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Capítulo 2 – O trabalho dos catadores e o serviço público de limpeza urbana

2.1. A tecnologia como construção social

Diferentemente da tendência predominante na percepção da ciência e tecnologia, que entende que seu desenvolvimento é independente das questões sociais, surgem na década de 1960 os Estudos Sociais em Ciência e Tecnologia51. A pergunta fundante desse campo, diante dos diversos questionamentos no período pós-guerra, é se a ciência e a tecnologia trariam apenas efeitos positivos para a humanidade.

A partir da crítica à concepção hegemônica, diversos pesquisadores se comprometem com a elaboração de uma teoria da tecnologia que permita a compreensão histórica e sociológica do fenômeno e que supere a visão instrumental e de neutralidade comumente atribuída a ela. Dessa forma, por meio de um enfoque multidisciplinar, a tecnologia passou a ser analisada enquanto construção social. Diversos estudos permitiram tornar nítida a complexidade dos desenhos e a multiplicidade das escolhas disponíveis que, num processo de negociação, são afuniladas num projeto técnico. Eles revelam que, para cada tecnologia consolidada, inúmeros projetos e ideias foram analisados e testados. Os critérios que determinaram a escolha de um ou outro não respondem a uma concepção de eficiência neutra, mas ao jogo de interesses dos grupos envolvidos no processo de desenvolvimento. O empenho para analisar essa realidade geralmente ocultada no desenvolvimento tecnológico tem sido caracterizado como a “abertura da caixa preta da tecnologia” (THOMAS, 2008).

Uma das contribuições importantes a esse campo é aportada pela filosofia da tecnologia. A partir da indagação sobre a tecnologia na sociedade moderna, Andrew Feenberg constata que as concepções modernas sobre a tecnologia estão orientadas por quatro perspectivas distintas52: a determinista, a instrumentalista, a substantivista e a perspectiva da teoria crítica, corrente à qual ele se filia (FEENBERG, 2010a, p.57-63).

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Na América Latina esse campo passou a reunir pesquisadores como Oscar Varsavsky e Amilcar Herrera, que relacionavam essa discussão ao modelo de desenvolvimento a partir da perspectiva crítica da Teoria da Dependência. Esses pesquisadores questionaram a ideia de que o desenvolvimento tecnológico seguiria um caminho linear e inexorável, que estaria presente em projetos políticos defendidos por setores de direita e de esquerda. A adesão de setores críticos a esse pressuposto é explicada pela necessidade da evolução das forças produtivas enunciada pela teoria marxista. Dela decorre a ideia de aliança da classe trabalhadora com a burguesia nacional nos países então considerados economicamente periféricos (DAGNINO, 2008). É no bojo dessas discussões que intelectuais latino-americanos se dedicam a analisar a Política Científica e Tecnológica e a pautar a necessidade de um desenvolvimento endógeno, que “radicalizasse o componente democrático- popular do nacional-desenvolvimentismo” (HERRERA, 1971 apud DAGNINO, 2010a, p.30).

52Para uma revisão das quatro perspectivas e relação da perspectiva de Feenberg com a teoria crítica da Escola

Tabela 4 - Tecnologia: quatro perspectivas QUATRO PERSPECTIVAS A TECNOLOGIA É Eixo (A) AUTÔNOMA Eixo (B) HUMANAMENTE CONTROLADA Neutra (1) Determinismo Por exemplo: a teoria da

modernização

(2)

Instrumentalismo Fé liberal no progresso

Carregada de Valores Meios formam um modo de vida que inclui fins

(3) Substantivismo Meios e fins ligados em

sistemas

(4) Teoria Crítica Escolha de sistemas de meios-fins alternativos

Fonte: Feenberg (2010a, p.57)

A suposição da neutralidade manifesta pelas perspectivas determinista e instrumentalista está presente na maioria das concepções correntes de tecnologia. Para o instrumentalismo (2), a tecnologia é entendida como uma ferramenta para realizar necessidades, e é o uso humano que determinará uma intenção, sendo neutra e humanamente controlada. Aqueles que adotam essa concepção possuem uma “fé liberal no progresso”. Para o determinismo (1), o desenvolvimento da tecnologia é isento de valores e segue um caminho único, necessariamente evolutivo, daí o seu caráter autônomo. Ela não é humanamente controlada, mas controla os humanos e molda a sociedade. Essa visão está amplamente difundida nas ciências sociais a partir da leitura de Marx, “segundo a qual a força motriz da história é o avanço tecnológico” (FEENBERG, 2010a, p. 58).

A perspectiva substantivista (3), por sua vez, também possui uma compreensão linear do desenvolvimento da tecnologia, mas não considera que ela seja neutra. Em oposição,

compreende que, por estar contaminada por valores como eficiência e poder, ela resultaria numa ameaça53 à humanidade.

A partir desse quadro de análise, que aqui foi apenas rapidamente sinalizado, a teoria crítica da tecnologia é construída refutando a ideia da neutralidade da tecnologia (noção fundante do instrumentalismo e do determinismo), bem como de seu desenvolvimento autônomo (noção fundante do substantivismo e do determinismo). Dessa forma, essa teoria sustenta as seguintes afirmações: tecnologia e sociedade não são duas esferas independentes, mas mutuamente definidas. A tecnologia não é neutra, mas carregada de valores. A sua trajetória de desenvolvimento não é pré-determinada, mas resultante de escolhas.

O que distingue a concepção de Feenberg da maior parte das análises que compõem esse campo é a sua ênfase no projeto político que orienta a racionalidade do desenvolvimento tecnológico. Para ele, as escolhas estão atravessadas por relações de poder oriundas do contexto no qual são produzidas. Por isso, o autor considera que a tecnologia capitalista seja de tipo particular, e “não uma dimensão universal da modernidade como tal” (FEENBERG, 2010b, p.72). Ela é atravessada pela hierarquia social, “uma dimensão contingente do progresso técnico e não uma necessidade técnica” (p.71). A tecnologia produzida condensa as relações sociais existentes (entre elas as de classe, raça e gênero) e contribui para reproduzi-las – isso, porém, não é a essência do fenômeno técnico (como entende a perspectiva substantivista), mas resultado do contexto no qual este foi produzido.

Dessa forma, não é possível restringir a compreensão da tecnologia ao que é convencionalmente produzido na sociedade capitalista54. “A tecnologia, em qualquer sociedade, é um elaborado complexo de atividades relacionadas que se cristalizam em torno da fabricação e uso de ferramentas” (FEENBERG, 2010b, p.90). Em síntese, a tecnologia incorpora os interesses e valores presentes na sociedade, porém suas possibilidades de concepção e construção não se restringem a uma tendência predominante, mas são ilimitadas.

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“Na imaginação mais extrema do substantivismo, a tecnologia pode, por exemplo, tomar a humanidade e converter os seres humanos em meros dentes de engrenagem de maquinaria, como descreve Huxley, em seu famoso romance, o Admirável mundo novo” (FEENBERG, 2010a, p. 61).

54 Em oposição à tecnologia capitalista, Dagnino propõe pensar a possibilidade de uma tecnologia que

incorpore o princípio da autogestão e da propriedade coletiva e que contribua para a conformação de uma sociedade mais justa. Essa tecnologia “seria o resultado da ação de um coletivo de produtores sobre um processo de trabalho que, em função de um contexto socioeconômico (que engendra a propriedade coletiva dos meios de produção) e de um acordo social (que legitima o associativismo), os quais ensejam, no ambiente produtivo, um controle (autogestionário) e uma cooperação (de um tipo voluntário e participativo), que permite uma modificação no produto gerado passível de ser apropriada segundo a decisão do coletivo” (DAGNINO, 2010b, p. 210).

O enfoque da multideterminação do fenômeno técnico, à medida que admite a existência de inúmeras possibilidades de escolha, permite desvelar a ação técnica enquanto um “exercício de poder” (FEENBERG, 2010c, p.100).

Nessa direção, Feenberg retoma a reflexão de Braverman (1981) sobre as mudanças implantadas pelo capitalismo no processo de trabalho e na tecnologia, que possibilitam verificar como as máquinas materializam os objetivos da desqualificação da força de trabalho e a introdução do controle gerencial sobre o processo produtivo. “O desenho das máquinas é, assim, socialmente relativo (...) e a racionalidade tecnológica que ela incorpora não é universal, mas particular ao capitalismo” (FEENBERG, 2010b, p.80).

Uma das preocupações do autor se assenta sobre como a tecnologia poderia contribuir para democratizar as relações no mundo do trabalho. Crítico do modelo soviético, Feenberg argumenta que a racionalidade capitalista foi transferida para aquele regime por meio da técnica. A implantação de um modelo industrial exógeno contribuiu para a destruição das experiências de organização horizontal dos trabalhadores.

Seguindo essa pista, Dagnino (2010b) explicita que a tecnologia convencional (ou capitalista) produz um tipo de controle específico do processo de trabalho. O autor lembra que qualquer trabalho coletivo necessita de algum tipo de controle, que pode ser resultado de um acordo democrático explícito ou de um acordo implícito. A tecnologia capitalista é portadora de um tipo de controle hierárquico implícito. As máquinas e processos organizacionais transmutam a relação coercitiva entre aqueles que controlam e aqueles que executam o trabalho para uma configuração técnica, menos desgastante e mais facilmente aceita pelo coletivo de trabalhadores.

Diferentemente do que aponta a teoria substantiva da tecnologia, a expansão desse tipo de controle não é unilateral, mas permeada por nuances e resistências por parte dos trabalhadores e da sociedade, que incide permanentemente na construção social da tecnologia. Sobre essa questão, Thompson (2002) oferece uma descrição densa do movimento ludista na qual contesta a historiografia oficial. Conforme esse historiador sempre enfatiza, as lutas e resistências precisam ser analisadas dentro de seu período histórico e segundo os anseios ali manifestos, e não conforme expectativas posteriores. Em vez de tomar o ludismo como movimento ingênuo e espontâneo que se opunha a um tipo de progresso inevitável, descreve a complexidade dessa organização clandestina de trabalhadores e a precisão das ações que executavam. Havia uma criteriosa seleção das máquinas que seriam destruídas. Os alvos eram apenas aquelas que afrontavam diretamente o ofício qualificado, até então protegido por legislação específica. Para esse historiador, “deve-se ver o aparecimento do

luddismo em seu ponto crítico na anulação da legislação paternalista e na imposição de economia política do laissez-faire sobre os trabalhadores, contra sua vontade e consciência” (THOMPSON, 2002, p.114).

Enquanto as classes industriais se esforçavam para revogar as leis que regulamentavam os ofícios, bem como o sistema de aprendizagem entre mestres e aprendizes, os trabalhadores respondiam com a destruição de máquinas. Essa reação pode ser vista como atitude de resistência consciente contra a liberdade capitalista de destruir os costumes de ofício.

Dessa forma, a resistência dos ludistas pode ser compreendida como uma das primeiras lutas contra a desabilitação do trabalho, que viria a ser uma escolha feita sistematicamente no curso do desenvolvimento da tecnologia industrial. Conforme Feenberg, essa opção sempre prevaleceu em relação à preservação ou potencialização das habilidades tradicionais dos trabalhadores. Em síntese, “foi o sucesso da desqualificação que afinal fez dos trabalhadores objetos da técnica” (FEENBERG, 2010d, p.230), condição necessária para a introdução da gerência capitalista.

Braverman (1981) sintetiza as consequências dessa introdução para o conhecimento e experiência acumulada dos trabalhadores:

O modo capitalista de produção destrói sistematicamente todas as perícias à sua volta, e dá nascimento a qualificações e ocupações que correspondem às suas necessidades. (...) A distribuição generalizada do conhecimento do processo produtivo entre todos os participantes torna-se, desse ponto em diante, não meramente “desnecessária”, mas uma barreira concreta ao funcionamento do modo capitalista de produção”. (BRAVERMAN, 1981, p.79)

Isso não nos impede de afirmar que a resistência dos trabalhadores, ainda que seja sistematicamente suplantada, participa da conformação do capitalismo industrial. A análise de Thompson informa que, ao mesmo tempo em que o movimento ludista resistia à mudança, também propunha pautas para regular o sistema econômico emergente, como a imposição de um salário mínimo legal e o direito ao livre associativismo sindical. Essas reivindicações “traziam em si uma imagem vaga de uma comunidade não tanto paternalista, mas sim democrática, onde o crescimento industrial seria regulado segundo prioridades éticas e a busca do lucro se subordinaria às necessidades humanas” (THOMPSON, 2002, p.123).

Feenberg analisa outro exemplo histórico que atesta a incidência social sobre a trajetória da tecnologia industrial: os conflitos em torno da introdução da lei que proíbe o trabalho infantil. Tal inciativa foi fortemente combatida pelos industriais ingleses que argumentavam que a medida poderia levar ao colapso do sistema fabril. Após aprovada a

legislação restritiva, no entanto, o processo produtivo e as máquinas foram adaptadas às condições dos novos operadores. As crianças liberadas do trabalho tornaram-se aprendizes para ser posteriormente devolvidas a esse processo com maior destreza e disciplina, o que, por sua vez, forneceu à indústria novas condições de desenvolvimento (FEENBERG, 2010b, p.75).

No contexto atual, as reivindicações oriundas do movimento ambientalista demonstram com nitidez a dinâmica de construção social da tecnologia. Esse movimento resiste, por exemplo, à instalação de usinas nucleares e de usinas de incineração e sugere a internalização de custos não contabilizados, entre eles os danos à natureza causados por tais tecnologias. Contudo, a crítica ambientalista da tecnologia geralmente está restrita aos efeitos técnicos quantificáveis, perdendo de vista “as múltiplas relações sociotécnicas e ambientais presentes nos sistemas produtivos modernos e as diversas trajetórias tecnológicas possíveis” (ANDRADE, 2006, p.182).

O imaginário da tecnologia como processo de desenvolvimento autônomo, neutro e afastado das questões sociais, embora não se sustente teoricamente, está amplamente difundido na sociedade e na academia (DAGNINO, 2008). Essa visão sobre a tecnologia contribui para manter oculto e concentrado o poder sobre o sistema técnico. Isso tem como consequência prática a delegação (não deliberada) das decisões mais importantes sobre o futuro das cidades e sobre a vida das pessoas para um grupo restrito e não representativo (FEENBERG, 2010b). O desenvolvimento da tecnologia fica assim limitado por esse interesse restrito, que tem a empresa privada como ator prioritário (DAGNINO, 2010a), enquanto a incidência dos trabalhadores, ambientalistas e de outros setores sociais que participam da dinâmica de concretização de tecnologias pode continuar a ser considerada pela racionalidade predominante como um efeito colateral, reativo, ou ainda de resistência ao progresso. Dessa forma, a tecnocracia, ao

sujeitar seres humanos ao controle técnico à custa de modelos tradicionais de vida, na medida em que impede a sua participação no design das tecnologias, perpetua as estruturas de poder das elites herdadas do passado de forma tecnicamente racional. Nesse processo, mutilam-se seres humanos, a natureza e a própria tecnologia. Uma diferente estrutura de poder criaria uma tecnologia diferente, com consequências diferentes (FEENBERG, 2010c, p.106).

Para Feenberg, essa posição teórica implica uma postura política que reivindica a extensão da democracia para a tecnologia. Como forma de explicitar sua posição, o autor realiza uma comparação com a crença no poder autônomo do mercado:

Há um século acreditava-se que a economia não poderia ser democraticamente controlada, que era um poder autônomo e que operava de acordo com leis inflexíveis. Hoje assumimos o contrário – que se pode influenciar a direção do desenvolvimento econômico de nossas instituições democráticas. A teoria crítica da tecnologia sustenta que chegou o momento de estender a democracia também à tecnologia. (FEENBERG, 2010a, p. 61-62)

O autor defende um modo alternativo (e subversivo) de racionalizar a sociedade que conduziria à intensificação da democracia em vez de ao aumento das formas centralizadas de controle. Dessa forma, caso a tecnologia fosse compreendida como socialmente construída, ela poderia ser representativa da diversidade social existente, e os valores historicamente negligenciados poderiam ser privilegiados em novos arranjos. A partir dessa concepção, indígenas, pescadores, quilombolas, catadores, quebradeiras de coco, agricultores e comunidades ribeirinhas, entre outros setores sociais, em vez de considerados grupos reativos ou obstáculos ao desenvolvimento, poderiam participar do processo de concepção, implementação e avaliação das tecnologias.

É essa abordagem que nos possibilita ver a experiência dos catadores como participante das definições tecnológicas sobre os resíduos sólidos, seja como capacidade de resistência e questionamento, seja como força potencial para propor arranjos mais condizentes com a necessidade de preservação ambiental e de justiça social. Desse ponto de vista os catadores podem ser entendidos como um grupo social relevante que, à medida que se organiza e participa dos espaços públicos de decisão da política de resíduos sólidos, possui potencial para incidir nos rumos de sua implementação e desenvolvimento, que são mediados pelos processos técnicos.

Tal processo de participação pode contribuir para descortinar o projeto e os objetivos que orientam as tecnologias de manejo de resíduos sólidos existentes e para evidenciar suas consequências ambientais e sociais. Tornar nítidas as escolhas que levaram à situação atual é etapa importante para projetar um horizonte em que as escolhas técnicas possam ser mais democráticas, uma vez que:

A efetividade legitimadora da tecnologia depende da inconsciência do horizonte político-cultural na qual ela foi concebida. A crítica recontextualizadora da tecnologia pode descobrir aquele horizonte, desmistificar a ilusão de necessidade técnica e expor a relatividade das escolhas técnicas predominantes. (FEENBERG, 2010b, p.82)

Essa reflexão orienta a análise sobre a trajetória do serviço de limpeza urbana, que apresentamos em seguida. Nela procuramos sinalizar alguns interesses e valores definidores desse serviço público, apontando experiências de resistência dos trabalhadores no curso de

seu desenvolvimento, para então analisar as potencialidades da participação de cooperativas de catadores.