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O repertório de ação coletiva mobilizado pelo Movimento de Catadores

Capítulo 3 Movimento dos catadores no Rio Grande do Sul: entre o diálogo

3.1. O repertório de ação coletiva mobilizado pelo Movimento de Catadores

As barricadas e passeatas, a coleta de assinaturas, a conformação de associações e de grupos de apoio e a ocupação são formas de mobilização utilizadas em diversas lutas ao longo da história e constituem, conforme Tilly, o repertório da ação coletiva:

A palavra repertório identifica um conjunto limitado de rotinas que são aprendidas, compartilhadas e postas em ação por meio de um processo relativamente deliberado de escolha. Repertórios são criações culturais aprendidas, mas eles não descendem de filosofia abstrata ou tomam forma como resultado da propaganda política; eles emergem da luta (TILLY, 1995, p 26, apud ALONSO, 2012, p.26).

A leitura de Tilly sobre a ação coletiva identifica permanências e mudanças do protesto produzidas pelas experiências de luta. Ao mesmo tempo em que afirma que as diferentes maneiras de manifestação são forjadas pelo processo de luta, o autor observa que em cada período os manifestantes possuem acesso a um número limitado de formas de protesto. Por isso, enfatiza que o repertório de ação coletiva não pertence aos movimentos

sociais, mas “são uma expressão da interação histórica e atual entre eles e seus opositores” (McADAM, TARROW, TILLY, 2009).

Em sua obra, cuja pesquisa empírica abrange o período de 1758 a 1834 na Inglaterra, Tilly identifica a consolidação dos Estados nacionais como elemento-chave para a mudança dos repertórios de ação coletiva. Dessa forma, prevalecia até o século XVIII um repertório paroquial, de caráter comunitário e local, composto por ações diretas como a invasão de terras, a destruição de estoque e a perturbação em mercados contra a alta dos preços dos alimentos, entre outras ações também analisadas pelo historiador inglês Thompson (2011). No século XIX, após a consolidação dos Estados nacionais, Tilly identifica a emergência de um novo repertório, que contempla a organização de associações, de manifestações públicas, greves e outras ações de caráter modular, ou seja, replicáveis em várias localidades. Enquanto as primeiras formas de protesto eram diretamente direcionadas a um oponente local e visavam a solução imediata do conflito, o repertório modular era adequado à produção das mediações necessárias para pressionar as novas autoridades instituídas e fornecia as formas para uma mobilização sustentada. Dessa forma, o autor articula mudança estrutural e cultural (ALONSO, 2012; TARROW, 2009).

Embora a preocupação central de Tilly tenha sido analisar a relação da ação coletiva com transformações sociais amplas, suas categorias também passaram a ser usadas para analisar movimentos específicos. Utilizaremos a noção de repertório para entender a forma como o movimento de catadores age e para identificar as mudanças em suas formas de luta. Enquanto as noções de experiência (THOMPSON, 1981) e de identidade coletiva (MELUCCI, 1996) contribuíram para explicar a emergência do MNCR, discussão realizada no capítulo 1, a noção de repertório da ação coletiva permitirá lançar luz sobre a sua ação.

A escolha do repertório é orientada pelo impacto que produz e pelas formas disponíveis e consideradas legítimas em cada contexto. Não se trata da repetição mecânica de formas de protesto, que fariam a mobilização perder sua eficácia, mas de um exercício em que a experiência acumulada é criativamente acionada conforme a exigência de cada circunstância. Nesse processo podem ser ativados repertórios conhecidos, bem como ocorrer inovação. Um dos critérios que orientam a escolha é a necessidade de surpreender os adversários e de trazer problemas à ordem pública, forçando os opositores a atender as reivindicações (McADAM, TARROW, TILLY, 2009).

Dessa forma, toda escolha de repertório dialoga com o contexto vivido pelo movimento. Conforme enuncia o fragmento de entrevista que abre este capítulo, a existência de leis que reconhecem as cooperativas e associações de catadores repercutiu sobre a forma

como o movimento de catadores age. Enquanto incialmente seu repertório consistia em ações diretas, após o reconhecimento da categoria, via políticas públicas, a participação em conferências, audiências e seminários passou a integrá-lo.

Sob esse viés, essa análise se aproxima da ideia de “repertório de interação” proposta por Abers, Serafim e Tatagiba (2014) para compreender a relação entre movimentos sociais e Estado83. As autoras argumentam que essa relação vem sendo lida somente a partir da chave do conflito, o que obscurece a construção compartilhada aberta pelo conjunto de políticas públicas pós-Constituição de 1988, que incorporaram mecanismos de participação da sociedade civil (DAGNINO, 2004). A partir da ideia de que, além do tensionamento, ocorrem práticas de colaboração entre Estado e movimentos, as pesquisadoras identificaram cinco rotinas presentes no caso brasileiro, que comporiam o “repertório de interação”. Dessas, selecionamos quatro84 cujas práticas identificamos no caso analisado.

O primeiro repertório é constituído pelas “rotinas de protesto” como as marchas, as vigílias, a barricada e a ocupação. Elas desafiam e constrangem os opositores e tornam públicos o conflito e as reivindicações. Conforme será demonstrado ao longo do capítulo, as ações diretas caracterizam fortemente o período anterior ao reconhecimento dos catadores pelas políticas públicas.

Além das ações diretas, o movimento também age institucionalmente. Na esfera legislativa, uma rotina mobilizada pelo movimento de catadores consiste no que as autoras denominaram de “lobbies no parlamento”, que compreenderia a influência do movimento sobre o poder legislativo via iniciativa popular, ou por intermédio de algum deputado ou bancada aliada, com vistas à aprovação ou à modificação de alguma lei (ABERS, SERAFIM, TATAGIBA, 2014). Nesse âmbito é possível destacar a influência que o MNCR exerceu durante a tramitação do projeto de lei federal que deu origem à Política Nacional dos Resíduos Sólidos, bem como sua incidência na fase de regulamentação da lei (MNCR, 2012a). Em nível estadual, destacaremos sua participação no processo de construção do projeto de lei que institui a Política Estadual de Resíduos Sólidos, para o qual a expectativa do movimento era de proibição da incineração.

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É outro campo de estudos que enfoca essa interação: o da participação. Esse campo, por sua vez, realiza um recorte que limita a análise aos espaços institucionais convocados pelo poder público para a participação da sociedade civil (conferências, conselhos, esferas públicas não estatais). A proposição da noção de “repertórios de interação” surge diante da necessidade de combinar os dois olhares, o da participação e o da ação coletiva (ABERS, SERAFIM, TATAGIBA, 2014).

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As cinco rotinas propostas pelas autoras incluem também a ocupação de cargos por militantes dos movimentos sociais. Nesta pesquisa não encontramos nenhuma liderança catadora nessa circunstância, razão pela qual esse repertório de interação não foi mencionado.

Outro repertório de interação observável no caso em análise são as rotinas de participação institucional, que passaram a ser incorporadas pelo movimento à medida que cooperativas e associações de catadores começaram a figurar nas políticas públicas de meio ambiente. Elas caracterizam-se pela participação desses grupos em espaços designados pelo Estado para consulta ou deliberação sobre essas políticas públicas (conselhos, conferências, audiências públicas etc.). Conforme ressaltam as autoras, esses espaços estão amparados por ordenamento jurídico e os critérios e o alcance da participação estão previamente definidos. Dessa forma, o protagonismo costuma ser dos agentes estatais, que, além do poder de determinação do formato do espaço, possuem maiores recursos para dele participar. No entanto, para a efetividade dessas instâncias, frequentemente são ativadas redes preexistentes, e nesse processo de mobilização os movimentos sociais são atores-chave (ABERS, SERAFIM, TATAGIBA, 2014). No caso aqui analisado, esses espaços consistem nas conferências do Meio Ambiente, conferências de Economia Solidária e audiências públicas convocadas para a discussão dos resíduos sólidos.

O quarto repertório de interação consiste na política de proximidade. Ela ocorre por meio da existência de um canal de interlocução direto entre Estado e movimento, num contexto de compartilhamento de projetos e representando, assim, a possibilidade de mediação permanente das pautas dos movimentos. Em nível federal, a interlocução com o MNCR ocorre por meio do Comitê Interministerial de Inclusão Social de Catadores de Materiais Recicláveis (CIISC), diretamente submetido à Secretariade Governo da Presidência (que em outubro de 2015 fundiu órgãos como a antiga Secretaria-Geral, com a qual o CIISC até então se relacionava) e articula as diferentes instituições federais que desenvolvem programas direcionados às cooperativas, associações e redes de catadores. Essa instância representa a continuidade do diálogo que a Presidência da República promove todos os anos, na época do Natal, num evento do movimento de catadores. Essa prática, iniciada pelo presidente Lula em 2003 e mantida pela presidenta Dilma, recebeu o nome de “Natal com os catadores”. Em nível estadual, durante o período analisado, a interlocução direta do movimento vem ocorrendo por meio da Secretaria da Economia Solidária e Apoio à Micro e Pequena Empresa (SESAMPE).

O emprego da noção de repertório de interação na análise das práticas do Movimento de Catadores no Rio Grande do Sul permitirá mostrar como a rotina de participação é incorporada pelo movimento, além de identificar como este se utiliza de estratégias que articulam diálogo institucional e ação direta para impactar o processo de negociação política, ampliando assim seu repertório de ação coletiva.