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CAPÍTULO III – METODOLOGIA DE PESQUISA

3.2 Ética na Pesquisa

O trabalho científico é fruto de uma sociedade, normalmente associado a alguma instituição de pesquisa. Conseguintemente, deve obedecer às pressuposições científicas que caracterizam a prática. Como produto, os argumentos apresentados ou posições defendidas podem ser contestados ou reafirmados, podem representar uma mudança dos paradigmas existentes, ou mesmo ser considerados inadequados por não obedecer aos critérios de cientificidade. Assim, encaramos o fazer científico como uma prática social35, em que os elementos que a compõem são inerentes às relações sociais próprias da área acadêmica, portanto, também ordenados pelo discurso36, em cujo bojo encerram-se ideologias acerca

desse mesmo fazer cientifico.

A prática da pesquisa é distinta das demais práticas sociais por seus aspectos sistemáticos, pelo rigor na seleção de seus membros, e pelo status de verdade, conferido pela noção de ciência, de conhecimento legítimo e honesto, capaz de fornecer dados e percepções que ampliam e potencializam o fazer humano (SPINK et al, 2000). As pessoas que não pertencem a esse "mundo" ficam à espera de novas tecnologias, de novos recursos para a qualidade de vida, para a justiça e para a compreensão de determinados aspectos humanos, enfim, de que a academia produza conhecimento válido e útil.

Um aspecto que deve ser ressaltado é a utilização dos resultados das pesquisas na construção de políticas baseadas em dados evidenciados cientificamente. Nesse sentido, não basta à academia produzir conhecimento verdadeiro (HAMMERSLEY. 1992), o/a cientista também deve estar atento/a às implicações de seu ponto de vista ou da forma como apresenta seus resultados. Se, além de verdadeiro, também for útil para a transformação das políticas públicas, e se estas forem produzidas para o crescimento reflexivo, então o trabalho etnográfico terá cumprido um papel relevante. Produzir esse conhecimento útil implica, antes de tudo, a análise de uma série de questões relativas à responsabilidade no acesso e na produção desses conhecimentos, bem como na sua posterior utilização.

Por todo o processo de investigação, o compromisso com a verdade na condução adequada do projeto deve ser a tônica do fazer científico. Questionamentos sociais sobre o                                                                                                                          

35  Prática social é um conceito antropológico, associado à ideia de cultura, no sentido de que toda cultura com-

porta formas de significação produzidas em situações sociais. As práticas sociais são parte da cultura e funcio- nam como mecanismos de transmissão e ressignificação da própria cultura. Nesses espaços, as representações dos sujeitos sociais são reafirmadas ou contestadas, momentos em que se abrem oportunidades para a mudança social. Para um aprofundamento ver Geertz (1978). Sobre mudança social ver Fairclough (trad. 2001).  

36 Segundo Foucault (1996) o discurso corresponde a uma ordem, através da qual a sociedade restringe ou

fazer científico têm motivado longos debates, desde o pós-guerra, em razão das práticas nazistas. Os argumentos se alongam tanto em relação às pesquisas em ciências naturais como em ciências humanas. Um dos problemas levantados, inicialmente na Antropologia, mas que se estende a todas as áreas que adotam a etnografia é a postura do/a pesquisador/a nos trabalhos de campo, bem como a utilização dos dados gerados, sua interpretação e sua divulgação. Em cada etapa, os passos do/a cientista devem ser calculados.

Um paradigma contestado foi o da superioridade da figura do/a cientista em relação aos/as colaboradores/as, ou a superioridade do saber científico em detrimento do saber local. Tais críticas tem fundamento nas relações éticas e se devem, em parte, à constituição do significado de ciência construído nos últimos séculos, atrelado às ideias errôneas de que letramento por si só seja fator de desenvolvimento humano e tecnológico, bem como às concepções de um método único, positivista, de se fazer ciência37.

A visão de intelectualidade atribuída ao saber científico mantém relação com o saber teórico, que por sua vez se contrapõe ao saber que se produz no cotidiano, o senso comum (SHOTTER e GERGEN, 1992). O trabalho de antropólogos/as tradicionais tendia à perpetuação de posições assimétricas de poder, uma vez que ao compreender os mecanismos hegemônicos e relatar as experiências em campo, adotava uma conotação essencialista às suas interpretações, oriundas da visão autônoma do letramento. Igualmente, também primavam pela permanência de tais estados sociais sob a alegação de que havia a necessidade de se preservar aquela cultura (LIMA, 2006).

Um posicionamento mais democrático faz com que o/a pesquisador/a entreveja os saberes com igual relevância. A construção social do conhecimento ganha a seus olhos uma dimensão diferenciada, na medida em que a ciência crítica passa a buscar nas interações cotidianas os mecanismos que produzem e perpetuam as diferenças, os preconceitos, as desigualdades, os esquemas que se enraízam e passam a fazer parte desse conhecimento que é comum, porém não desvelado. A esse propósito a etnometodologia busca analisar como os atores sociais obtêm uma apreensão compartilhada do mundo social (GARFINKEL, 1967).

Para os/as pesquisadores/as críticos/as, não há uma verdade absoluta, tanto na esfera acadêmica, como no senso comum. Há, contudo, um posicionamento ético, que parte da necessidade de problematização de conceitos naturalizados nas esferas observadas, com                                                                                                                          

37 Historicamente há dois caminhos metodológicos, o primeiro chamado monismo metodológico, inspirado em

Galileu, que evoca único método científico válido para todos os ramos da ciência, o de formulação e teste de hipóteses. Posteriormente, com a ascensão do homem como objeto legítimo da ciência, houve um questionamento no qual as ciências humanas contestavam o método único, próprio às ciências da natureza. Foucault (1966/1987) trata dessa ascensão das áreas humanas e advoga um método apropriado ao estudo do homem, pautado na epistemologia da diferença. Para aprofundamento sobre o debate ver Rorty (1994).

vistas à emancipação de pessoas ou grupos em posição de desvantagem. Assim, a pesquisa científica crítica adota outra percepção, a de que o senso comum comporta a rede ou o tecido por meio do qual a sociedade constitui seus significados (BHASKAR, 1997).

Um sentimento negativo por parte dos/as colaboradores/as igualmente relacionado à ética é aquele vinculado ao ganho ou vantagem auferido pelo/a investigador/a, ou o prejuízo para si e para seu grupo pela divulgação de determinados posicionamentos. Seria como se a pesquisa não trouxesse nenhum benefício imediato para os/as colaboradores/as, sendo vantajosa apenas para a pessoa do/a pesquisador/a, que ganharia “à custa” das comunidades estudadas38 (BEYNON, 1983). Nesse sentido, a ética ajusta a conduta dos/as pesquisadores/as ante a própria prática, prevenindo tais distorções.

Segundo Hammersley e Atkinson (2009) comentários sobre a exploração provocada pela pesquisa etnográfica levaram à elaboração de algumas recomendações: os projetos de pesquisa deveriam prever algo de retorno à população investigada, quer na forma de serviços, quer por meio de pagamentos além de que as pessoas entrevistadas deveriam se sentir empoderadas por tornar-se parte constitutiva da pesquisa, e não meros objetos dela.

Outra questão relacionada à pesquisa em campo é a consciência por parte do/a cientista de que as comunidades estudadas constroem representações do/a pesquisador/a e da academia por meio das experiências vividas. Posicionamentos contrários à pesquisa social39, principalmente oriundos de comunidades tradicionais, têm nitidamente, como principal eixo a conduta do/a pesquisador/a em relação ao/a colaborador/a40. Segundo Denzin e Lincoln (trad. 2006) dar forma pública ao que os outros estão fazendo ou dizendo envolve questões morais e políticas, que se remetem ao posicionamento do/a pesquisador/a frente ao que se deseja investigar bem como ao grau de influência a que a pesquisa está sujeita no que tange à cultura da modernidade - tecnologização, institucionalização, burocratização e profissionalização.

Ainda segundo os autores, a questão ética relaciona-se com a noção de "estar ao lado'" do outro, que é inerente à moralidade. Desta forma, moralidade é um estado que antecede à                                                                                                                          

38 Nesse sentido, fizemos questão de esclarecer que não estávamos avaliando o trabalho docente, que não era

esse o nosso papel. Tão pouco, teríamos interesse em lograr outro benefício que não o conhecimento. Que a despeito desse sentimento de usurpação, estávamos buscando a prática educacional ligada à Educação Especial com vistas à compreensão dos fenômenos sociais, e dentro da proposta emancipatória da ADC, desvelar as relações de poder, dando voz ao grupo investigado. Isso garantiu à nossa pesquisa as bases para um diálogo com benefícios recíprocos.

39 Para aprofundamento, ver Valente (1996).

40 Em apresentação no Núcleo de Estudos em Linguagem e Sociedade (Nelis/CEAM/UNB) em 2007 o

Antropólogo Stephen Baines falou sobre dificuldades vividas por ele mesmo em atuar junto a comunidades praieiras do litoral nordestino em razão da não aceitação da comunidade em ter antropólogos envolvidos na resolução de questões sociais. Em outro relato, a consultora e antropóloga Mary Baiochi, especialista em comunidades tradicionais, foi convidada pela comunidade Kalunga – GO, em 2005, a se retirar da localidade, em virtude também da não aceitação dos/as moradores/as em ter antropólogos/as na região.

escolha, e que não está no âmbito da decisão, não é opcional. Estar ao lado, o cuidar, é um tipo de responsabilidade não-reciproca, porque nasce de uma sensibilidade, de um significado de valor. Envolve, portanto, noções de justiça, bondade, felicidade, e não um compromisso, uma tarefa.

O construto ético deve ser, portanto, um viés a percorrer a escolha do tema, das categorias, da forma de condução do estudo, sua metodologia tanto para a geração dos dados como para sua análise, da forma de publicidade desses dados, do comportamento do/a pesquisador/a ante as pessoas que tornam a investigação possível, e principalmente, nortear a compreensão da finalidade a que a pesquisa se presta. A ênfase sobre as condutas deve ser ainda maior entre aqueles/las que adotam o método etnográfico na pesquisa social, visto que pesquisadores/as etnógrafos lidam com narrativas que materializam o sentir, a forma como pessoas reais interagem e compreendem questões como o amor, o parentesco, a afetividade. a sexualidade, o papel profissional, a religião, a auto-percepção, enfim, questões morais dos participantes.

Nesse sentido, o processo de pesquisa também deve entrever os fins e as consequências da própria investigação. São os fins práticos, os benefícios que uma investigação propicia à comunidade, que revelam o valor local da prática científico-acadêmica de campo. A busca de formas de conhecimento para atender a uma demanda acadêmica, tais como publicações ou títulos, não deve ser o principal móvel. Deve-se pensar, igualmente, na possibilidade de tornar compartilhado o conhecimento de que a academia é detentora, desde que a comunidade anseie por ele41.

O/a próprio/a cientista deve, a despeito da pressa que se tem a sociedade, investir maiores recursos na devolutiva de informações, na forma de interação, questionando e colaborando para que o seu fazer seja também emancipatório para si e para a comunidade (STREET, 2010). Cabe, assim, ao/a cientista, em suas atividades críticas e reflexivas, empreender esforços contínuos a fim de produzir ressiginificações dos aspectos implicados no desenvolvimento da própria prática, principalmente, em relação à ética no processo de investigação.

Por fim, destacamos que a pesquisa com seres humanos precisa observar processos de ordem legal e burocrática. Os comitês de ética surgiram no pós-guerra com o objetivo de                                                                                                                          

41 Magalhães 2000 assevera que a pesquisa deve contribuir para o avanço das práticas, por meio da

reflexividade. Segundo a autora, diante dessa premissa a academia ao promover a pesquisa deve aliar formas de compartilhamento dos saberes construídos durante a investigação, tornando-os acessíveis aos/as participantes.  

frear os abusos da academia e favorecer o lado mais frágil que é o ser humano. Assim, esta investigação foi submetida ao Conselho de Ética da Universidade de Brasília, que prescreve, entre outros, a adoção da prática de solicitação de consentimento aos/as colaboradores/as. Por isso, as Secretarias de Educação, as Regionais de Educação, as Diretorias de escolas, os/as professores/as, os/as alunos/as e os responsáveis pelos/as alunos/as foram devidamente consultados, recebendo nossas explicações ou visitas previamente ao começo da pesquisa, quantas vezes se fizeram solicitadas para o pleno entendimento de todas as questões obscuras, sempre na tentativa de tornar claros objetivos, métodos e mecanismos adotados nesta tese.