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Capítulo 1 A indústria da reciclagem e o trabalho dos catadores

1.1. Introdução e ampliação da reciclagem

Internacionalmente, a justificativa para a adoção da reciclagem começou a ser produzida na década de 1960, diante da insegurança geopolítica produzida pelas guerras por

recursos naturais como o petróleo. Ela é uma das alternativas gestadas num contexto em que diversas correntes teóricas9 apontavam o esgotamento do modelo econômico vigente. O diagnóstico comum às diferentes formulações é o limite das jazidas naturais para o suprimento mundial continuado do parque industrial então existente, situação agravada com a perspectiva de sua ampliação naqueles países à época chamados de “em desenvolvimento”. A principal divergência era sobre quais nações deveriam abrir mão de sua taxa de crescimento em nome da sustentabilidade global.

Tais embates deram origem ao pacto pelo desenvolvimento sustentável promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU) a partir de 198710. Após esse marco, seguiu-se uma série de conferências mundiais que buscavam introduzir a questão ambiental no debate do desenvolvimento. A reciclagem é assim uma das soluções encontradas diante da insustentabilidade de um modelo industrial alimentado pela exploração de recursos naturais.

A partir de uma perspectiva radical, a reciclagem demandaria transformações em todo o processo industrial, que gera resíduos em todas as suas fases. Os resíduos sólidos urbanos representam a menor fração do montante de lixo gerado, mas, ao mesmo tempo, são a parcela mais visível à sociedade, na medida em que é a que ganha volume e gera transtornos nos centros urbanos. Para elucidar a conexão dessa parcela de resíduos com a lógica industrial que não incorpora o descarte como parte do processo, Connet (2013) utiliza a imagem do iceberg, em que os resíduos urbanos seriam sua ponta. Conforme esse autor, a ideia da reciclagem deverá reconfigurar os ciclos produtivos de modo que aquilo que não possa ser reaproveitado, reciclado ou compostado deixe de ser produzido pelas indústrias. Na perspectiva de um ciclo produtivo fechado, os diferentes resíduos gerados revelariam os erros de projeto (CONNET, 2013).

Essa concepção fundamenta a atuação de uma rede internacional de ambientalistas pelo lixo zero, ou zero waste, que difunde soluções que obedeçam à hierarquia de gestão dos resíduos defendida mundialmente e popularizada pelo slogan dos 3R: reduzir, reutilizar, reciclar. Ao mesmo tempo, combate falsas soluções para a questão do lixo, como a incineração11.Nessa rede, a reciclagem está inserida num projeto mais amplo, que objetiva a

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Fazem parte desse embate de ideias o estudo “Limites do Crescimento”, apresentado por Meadows em 1972, o posicionamento crítico do Clube de Bariloche (BRÜSEKE, 1995) e a teoria do Ecodesenvolvimento, de Maurice Strong (SACHS, 1986), entre outros.

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Ano em que é lançado o Relatório de Brundtland, primeiro documento a definir desenvolvimento sustentável.

11 Por incineração compreendemos todos os tipos de tratamento térmico dos resíduos sólidos, ou seja, todas as

minimização do lixo produzido. Ela representa a terceira alternativa, após esgotadas as possibilidades de redução e reutilização. Essa perspectiva entra em conflito com algumas estratégias empresariais, que realizam a reciclagem sem obedecer a esses critérios – ou seja, que se utilizam dessa estratégia para promover seus produtos, mas sem de fato contribuir para a diminuição do resíduo12.

Os estudos que fundamentam a adoção da reciclagem como estratégia exclusivamente mercantil geralmente não abrangem o conjunto de fatores envolvidos, mas medem os potenciais ganhos apenas a partir de seu setor industrial (CALDERONI, 2003). Usualmente consideram três variáveis para determinar sua viabilidade: 1) o uso de matéria- prima virgem; 2) o balanço energético; 3) o impacto ambiental (GANDY, 1994, p. 15). Nessa ótica, o uso de insumos provenientes da reciclagem é viável nas diferentes cadeias produtivas quando significa redução da matéria-prima virgem e da energia investida, combinadas com a redução do impacto ambiental.

Dessa forma a reciclagem é sustentada por balanços pontuais que não consideram a complexidade das dimensões envolvidas, enquanto a prática de fato “exigiria um balanço global de custos diretos, indiretos e externalidades sociais e ambientais ao longo das cadeias produtivas e das tecnologias comparadas” (LIMA et al, 2011, p.141).

Gandy (1994) chama a atenção para os interesses que orientam a produção dos diferentes estudos:

A questão chave em relação às várias formas de uso do ciclo de vida e da análise do balanço ecológico é a seleção e omissão de fatos particulares, bem como os métodos de cálculo adotados, que inevitavelmente vão fazer o resultado refletir presunções assumidas anteriormente. As diferentes partes da indústria de embalagem [...] estão comissionando estudos para promover o seu próprio produto ou tecnologia específica como ambientalmente e economicamente superior aos de seus concorrentes. (GANDY, 1994, p.16, tradução própria)

Entre os elementos que explicam a expansão da indústria da reciclagem no Brasil estão: 1) a existência de um grande contingente de trabalhadores desprotegidos e desprovidos dos direitos sociais mais básicos, disponíveis para trabalhar por baixas e oscilantes remunerações; 2) o aumento do consumo e consequentemente do resíduo reciclável

como pirólise, gaseificação, combustível derivado de resíduo (CDR), que são apenas diferentes formas de combustão.

12 Um dos exemplos é a substituição de embalagens de vidro por embalagens de plástico. A primeira é

retornável e totalmente reciclável, enquanto a segunda é apenas reciclável e perde qualidade a cada vez que precisa ser novamente processada, virando invariavelmente lixo quando esgotadas as possibilidades de seu ciclo de reciclagem. Dessa forma, a tendência de substituição de vidro por plástico contribui para o aumento do lixo, e não para sua diminuição, ainda que o plástico seja reciclável.

descartado nas áreas urbanas; 3) as políticas construídas a partir da noção de desenvolvimento sustentável, que incorporam a preservação ambiental no que diz respeito ao encaminhamento correto do lixo (com o fim dos lixões) e a reciclagem como estratégia para minimizar a extração de matéria-prima virgem (CALDERONI, 2003; DEMAJOROVIC, 2013).

A tabela abaixo sintetiza a evolução dos índices de reciclagem no país a partir dos diferentes materiais que foram reencaminhados para o ciclo produtivo:

Tabela 3 - Índices brasileiros de reciclagem (1996 – 2012) 1996 (%) 2000 (%) 2004 (%) 2008 (%) 2012 (%) Plásticos 15 15 17,2 21,2 20,9 Pet 21 26,3 47 54,8 58,9 Latas de alumínio 61,3 78,2 95,7 91,5 97,9 Latas de aço 32 40 45 46,5 47 Vidro 37 41 45 47 47 Longa vida 15 22 26,6 29 Papel 37,1 38,3 45,8 43,7 29,8 Papelão 60 72 79 79,6 73,3

Fonte: Figueiredo, 2012; Rutkowski et al, 2014; Demajorovic, 2013; Fichas técnicas Cempre, 2015

Conforme os dados fornecidos pelas associações dos diferentes setores industriais, do total de embalagens produzidas de diferentes materiais, as porcentagens indicadas retornaram para o ciclo produtivo. Até o ano de 2004 observa-se a evolução do índice em todos os tipos de materiais, sendo mais expressiva para papel, garrafas PET e embalagens longa vida. O papelão e as latas de alumínio apresentavam índices elevados de reciclagem já em 1996. O papel é o único material que apresenta queda expressiva de 2008 para 2012.

Esses índices colocam o Brasil em boa posição no ranking mundial13 de reciclagem, sendo o primeiro na reciclagem de latas de alumínio e o segundo na reciclagem de PET em 2008 (DEMAJOROVIC, 2013, p.54).

Os países com os quais o Brasil divide as melhores posições nessa lista (Estados Unidos, Japão, Argentina e países europeus), em geral, instituíram suas políticas de resíduos sólidos – as quais estimulavam a reciclagem – nas décadas de 1970 e 1980 (GANDY, 1994).

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Reciclagem de Alumínio: Brasil (91,5%); Argentina (90,8%), Japão (87,3%), Estados Unidos (54,2%); Reciclagem do PET: Japão (69,2%), Brasil (54%), Europa (46%), Argentina (34%) e Estados Unidos (27%). (DEMAJOROVIC, 2013, p.54)

Brasil e Argentina aparecem entre os mais bem colocados sem que, até os anos recentes14, tivessem política pública estruturada para o setor.

Essa constatação torna ainda mais forte a tese da disponibilidade de um contingente populacional desempregado e pobre como principal fator de alavancagem dos índices de reciclagem.

Nessa direção, Bosi (2008, p.104) afirma que a reciclagem só se tornou possível em grande escala no Brasil quando o recolhimento e a separação dos resíduos se mostraram uma tarefa viável e de baixo custo – ou seja, quando se tornou realizável “por trabalhadores cuja remuneração compensasse investimentos de tecnologia para o surgimento do setor de produção de material reciclado”. Para o autor, a expansão histórica desse setor guarda relação estreita com a ampliação da população de catadores, “tornando-se possível e viável como negócio lucrativo somente quando encontrou numeroso contingente de trabalhadores, desocupados ou semi-ocupados, convertível em catadores” (BOSI, 2008, p.105).