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Capítulo 1 A indústria da reciclagem e o trabalho dos catadores

1.5. Regulação do trabalho do catador

1.5.2. Iniciativas indicadoras do fortalecimento da regulação via mercado

1.5.2.1. A regulação da logística reversa

É esse tipo de relação flexível e empreendedora construída com os catadores que as empresas pretendem regulamentar por meio da logística reversa, que se encontra em fase de implementação.

A logística reversa obriga fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes a implantar sistemas que garantam o retorno das embalagens e produtos após o uso pelo consumidor. Dessa forma, responsabiliza o setor empresarial por todo o ciclo de vida do produto, incluindo o seu resíduo. No Brasil já existem sistemas consolidados de logística reversa para os pneus e embalagens de produtos tóxicos, que apresenta altas taxas de retorno dos materiais, evitando sua destinação para aterros (DEMAJORVIC, 2013 p. 89).

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A PNRS45 estendeu a responsabilização dos fabricantes para as embalagens presentes nos resíduos sólidos urbanos (papel, plástico, alumínio, vidro etc.). No entanto, o decreto regulamentador da política não determina como o mecanismo deve ser implantado, indicando que as definições sejam tomadas por meio de acordos setoriais. Estes, por sua vez, devem ser propostos pelo setor empresarial, submetidos a consulta pública e sancionados pelo governo. Na avaliação de Alexandro Cardoso:

A linha da logística reversa ela é, como eu posso dizer, ela é perversa, porque ela coloca o produtor de resíduos pra dizer como que ele vai fazer pra organizar o sistema, e ele coloca os valores que ele quer pagar, ele coloca os prazos, coloca as formas... (Alexandro Cardoso, catador de Porto Alegre, liderança do MNCR.)

O acordo setorial das embalagens em geral tramitou por três anos, até ser assinado em novembro de 2015 (BRASIL, 2015c). Analisaremos em seguida o acordo resultante de proposta apresentada pelo setor empresarial, pois revela o tipo de relação que as indústrias de embalagens procuram manter com a base de sua cadeia produtiva.

O acordo foi elaborado por uma coalizão composta por vinte associações de empresas reunidas como proponentes, entre as quais as representativas das indústrias dos principais setores de embalagens (alumínio, papel e plástico), além daquelas representativas da indústria de alimentos, supermercados, bebidas, cosméticos e produtos de limpeza. Também é apresentada uma lista de organizações anuentes à proposta, entre as quais a associação nacional representativa dos catadores. Para coordenar os trabalhos e intermediar as negociações com o Ministério do Meio Ambiente, a instituição escolhida foi o CEMPRE (ACORDO..., 2015, p. 21). Trata-se, portanto, de uma coalizão ampla e representativa das empresas que ocupam o topo da cadeia produtiva da reciclagem, bem como de importantes setores do comércio. Chama a atenção também o apoio formal da categoria dos catadores.

Conforme a proposta apresentada, a instituição do sistema de logística reversa de embalagens deverá ocorrer a partir de dois canais principais de recebimento: 1) Pontos de Entrega Voluntária (PEV) instalados no comércio; 2) cooperativas e associações de catadores e unidades de triagem. Sua implantação deverá ocorrer em duas fases: a primeira deverá abranger as cidades-sede da Copa do Mundo de 201446 bem como algumas cidades que compõem a região metropolitana dessas capitais; a segunda consistirá em sua ampliação para outros municípios selecionados a critério das empresas.

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No capítulo seguinte apresentaremos uma análise detalhada dessa política. Nesse momento nos limitaremos a discutir o instrumento da logística reversa, que diz respeito ao setor empresarial.

46 Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Natal, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro,

A escolha de iniciar um sistema nacional de logística reversa pelas cidades-sedes da Copa tem relação com a experiência de gestão dos resíduos sólidos produzidos durante o evento, realizada por meio de uma parceria entre a Coca-Cola Brasil, o MNCR e a Federação Internacional de Futebol (FIFA) (MNCR, 2014b). Desde então, cooperativas filiadas ao movimento e ao setor empresarial atuam em parceria na execução de um projeto nacional, que possivelmente produziu a experiência e o conhecimento necessários para o intento de formalização de um acordo abrangente entre o topo e a base da cadeia produtiva, no marco de uma política pública federal.

O plano de ações que acompanha o acordo apresenta a quantidade de cooperativas de catadores existentes nas doze cidades-sede e propõe como meta a triplicação de sua capacidade produtiva, seja por meio do aumento do número de cooperativas ou do aumento de sua eficiência. Propõe também triplicar o número de PEVs existentes em cada uma dessas cidades, nas quais o material deverá ser encaminhado para cooperativas ou para o comércio atacadista de recicláveis (PLANO..., 2015, p.12). O resultado será medido pelo aumento do volume de material reciclável triado por essas organizações. O responsável por fornecer esse dado, no entanto, é a indústria da reciclagem, que deverá reportar anualmente o volume reciclado. Além disso, a coalizão deverá implantar, no prazo de 36 meses, um instrumento de monitoramento que deverá informar o volume e o peso de embalagens que cada uma das empresas coloca anualmente no mercado e a proporção recuperada pelo sistema de logística reversa (ACORDO..., 2015, p.10).

Para aumentar o volume de insumo de recicláveis, o setor empresarial compromete-se a realizar investimentos produtivos, viabilizar aquisição de equipamento e fornecer capacitação técnica para as cooperativas e suas redes de comercialização, de forma direta ou por meio de sua entidade representativa nacional, a Associação Nacional dos Carroceiros e Catadores de Materiais Recicláveis (ANCAT). O documento, no entanto, não apresenta o montante a ser investido, mas se limita a manifestar essa intenção. A proposta assegura ainda que os investimentos47 realizados pelo setor empresarial, desde o ano de 2012, possam ser contabilizados no relatório que atesta o cumprimento do acordo. Nessa conta serão incluídos os inúmeros projetos que as empresas já mantêm com as cooperativas, alguns dos quais mencionados na sessão anterior.

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“As ações implementadas pelas Empresas aderentes do presente acordo setorial durante os anos de 2012, 2013, 2014 e 2015 poderão ser contabilizadas para atingimento das metas, assim como também poderão ser contabilizados resultados de ações realizados em outros municípios que não aqueles abrangidos pela fase 1” (ACORDO...,2015, p. 18).

Em estudo de viabilidade econômica, anexado à proposta, o setor empresarial informa que o faturamento da indústria da reciclagem para o ano de 2011 foi de R$ 712,3 milhões, dos quais apenas R$ 56,4 milhões teriam ficado para cooperativas e associações de catadores (ESTUDO..., 2012, p.47). Por isso, além do suporte às unidades de trabalho, o setor empresarial também propõe a intensificação dos canais de comercialização direta com cooperativas e suas redes, sempre que possível e viável, entendendo que isso é determinante para o aumento da renda dos catadores. Essa meta igualmente é apresentada no plano das intenções, sem qualquer indicativo concreto de como será efetivada.

Em relação à potencialidade do aumento da renda dos catadores, a proposta identifica que no ano de 2010 a renda média do catador teria sido de R$ 511,00 e projeta para 2014 um valor entre R$ 681,00 e R$ 1.029,00 para os catadores contemplados pelo acordo (ESTUDO...2012, p. 48). A variação seria explicada pela efetivação dos canais de comercialização diretos com a indústria. O estudo de viabilidade aponta ainda que os preços de mercado não serão afetados pelo aumento da oferta de material reciclável, a não ser nos casos do papel e papelão, que tenderão a cair e a se aproximar do preço praticado internacionalmente.

Mencionamos anteriormente a complexidade da reciclagem dentro da perspectiva de redução do resíduo gerado pelo circuito industrial e da profundidade das transformações que ela exigiria. Ressaltamos que as embalagens são apenas a parte mais evidente de uma lógica de produção despreocupada com as externalidades produzidas. No acordo setorial firmado entre o governo federal e a coalizão não há qualquer sinalização para um comprometimento com o ciclo de vida do produto ou com metas que indiquem a redução do resíduo. Ela intenciona tocar apenas na superfície desse problema, aliando-se estrategicamente com o elo mais frágil da cadeia produtiva. Trata-se de uma estratégia de incentivo da reciclagem que prioriza a aliança entre o setor empresarial e o cooperativo, sem descartar, entretanto, o comércio atacadista de recicláveis. Ela pode ser lida como a ampliação das ações que o empresariado já mantém com as organizações de catadores.

Em relação aos possíveis investimentos a ser realizados no elo mais frágil dessa cadeia, não há qualquer valor garantido e ressalta-se a necessidade de viabilidade de mercado para cada um deles. O acordo setorial não é de forma alguma limitador da ação das empresas, pois a cada uma delas é assegurada a liberdade48 de investir da forma que entenda mais

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“Considerado o sistema acima descrito, as Empresas terão liberdade para realizar os investimentos

diretamente, em conjunto ou individualmente, em projetos que visam atingir as metas descritas neste Acordo Setorial...” (ACORDO..., 2015, p. 12)

adequada dentro de sua estratégia de negócios. Para os trabalhadores cooperativados, de outro lado, não há qualquer garantia de constância ou efetividade do financiamento. Em relação à remuneração da força de trabalho dos catadores, o setor empresarial não assume qualquer responsabilidade e admite formalmente que esta possa ficar abaixo do salário mínimo nacional49.

A partir dos elementos destacados é possível ler essa proposta de acordo setorial como uma possibilidade de legitimação e aprofundamento da acumulação flexível praticada ao longo da cadeia produtiva. Ainda que a proposta possa melhorar a condição de trabalho de algumas cooperativas, esse será um efeito colateral e negociado caso a caso. O compromisso assumido é única e exclusivamente com o aumento da produtividade. Trata-se de celebrar esse tipo de aliança entre capital e trabalho nos marcos de uma política pública, o que não surpreende, uma vez que o governo se eximiu de regulamentar a responsabilização do setor empresarial pela geração de resíduos: como mencionamos anteriormente, o marco legal vigente determina que o setor produtivo deva apresentar propostas para esse capítulo de sua implementação.

Na ótica do movimento,

a logística reversa é perversa, é injusta, porque ela coloca os predadores como os que vão cuidar daquilo que eles mesmo comem. E aqueles que protegem ficam à revelia do processo, entendeu? Os que fazem o trabalho mais pesado os que organizam o sistema, os que criam a consciência de educação ambiental nas pessoas, esses que fazem o trabalho, não são eles que decidem e tampouco os recebedores do processo. Porque as empresas acabam criando um processo delas produzirem e elas mesmas ganharem, de esse recurso virar recurso próprio. Então essa é a questão que tem. O que essa coalizão criou foi um sistema de poder financiar em parte alguns equipamentos pros catadores, para nós, para que a gente consiga gerar dados. Então é um processo que a gente tá trabalhando internamente de primeiro conseguir juntar e coletar esses dados e segundo é organizar internamente pra poder ir pra um processo de luta, porque a logística reversa, pra ela ser uma logística reversa solidária, nós precisamos lutar pra que ela seja solidária. (Alexandro Cardoso, catador de Porto Alegre, liderança do MNCR)

Além de visualizar a oportunidade de gerar as condições para um acordo setorial mais favorável aos catadores num futuro próximo, o movimento não pôde se eximir de participar desse processo, como explica o entrevistado:

O que acontece é que não somos unanimidade em todos os catadores.[...] Agora que tem conquista, muitos outros que não são catadores estão organizando as “coopergatos”, e esses não querem a luta, querem as conquistas. E se a gente não buscar o pouco que tem, eles vão querer, e esse pouco de catadores “coopergatos” que tem já é suficiente pra prestar conta dos 3% que a empresa precisa. (Alexandro Cardoso, catador de Porto Alegre, liderança do MNCR)

49 O salário mínimo nacional em 2014 era de R$ 724,00. O estudo de viabilidade econômica que sustenta a

Essa situação remete à discussão dos resultados da ação dos movimentos sociais. Em muitos casos, os principais insurgentes não são aqueles que colhem os frutos da ação coletiva, que acabam sendo obtidos por alguns aliados ou grupos de interesse convencionais mais propícios a acordos como os opositores (TARROW, 2009, p.206). Dessa forma, o movimento optou por participar do processo de negociação, e não se apartar dele, uma vez que, naquele momento, tratava-se do único canal de incidência em relação à efetivação da logística reversa. Caso deixado vago, esse lugar seria ocupado por outro grupo pouco interessado em reverter os resultados gerados para benefício do conjunto da categoria.

1.6 O trabalho dos catadores diante da flexibilidade produtiva da indústria da reciclagem