas de madeira desmontadas em cima, que chegaram as primeiras famílias que ocupariam a região. O acesso ao terreno só era possível por esse meio, pois a ponte então existente não suportava o peso de um caminhão ou uma caminhonete.

A carroça e o carrinho de coleta irão se tornar não só instrumento de trabalho, mas instrumento de luta para dar visibilidade pública a essa ocupação nas diferentes marchas e protestos organizados pelas associações e, mais tarde, pelo movimento de catadores, como discutiremos em seguida.

Em 1990, durante o mandato do prefeito Olívio Dutra (PT), Porto Alegre instituiu seu programa de coleta seletiva, o que levou à ampliação do número de associações de catadores na capital – em 1996, elas chegaram a oito (MARTINS, 2003, p.85). Com a implementação dessa política pública municipal, também cresceu o leque de apoiadores, aos quais se somaram, além do grupo eclesial, ONGs e universidades. O conjunto de entidades atuantes na questão da reciclagem deu origem, conforme Michelotti (2006), a dois fóruns: o de voluntários, constituído por organizações de apoio, e o fórum de recicladores, formado pelas associações de catadores. Em 1998, essa segunda instância fundou a Federação das Associações dos Recicladores de Resíduos Sólidos do Rio Grande do Sul (FARRGS), que marca, conforme o autor, o início do protagonismo dos catadores: em vez dos projetos serem feitos para os catadores, passam a ser realizados com a participação deles.

A origem da FARRGS está muito relacionada à política de coleta seletiva implantada na capital e à necessidade da existência de uma figura jurídica que representasse o conjunto da categoria, de um lado evitando a negociação individualizada com cada associação e de outro permitindo propor projetos mais amplos dentro da cadeia produtiva da reciclagem. Apesar de emergir de uma realidade circunscrita à capital, desde o início a ideia foi desenhada para abrigar todas as associações existentes no estado (MICHELOTTI, 2006). Em 1996, o fórum de recicladores já contava com dez associações de outras cidades da Região Metropolitana de Porto Alegre, além das oito associações da capital, tendo em 1998 a adesão de diversas associações do interior do Rio Grande do Sul (MARTINS, 2003, p.122).

A FARRGS reunia um leque amplo de apoiadores, que iam desde setores ligados ao PT, como a CUT, e setores dos Movimentos Populares ligados às CEBs até algumas empresas com atuação em reciclagem de plásticos (CECCHIN e CECCHIN, 2015, p.197).

Foi por meio da FARRGS que alguns catadores gaúchos participaram dos encontros e das articulações que antecederam a fundação do MNCR. Esse processo, que confluiu para a organização de um movimento social nacional, também produziu divergências sobre sua condução. A partir de estudos anteriores, como os de Martins (2003) e de Michelloti

(2006), é possível afirmar que no Rio Grande do Sul tais tensionamentos ficaram polarizados entre os religiosos, que iniciaram as primeiras experiências, e uma tendência anarquista formada por catadores e apoiadores, que procurava limitar o papel das organizações externas às associações de catadores na orientação da política e afastar inciativas empresariais do campo de decisão. Enquanto o grupo religioso tendia a fomentar uma coalizão mais ampla e apostava no diálogo institucional, a tendência anarquista via problemas na entrada de associações que não tivessem origem no campo popular e defendia a ação direta como principal forma de luta. Essas divergências foram acomodadas por vários anos no processo de gestão da entidade, mas se exacerbaram com a fundação do movimento nacional.

Em sua dissertação de mestrado, Oliveira (2010) estuda as redes sociopolíticas no Rio Grande do Sul que se articularam em torno da questão social da reciclagem e apresenta uma análise dos conflitos ocorridos durante o processo de constituição do MNCR. Para o autor, o movimento surge para se opor a três formas de encaminhamento colocadas para a questão social dos catadores. A primeira consiste na negação da simples mercantilização da questão social da reciclagem, cuja solução seria que os catadores se tornassem pequenos empresários. A segunda é a rejeição ao assistencialismo, que levaria os catadores a ser tratados como beneficiários de certas políticas, sem margem para intervenção em sua formulação. A terceira é a recusa à burocratização via projetos para os quais os catadores seriam simplesmente público-alvo, ficando sua execução a cargo de outras instituições. O MNCR surge, portanto, como reação a essas formas de encaminhamento que compunham o campo de debate sobre a reciclagem, e propõe o protagonismo dos catadores.

Dessa forma, o MNCR deu início a uma nova fase de articulação dos catadores no estado do Rio Grande do Sul, por meio da coordenação estadual do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, com forte participação da tendência anarquista. Esse processo produziu gradativamente um afastamento da FARRGS, que deixou de exercer seu papel de articulação e representação estadual. As lideranças religiosas Matilde e Antônio Cecchin sintetizam assim esse conflito interno:

A disputa por espaço junto aos catadores é essencialmente uma disputa de método de trabalho – metodologias que, em determinados pontos, convergiam para pontos em comum e, em outros, em situação de divergência. Questão de fundo era a inspiração e a influência na FARRGS de uma militância Católica referendada pela Teologia da Libertação e por outro lado o MNCR aqui no Rio Grande do Sul sob a influência do Movimento Anarquista Internacional. Obviamente que, nesse choque ideológico enquanto condução e organização dos trabalhadores, haveria disputas em várias frentes. [...] hoje a federação praticamente inexiste enquanto atuação junto aos catadores, e o MNCR cresceu em influência, principalmente levando-se em conta o lugar que ocupa, junto ao governo federal. (CECCHIN e CECCHIN, 2015, p.197)

Embora o processo gaúcho de organização de catadores seja marcado por essa ruptura, é possível identificar convergências entre as diferentes forças que articularam os catadores no estado no contexto da implementação da PNRS. Conforme discutiremos no capítulo seguinte, tanto o MNCR como articulações oriundas do período da FARRGS são responsáveis por experiências municipais de contratação de cooperativas e associações de catadores para a realização da coleta seletiva. Outro ponto em comum é a luta contra a incineração e contra outros processos de terceirização entendidos como privatização da gestão dos resíduos sólidos. Trata-se, portanto, de articulações políticas que possuem uma raiz comum e que continuam agindo no mesmo campo e do mesmo lado. Embora nem todas as associações e cooperativas de catadores do estado integrem o MNCR, elas se reconhecem participantes de uma mesma luta, que o movimento passou a representar e tornar pública desde 2001.