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Capítulo 2 – O trabalho dos catadores e o serviço público de limpeza urbana

2.2. Trajetória do serviço público de limpeza urbana

2.2.3. Terceirização

A terceira fase do serviço público brasileiro – conforme a periodização proposta – consiste na concessão dos serviços para a iniciativa privada. Se na fase de sua implantação as empresas eram estrangeiras, agora a concessão é conferida às empresas nacionais. Nessa fase o serviço de limpeza urbana é transformado em mercadoria. Trata-se de uma mercadoria em que “produção e consumo são simultâneos”, ou seja, ao mesmo tempo em que o serviço de limpeza urbana é realizado, os usuários se beneficiam dele. O que qualifica esse trabalho como mercadoria é o fato de ele não ser ofertado diretamente ao usuário, mas por intermédio de uma empresa capitalista (BRAVERMAN, 1981, p.304). Nesse modelo, a atividade de garis, motoristas e outros empregados da empresa assume o formato de “trabalho que produz lucro para o capital” (Ibid., p.305). Conforme desenvolveremos a seguir, a lucratividade do serviço passa a ser o seu objetivo principal, e a esse imperativo são submetidas as escolhas tecnológicas e as decisões que afetam o meio ambiente e as condições de trabalho.

Nessa fase a prefeitura contrata uma empresa privada para prestação integral do serviço de limpeza urbana ou de partes dele. No caso de São Paulo, esse processo se iniciou precocemente no final da década de 1960. A primeira tentativa de contratação previa que a remuneração da empresa fosse feita exclusivamente a partir do resultado do aproveitamento do lixo (SÃO PAULO, 1960). Vigorava a ideia, construída na fase anterior, de que o lixo carrega em si sua própria solução, podendo ser convertido num ativo econômico. No entanto, como informam Cytrynowicz e Caodaglio (2012, p.110), esse formato não atraiu nenhuma empresa para o setor.

No ano de 1967, o poder público passou gradativamente a execução do serviço de algumas áreas da cidade para a iniciativa privada. As empresas contratadas não possuíam experiência com a execução do serviço e valeram-se incialmente do conhecimento acumulado no setor público sobre o assunto. Nessa fase permaneceram sob controle da prefeitura o planejamento, a fiscalização e a execução do serviço nas áreas centrais (MARQUES, 2005).

As primeiras empresas contratadas eram da área de construção civil. Conforme o depoimento de um engenheiro que trabalhava numa das primeiras empresas, o argumento da estabilidade no repasse financeiro foi o que as atraiu a investir nesse novo setor:

O que nós levamos à Vega Sopave foi o argumento de que o serviço de coleta de lixo gerava estabilidade em termos de receita ao longo de cinco anos – prazo do contrato – ao passo que a construção é uma curva senoidal, de altos e baixos. Então isso ajuda a organizar qualquer empresa. (Depoimento de TadayukiYoshimura para CYTRYNOWICZ e CAODAGLIO, 2012, p.136)

O valor repassado às empresas era inicialmente proporcional à quilometragem rodada, passando depois, por reivindicação das próprias empresas, a ser proporcional ao volume coletado. Sobre esse assunto, o depoimento de Paulo Lustri, então contador da primeira empresa contratada na cidade de São Paulo, informa:

Essa licitação era para a coleta de resíduos sólidos domiciliares e a medição desse trabalho era feita por quilômetro de rua, e não por tonelada de lixo. Então isso gerou um problema muito sério com a contratada. Por quê? A cidade cresce verticalmente, aumenta a quantidade de lixo por quilômetro e o prejuízo é muito grande. Por isso, depois foi realizada uma modificação no contrato. (CYTRYNOWICZ e CAODAGLIO, 2012, p. 137)

Conforme revela a pesquisa de Marques (2005), libertas dos itinerários prescritos pelo setor público, as empresas se sentiram estimuladas a expandir o serviço para regiões não atendidas, antes mesmo que a demanda surgisse por parte do poder público ou dos moradores, por conta do mecanismo de remuneração por tonelada. Conforme publicação do setor empresarial sobre a história do serviço de limpeza urbana de São Paulo, as primeiras empresas estavam engajadas em campanhas de conscientização, nas quais a limpeza era associada ao desenvolvimento e à cidadania. Essas campanhas envolviam estratégias para visibilizar a atividade. Os uniformes cinza foram substituídos pelos de cor laranja, e os caminhões ganharam cores e inscrições. Em muitas regiões ainda não havia o hábito de disponibilizar o resíduo para a coleta, e as companhias tiveram papel ativo em sua consolidação (CYTRYNOWICZ e CAODAGLIO, 2012, p.137). É possível afirmar então que boa parte da demanda pela coleta de lixo foi produzida pelo setor empresarial.

Coerentemente com o objetivo de expandir a coleta de lixo, colocado para as empresas naquele contexto, observam-se as soluções tecnológicas por elas introduzidas. Além das campanhas de divulgação, é possível mencionar a introdução de técnicas para otimizar o trabalho dos garis:

Eles [chefes de limpeza - funcionários da prefeitura] faziam cada setor à medida que havia demanda da população. Como engenheiro industrial, montei os itinerários baseados em programas de tempos e métodos, eu estimava, teoricamente falando, velocidade, tempo para o gari sair do caminhão, pegar o tambor de lixo, chegar ao caminhão, entornar o lixo, voltar para devolver a lata. Calculei teoricamente quanto caberia em cada lata de lixo, quantos quilos pesaria e quanto seria a capacidade do caminhão. (Depoimento de Tadayuki Yoshimura para CYTRYNOWICZ e CAODAGLIO, 2012, p.136)

Do ponto de vista dos equipamentos, destaca-se a introdução e o aperfeiçoamento do caminhão compactador, que quadruplicava a capacidade de coleta em relação ao modelo de veículo anterior (CYTRYNOWICZ e CAODAGLIO, 2012, p.136).

A experiência paulista de terceirização da coleta revela a maneira como o setor empresarial transformava o lixo numa fonte de mercado lucrativa. A partir de ajustes contratuais e do desenvolvimento de tecnologias capazes de coletar maior volume de lixo em menor tempo, a empresa privada configurava a lógica: “quanto mais lixo, mais dinheiro”.

A terceirização ocorrida no setor, nas décadas de 1980 e 1990, acompanhou a implantação do ideário político neoliberal. Como resultado desse processo, no ano 2000, 70% dos resíduos brasileiros eram coletados por empresa privada (JACOBI e BESEN, 2006).

Enquanto São Paulo foi pioneira nessa modalidade, iniciando a terceirização do serviço de coleta ainda na década de 1960, Porto Alegre manteve o serviço sob execução da administração estatal até os anos 1990 (PORTO ALEGRE, 2013). Em 2005, 85% da coleta seletiva já estavam sob responsabilidade de empresas terceirizadas (DIRETOR..., 2005b). Um relatório do DMLU do ano seguinte sedimentava a mudança em curso: a responsabilidade do departamento seria, a partir de então, de planejar, gerenciar, fiscalizar e regular o serviço de limpeza urbana, passando a sua execução às empresas terceirizadas (DMLU, 2006, p.8). Essa mudança foi anunciada pelo então diretor do DMLU como uma tendência irreversível. Dessa forma, mesmo que tardiamente, Porto Alegre, assim como a maior parte das capitais brasileiras, aderiu ao ideário neoliberal em sua política de gestão dos resíduos.

Conforme os dados da Pesquisa Nacional do Saneamento Básico (PNSB), existe uma relação entre o número de habitantes de um município e o nível de participação da inciativa privada na execução do serviço. Quanto maior a densidade populacional da cidade, maior o nível de terceirização do serviço de limpeza urbana. Nos municípios com até 50 mil habitantes 36,6% das entidades prestadoras do serviço são privadas, enquanto 63,4% são públicas. Nos municípios acima de 500 mil habitantes, essa relação se inverte: 26,6% do serviço são prestados por ente público, enquanto 73,4% estão a cargo da inciativa privada.

Nos municípios acima de um milhão de habitantes, o percentual de terceirização do serviço chega a 90% (IBGE, 2010).

Dessa forma, constata-se que a inciativa privada opera preferencialmente nas grandes e médias cidades, que possuem maior arrecadação de impostos e, portanto, melhores condições de financiar esse serviço. Conforme a PNSB, o orçamento do serviço de coleta e gestão dos resíduos sólidos urbanos (RSU) pode chegar a 20% dos gastos do município (IBGE, 2010).

No entanto, nem sempre há dados disponíveis sobre o seu orçamento detalhado. No Brasil, não existe uma tabela nacional de referência para a prestação desse serviço71. Os contratos são estabelecidos entre prefeituras e empresas, e as pesquisas com abrangência nacional são recentes sobre essa temática72.

Na ausência de dados mais consistentes sobre quanto custa aos cofres públicos73 manter a cidade limpa, os estudos de caso e entrevistas com gestores revelam que o princípio que segue orientando o cálculo dos custos é o da produtividade. O repasse público é proporcional ao volume varrido, coletado e aterrado pela empresa contratada (MARQUES, 2005; MELO, 2012; WIRTH, 2010).

Em geral, observa-se dificuldade de fiscalização da execução do serviço pelo órgão público (MARQUES, 2005). Embora seja sua incumbência legal, frequentemente esse órgão está desprovido das ferramentas técnicas e de pessoal qualificado para responder a ela. São raras as prefeituras que possuem sistemas de informação virtuais, rastreamento dos caminhões etc. Alguns depoimentos dão conta de que, ao contrário do que seria desejável, no contexto atual, muitas prefeituras estão se desfazendo de seu corpo técnico, que já era bastante restrito74. A tendência ao desmonte das áreas técnicas do Estado também foi observada em nível internacional com o avanço da terceirização (GANDY, 1994, p.11).

71 Informação obtida durante o 1º Seminário Nacional Rotas Tecnológicas Favoráveis à Inclusão dos Catadores e

à Reciclagem nas Políticas Públicas de Gestão de Resíduos Sólidos Urbanos (RSU), ocorrido nos dias 25 e 26 de setembro de 2013, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

72 O Ministério das Cidades realiza um diagnóstico anual sobre a situação dos resíduos sólidos, que passou a ter

abrangência nacional em 2009 e desde então o número de municípios participantes tem crescido (BRASIL, 2015a, p.3).

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A falta de transparência nos contratos entre prefeituras e empresas privadas não é uma particularidade do serviço de limpeza urbana. No caso do serviço de transporte público, essa foi uma das questões colocadas em evidência pelo Movimento Passe Livre, que tomou as ruas do país em junho de 2013. O que justifica o aumento da passagem de ônibus? Como a tarifa é calculada? Embora em algumas capitais os aumentos tenham sido revogados diante da pressão popular, essas perguntas permanecem sem resposta.

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No caso de São Paulo, o processo de terceirização tem levantado uma série de suspeitas sobre diversas administrações, que tiveram suas contas questionadas e irregularidades apuradas no custeio desse serviço público (JACOBI e VIVEIROS, 2006).

Nesse formato, em que a empresa é protagonista, seguem preponderando as formas tradicionais de manejo (coleta comum e disposição final em aterro ou lixão). Em 2008, conforme a PNSB, 50,8% das unidades de destino de resíduos sólidos brasileiras eram lixões75, 22,5% aterros controlados76 e 27,7% aterros sanitários77 (IBGE, 2010, p.60).

No caso da limpeza urbana, o papel das empresas passou a ser muito mais abrangente do que a simples prestação de um serviço público. Elas têm grande influência na definição sobre como ele será prestado, decidem os preços e realizam manobras envolvendo inclusive greves de funcionários para que esses preços sejam praticados. É o que conclui a pesquisa de Marques (2005) após analisar a evolução da limpeza urbana em São Paulo e a relação estabelecida em cada período entre o governo municipal e as empresas prestadoras do serviço:

[...] o padrão dos investimentos públicos no setor revela que estes nem sempre estão respondendo a demandas sociais, mas sim das próprias empresas, que interessadas em aumentar seus lucros fazem uso de todo tipo de estratégia. Isso fica bastante evidente se analisarmos o modo como as empresas trabalhavam: ao menor sinal de que a Prefeitura abriria licitações colocando seus respectivos domínios em risco, ou quando a Prefeitura atrasava pagamentos, ou propunha uma nova – e mais justa – planilha de custos, elas ameaçavam demitir funcionários, que por conta disso entravam em greve e prejudicavam toda a população paulistana. Ameaçar os funcionários com demissões constituía um dispositivo do qual as empresas fizeram uso constante, pois a mera ameaça de que os garis78 entrariam em greve inquietava os administradores municipais. Esta foi a maneira encontrada pelas empresas para pressionar a Prefeitura. (MARQUES, 2005, p.68)

A partir da experiência de São Paulo é possível constatar que outra dimensão sobre a qual as empresas passam a ter o domínio é o da técnica. À medida que o princípio que orienta os contratos é o do “quanto mais lixo, mais dinheiro”, é notório que esse princípio

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O lixão consiste num local para deposição de resíduos sólidos sem qualquer forma de controle ou minimização dos efeitos ambientais dessa ação.

76 São áreas de deposição de resíduos sólidos periodicamente cobertas com camadas de terra. 77

São áreas de deposição em que, além da cobertura com terra, há captação e queima do gás e captação e tratamento do chorume provenientes do processo de decomposição.

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Durante o carnaval de 2014 no Rio de Janeiro o país todo tomou conhecimento da greve dos garis, pois estes deixaram de limpar o palco do carnaval mais famoso do mundo como forma de reivindicar melhores salários. Diferentemente do que a pesquisadora apurou para o caso paulista, a greve carioca foi organizada pelos trabalhadores independentemente do sindicato. Durante as manifestações a categoria denunciava a disparidade entre os valores contratados pela prefeitura para a prestação do serviço e a remuneração de sua principal força produtiva. Um dos cartazes numa das passeatas trazia os valores dos diferentes salários pagos pela Companhia Municipal de Limpeza Urbana (COMLURB): gari (R$ 802,00), agente de limpeza urbana (R$ 1.800,00), gerente (R$ 8.000,000), diretor (R$ 25.000,00), presidente (R$ 28.000,00).

também influencia as soluções técnicas para a gestão dos resíduos produzidas a partir da necessidade dessas empresas. O caminhão compactador, a coleta com elevação de contêiner, a triagem mecanizada e a incineração são soluções para lidar com um grande volume de resíduo ocupando um pequeno número de trabalhadores. São, portanto, intensivas em capital. Todas essas tecnologias estão orientadas para a coleta e destinação final dos resíduos. Dessa forma, pautada por uma dinâmica em que mais lixo significa mais dinheiro, a empresa privada implantou soluções técnicas contrárias à redução do resíduo e à reciclagem. Conforme expressa a urbanista Raquel Rolnik:

É um absurdo que a cidade mais importante e rica do Brasil [São Paulo] tenha um percentual de coleta seletiva de lixo e reciclagem tão ínfimo. Isso se deve a um modelo de gestão baseado na ideia de tratar os resíduos como mercadoria, como um campo de produção de negócios, em que o mais importante é que as empresas que trabalham com lixo ganhem dinheiro. Se tiver reciclagem, terá menos lixo e menor será o lucro das empresas (ALISSON, 2011).

É nítida a instauração de um sentido privatista que orienta a elaboração dos contratos, embora não seja possível falar em privatização do serviço de limpeza urbana no caso brasileiro, pois este continua sendo de responsabilidade do poder público, que terceiriza parte de sua execução. Esse sentido privatista também orienta a construção de soluções tecnológicas para lidar com uma grande massa de resíduos. Como resultado desse processo, a coleta seletiva ocupa espaço marginal no serviço de limpeza urbana. A Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental (SNSA) informa que 3,5% dos resíduos brasileiros são coletados seletivamente pelos sistemas oficiais79 (BRASIL, 2015b, p.68).

O processo de avanço do interesse privado sobre o serviço público tende a ser acentuado pela realização de Parcerias Público-Privadas (PPPs). Esse formato de contratação, instituído em 2004 por lei específica (BRASIL, 2004), autoriza a concessão de serviços públicos às empresas privadas pelo prazo de até 35 anos e prevê que pode haver subsídios públicos à atividade e cobrança de taxas aos usuários. Para a empresa, são dessa forma estabelecidas as condições para um investimento seguro, em que o retorno financeiro é assegurado pelo Estado. Por isso, a terceirização via PPPs fornece as garantias necessárias para a consolidação de um mercado lucrativo nos processos de destinação de resíduos, em que as empresas têm segurança para investir em processos tecnológicos que só se viabilizam economicamente no longo prazo, como o da incineração.

79 Ao mesmo tempo, conforme discutido no capítulo 1, uma pesquisa feita sobre a cadeia produtiva da

reciclagem revela que a atividade informal de catadores eleva para 12% a quantidade de resíduo sólido urbano reciclado (RUTKOWSKI, VARELLA, CAMPOS, 2014).

Ao mesmo tempo em que se observa o aumento da terceirização nos serviços relacionados aos resíduos sólidos, verifica-se, de outro lado, por influência da agenda ambiental internacional, um conjunto de iniciativas de implantação de coleta seletiva em diversas cidades do país que trazem aportes importantes para a reflexão, embora pouco significativas numericamente e em termos de abrangência do serviço. Na maioria dos casos80, os projetos eram voluntários e ocorriam em alguns bairros, à margem da política de limpeza urbana. A sistematização do conjunto de experiências brasileiras realizadas na década de 1990 contribuiu para contestar a ideia de que a coleta seletiva pudesse ser sustentada pela conjugação entre o engajamento ambiental e a venda do material. Pouco se falava de suas complexidades, uma vez que elas eram tidas como soluções que são “um bem si”. Os resultados do seminário que reuniu os representantes dos diferentes municípiosapontam que as experiências de coleta seletiva encontravam dificuldades para se manter e se consolidar, pois possuíam necessidades orçamentárias que entravam em choque com os interesses vigentes no modelo de limpeza urbana (EIGENHEER, 1993).

A partir dos anos 2000, essa situação tem sido tornada pública pelo Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, que denuncia a má gestão dos resíduos sólidos urbanos levada a cabo por empresas privadas conveniadas com o poder público.

Hoje, os municípios pagam milhões por mês para que empresas enterrem o lixo. O justo seria que isto fosse pago aos catadores, por impedirem que os resíduos sejam enterrados e poluam o meio ambiente. Esta atitude permite a geração de renda, a inclusão social e a produção de matérias-primas limpas, preservando o meio ambiente. (MNCR, 2009a, p.57)

Nos municípios em que o sentido privatista é predominante, os catadores continuam invisibilizados, sobrevivendo em lixões ou limitados à condição de triadores, conforme descrito na fase anterior.

Vejamos agora como o funcionamento da coleta seletiva privatizada afeta o trabalho do catador. Nesse formato, em vez do órgão público, a empresa privada passa a ser responsável pela realização da coleta seletiva, se implantada na cidade. A empresa despeja o material coletado numa unidade ou galpão para que seja triado pelos catadores.

Nos contratos de prestação de serviço, a empresa costuma ser remunerada pelo poder público proporcionalmente ao peso do material coletado. Esse critério, conforme anteriormente descrito, foi sugerido pelas empresas e utilizado por elas como estímulo econômico para a expansão do serviço. Enquanto, para o lixo comum, que será aterrado, mais

80 Bairro São Francisco (Niterói/RJ); favela Monte Azul (São Paulo/SP); São Sebastião/SP; Limeira/SP; Santos/

quilos coletados com o mesmo caminhão representam maior eficiência do serviço, para o material reciclável essa relação é inversa. O reciclável, como será posteriormente separado por tipos, precisa ser coletado sem ser compactado, o que torna cada carga mais leve, mas mais adequada para o posterior trabalho de triagem. No entanto, em vez de operar com critérios distintos para serviços com objetivos diferentes, geralmente o mesmo critério aplicado ao lixo comum é utilizado também para o serviço de coleta seletiva.

Como consequência da lógica de operação da empresa, o resíduo reciclável chega de forma compactada e misturada ao lixo comum nas usinas e galpões de triagem em que será manuseado pelos catadores. Além disso, os cooperados frequentemente alegam que a empresa de coleta “ganha em dobro”, pois o rejeito resultante do processo de triagem (matéria orgânica e resíduos não recicláveis) é novamente coletado pela empresa, serviço pelo qual ela é novamente remunerada. Dessa forma, ironicamente, a lucratividade da empresa parece ser inversamente proporcional à qualidade do serviço de coleta seletiva que realiza.

Por isso, em muitos casos, a qualidade desse serviço é contestada pelos grupos de catadores. Como crítica a essa situação, o MNCR criou uma chamada que sintetiza a problemática: “Coleta seletiva sem catador é lixo!”

Na gestão dos resíduos sólidos orientada pelo sentido privatista, a figura da empresa como instituição protagonista e principal determinadora da solução tecnológica é fortalecida, e o controle social e as soluções aportadas pelas cooperativas de catadores como coleta seletiva e a reciclagem são prejudicadas.

Enquanto na concepção estatista de manejo dos resíduos o lixo é um problema que carrega em si uma potencial solução – pois sua comercialização pode se tornar lucrativa, o que leva o lixo e as pessoas que dele sobrevivem a se transformar em alvo de um controle burocrático –, na concepção privatista a empresa constrói o lixo como um problema para o qual ela possui uma solução tecnológica que deve ser financiada pelo Estado. Ao passo que a concepção estatista limita, disciplina e controla a atuação do catador, a concepção privatista opera segundo uma lógica contrária à própria coleta seletiva e à reciclagem – e, portanto, ao trabalho do catador organizado.