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A inclusão como espaço formador das identidades docentes

CAPÍTULO V – REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NO AEE

5.3 A inclusão como espaço formador das identidades docentes

O trabalho compreendido como atividade humana corresponde a uma das fontes de construção identitária porque relaciona representações e ideologias referentes ao trabalho em si e ao seu/sua executor/a. Assim é que a divisão social do trabalho separa o trabalho dos ricos e o trabalho dos pobres, as atividades para homens e as atividades para mulheres, o labor permitido às crianças e aqueles que pertencem ao universo adulto, em perpetuação dessas representações. Uma vez dominada a técnica e a representação do trabalho, parte desse fazer é internalizada e passa a ser compreendida pela pessoa como sendo uma habilidade sua, como sendo parte daquilo que se é. Um/a cozinheiro/a que domine as técnicas culinárias se verá como cozinheiro/a, sendo esse traço parte de sua identidade.

Essa identificação cria uma constrição sobre a agência do indivíduo, na medida em que as representações do trabalho desenham na consciência posições de poder, espaços de atuação, papéis e competências que se materializam nos contextos da experiência. Esse conjunto de crenças e percepções constitui então uma espécie de construto por meio do qual os indivíduos compreendem a si mesmos e suas liberdades, passando a funcionar como cerceadores da prática individual daquele/a que trabalha.

O cerceamento, uma vez naturalizado, tende a coincidir com a ideologia dominante, enfraquecendo alguns grupos enquanto fortalece outros. Nesse sentido, temos na função docente predominantemente feminina um espaço privilegiado de difusão ideológica por meio da qual mulheres são submetidas à disciplina do corpo, rigidez moral e falta de mobilidade econômica e social, impedindo-as de alcançar práticas nas quais o “cuidar” não seja um traço tão marcado. O trabalho docente ligado ao cuidar se aproxima das práticas domésticas,

cerceando o fazer feminino, situando-o entre esses dois ambientes. As exceções que surgem se dão pela exposição dessas mulheres às experiências fora desses dois contextos, fazendo emergir novas habilidades, e, portanto, novas identificações.

Bom. É, como que você, a que você atribui à predominância de mulheres? No Ensino Especial?

Lídia: Porque é né, mais questão de ternura, a mulher tem mais carinho, o

homem já..., não to dizendo todos, tem exceção, toda regra tem exceção, eu acho aquele carinho... aquela dedicação, acho que é isso.

Lídia adentrou a profissão por força da pressão familiar. Embora tenha dito que hoje não aconselharia a profissão às mulheres mais jovens, um conjunto de crenças sobre feminilidade e docência ainda fazem parte das representações nas quais acredita. Lídia atribui ternura, carinho e dedicação como atributos naturais da mulher e os relaciona para justificar a predominância da mulher no Ensino Especial. Aos homens, que possuem tais características, Lídia os classifica como exceção, logo a presença masculina não seria muito apropriada, visto somente aqueles que se mostrarem diferentes em sua masculinidade seriam providos de dedicação. Mas, os atributos mencionados são dirigidos a uma categoria de trabalho específica – o Ensino Especial e o trato com pessoas com deficiência. Nesse sentido, a educação ao necessitar de ternura, carinho e dedicação se assemelha ao cuidado materno, situando a Educação Especial no em nível semelhante ao trabalho doméstico, ao trabalho de mãe.

Na sua opinião, quais requisitos o professor tem que ter pra trabalhar com Ensino Especial?

Lídia: Tem que ter muito o que a gente não tem, nós não fomos preparados

pra trabalhar com ensino especial... cê foi? risos. Entendeu? A gente pegou assim de repente. Mesmo ela que ainda tá na ativa... eu te falo porque eu já peguei eu já tava na ativa, nós não tivemos orientação nenhuma. Jogaram, não foi isso Kelly? Oh. Inclusão. Ela pode falar, porque ela tá, ela tá na ativa. Eu não sei se saberia trabalhar, se não tivesse essa sala de apoio, eu acho que não daria conta não.

Sala de apoio...

Lídia:Não tivemos nenhuma orientação, e agora a sala de apoio, se tirarem a

sala de apoio vai ser problema, estão dizendo que vai sair, não sei.

Tem alguma coisa que a senhora gostaria de acrescentar sobre o trabalho de professor?

Lídia: Olha, eu acho que pra trabalhar com ensino especial, teria que ter, nós

teríamos que ter uma orientação. Não é simplesmente jogar. Eu gostaria de poder, por exemplo, se eu tivesse uma filha, eu gostaria de ter... [inaudível] não é... ainda mais se tirarem a sala de apoio. Mas aí eu não tô mais na ativa, então por mim...

O termo “requisito” pode ter sido interpretado por Lídia como atributo ou como uma exigência burocrática. Se considerarmos como atributo, temos que a identificação com o trabalho se dá mediante a internalização das técnicas, ao desenvolvimento da maestria para o trabalho. No caso docente, os/as professores/as não passaram pela exposição de como fazer a inclusão. De igual forma, não há pessoas “proficientes” na escola comum para transmitir os conhecimentos empiricamente, uma vez que aqueles/as que são considerados/as capacitados/as não trabalham na escolarização, mas no atendimento especializado, em que as prioridades e os objetivos são diversos da sala de aula. Sem referência, a alusão ao treinamento para se compreender a proposta é um fato recorrente, podendo ser compreendido, assim, como requisito para o trabalho.

Se considerarmos como exigência burocrática, a formação poderia ser vista como um requisito desejável para trabalhar na Educação Especial, e nesse caso, Lídia compreende que uma vez formado/a o/a professor/a teria maiores condições de realizar o trabalho. Sob esse ponto de vista, Lídia menciona o trabalho docente para o Ensino Especial como atividade especializada, confrontando a concepção vigente na legislação de que os/as professores/as comuns estariam aptos/as à promover a inclusão, mediante apoio das salas de recursos.

É. O que você acha que faz com que a educação como um todo, mas a Educação Especial de forma mais incisiva atrai tanto as mulheres, o que você acha que acontece que as mulheres vão trabalhar na Educação Especial?

Amanda: Eu acho que é questão assim, saber lidar, ter mais paciência, ter

mais amor. Que de certa forma a mulher ela acaba sendo mais carinhosa com o aluno, agente vê assim, às vezes a gente vê assim o, o jeito que um aluno chega, até pra conversar, quando eu falo assim, mais jeito assim dos meninos do que com os homens, tem mais jeito. Eu acho que os meninos vêem como se [inaudível] eles acabam sentindo mais medo dos professores do que das professoras.

Tem isso também?

Amanda: Eu já percebi isso aqui, porque essa turma aqui mesmo, tem

ótimos professores. E os professores não reclamavam nada, juntou os professores né, dois agora ficou. Esses professores, não reclamavam nada. E só com as professoras que os meninos é... Entrava em contradição.

Então eles tinham um comportamento mais sério com os professores? Amanda: Eu acho que uma coisa que me atrapalha muito como professora

é... Eles acham muito miúda e isso é uma realidade, então a psicóloga disse pra mim: Oh, você é miúda, pequena, aquela do respeito, assim né, porque se você pensar nos meninos ai, representa bem mais velho, alunos né? Eu sempre falei pra minha mãe, que isso me atrapalhava em questão de respeito em sala de aula.

Amanda, assim como Lídia, acredita que as mulheres sejam mais carinhosas, mais pacientes e demonstrem mais amor. Em sua fala ela menciona uma diferenciação no

tratamento dos/as alunos/as em relação aos professores e professoras. Enquanto os homens não reclamavam, as mulheres questionavam a disciplina, chegando à conclusão de que só com as mulheres que os/as alunos/as argumentavam, chegando, em suas palavras, à contradição. Analisando o fato, Amanda dá a seguinte explicação para a falta de comportamento dos/as alunos/as para com ela: o fato de ser miúda. Ela, de fato, é uma pessoa jovem de compleição física delicada, de voz suave e gestos tímidos. Contudo, não comenta somente a falta de respeito somente para consigo, e sim para com as professoras, levando a crer que os/as alunos/as têm nos homens maior admiração, medo ou respeito, reconhecendo neles figuras de maior prestígio ou poder. Nesse sentido, tanto homens como mulheres, alunos/as ou professores/as reproduzem as ideologias de gênero em seus gestos em lutas por poder e por autonomia.

Sobre autonomia e identidade, vejamos os trechos da entrevista de Gilmar sobre letramento e escrita:

Colaborador/a No lar Na infância Com os pais

Gilmar E o que é que você costuma hoje escrever? Que tipo de

anotação?

Escrever? É, mais atividades relacionadas com a escola, é, relatório de aula, é, essas coisas. Plano de aula, tudo relacionado à escola mesmo. Não escrevo nada fora.

Aí, que tipo de site que você visita?

Geralmente é MSN, Orkut, e o site que eu uso mais é o da secretaria da educação, a do MEC, e eu estou fazendo um curso de informática, porque eu vou pegar a sala de informática da outra escola, então, to fazendo o curso à distância, então tem o site deles lá, e quando preciso buscar informação, eu entro lá.

Que tipo de impressos você tem em casa? [...] É, coisas escritas. Folhinha, recibo de banco...

Eu tenho assinatura de jornal popular, o jornal popular daqui né, e tem o jornal Daqui, você conhece? E revistas não tenho.

Você lembra de alguma atividade com texto na infância? Eu brincava de escolinha, e geralmente eu era o professor, pra variar.

Nesses papeis que você citou, qual que você acha que tem uma importância maior na sua vida? [...] Não, dos papeis, como professor, como aluno, como membro de uma família, como membro de uma religião, qual desses papeis?

Eu acho que como professor, ainda não, porque eu estou começando agora, no terceiro ano, mas eu procuro fazer o meu melhor. Só que ainda não estou melhor. Mas assim, na atualidade, eu sou um bom filho, né, [...] como tenho uma boa organização, então quando tem alguma organização eles gostam de me chamar, pra organizar, porque as vezes você tem uma briguinha com o pessoalzinho, uma coisa ou outra, eu fico quebrando isso pra reunir, senão?, se ficar deixando vai só distanciando. Então eu procuro organizar, essas reuniões familiares,

QUADRO 4.2: Relatos de Gilmar

A linguagem formal, a inteligência e a capacidade lógica são qualidades frequentemente atribuídas às pessoas que tiveram maior acesso à escolarização, de forma que a associação entre cultura escrita e desenvolvimento humano corresponde a uma das representações ligadas ao conceito de letramento autônomo80, segundo o qual a escrita desenvolve o potencial cognitivo, faz seus/suas usuários/as mais inteligentes, e, portanto, mais desenvolvidos/as técnico-cientificamente, podendo, por isso, exercer o domínio econômico, ideológico e político.

A profissão docente, embora seja uma atividade em desprestígio em razão das más condições de trabalho e baixos salários, ainda detém parte do poder atribuído à escrita, sendo a escola uma fonte da valorização do formal, do erudito e da cultura dominante. Alguns aspectos das representações ligadas à cultura escrita (inteligência, capacidade, desenvolvimento, riqueza e autonomia) são absorvidos pela escola que dota os/as mestres/as do poder de conceder ou de desenvolver tais habilidades em seus/suas alunos/as, por meio da seleção e transmissão de saberes. Assim, os/as professores/as são personagens importantes no atual capitalismo, uma vez que tanto formam consumidores/as como trabalhadores/as para abastecimento do mercado global.

Fragmentada entre o prestígio da cultura escrita e a falta de valorização econômica, a profissão oscila, ante a representação do poder e da autonomia e a “classificação” ou “status” da escola/instituição em que se situam. O mercado com a contribuição do governo tende a “selecionar” os/as professores/as que realmente receberão o prestígio daqueles/as que servirão apenas ao exercício ou cumprimento da escolarização obrigatória por meio do mecanismo de ranqueamento das unidades escolares – via sistemas de avaliação. Quem trabalhar em unidades de prestígio também gozará de prestígio pela excelência de seus “serviços” para a comunidade.

Contudo, professores/as dos dois “tipos” de escola, as bem classificadas e aquelas com menos prestígio, compartilham a concepção de que a educação pode influenciar a sociedade, e de que esses/as profissionais possuem pelo menos ferramentas formais, para isso – um diploma. Na fala de Gilmar, pretendemos verificar traços que emergem e que trazem informações sobre a relação entre letramento e formação identitária.

                                                                                                                         

80 Veja o capítulo II.

geralmente sou eu que organizo.

Gilmar ao ser questionado sobre sua rotina com a escrita, vincula leitura e escrita às atividades formais escolares (relatório e plano de aula), bem como classifica como escrita somente os gêneros discursivos escolares que produz (relatório de aula e planos de aula), e afirma “Não escrevo nada fora”, excluindo os demais tipos de prática letrada do status de “escrita”.

Os usos da escrita obedecem às posições ocupadas por seus/suas usuários/as. Assim, a posição de professor é diferente da de aluno e da de membro de uma comunidade ou de uma família. Como professor sua relação com a escrita é aquela de detentor da posição daquele que escreve, daquele que tem autorização para ser autor dos gêneros relatório e plano de aula. Somente como professor pode eleger a escrita de seus/suas alunos/as e exercer parte desse poder que a escrita e a escola lhe conferem. Sua atuação é de autor, daquele que “pode” selecionar conteúdos e aplicar avaliações, definindo padrões e verificando segundo os mesmos quem aprendeu e quem pode prosseguir daqueles que não obtiveram bons resultados. Nessa posição, Gilmar ao se afirmar como escritor/autor delineia sua identidade como detentor de poder, ainda que seja aquele conferido pela atividade escolar.

Sua percepção sobre escrita muda quando ele se refere à própria atuação como aluno de um curso à distância. Os letramentos de aluno e de familiar e/ou participante de uma rede social não são letramentos capazes de oferecer o mesmo poder auferido na condição de professor de uma escola, logo não são categorizados à conta de escrita.

Por outro lado, a profissão docente tem sido alvo de constantes modificações. O fazer docente não é mais apenas transmissão de conhecimentos, e sim uma ferramenta institucional para abertura e promoção da cidadania para diferentes grupos. Esses grupos trazem algumas demandas em relação às mudanças na formatação da escola tradicional. Não cabe mais na escola atual uma atividade docente distante, formal, centrada em um currículo estático, porque o ambiente plural faz com que discursos outros sejam envolvidos, indo além da valorização do erudito, do formal e da cultura dominante.

Nesse sentido, a junção do poder/autoria à profissão docente diz respeito à escola tradicional, ao letramento autônomo, enquanto que o desprestígio da função de “cuidar” e as mudanças no processo de abertura da escola vão de encontro a esse paradigma tradicional, desconstruindo-o. A identidade de Gilmar se fragmenta. O cuidar e a flexibilização81 no                                                                                                                          

81 A flexibilização diminui o poder da avaliação formal, estabelece mecanismos de interação entre o/a aluno/a e a

secretaria de educação, uma espécie de ouvidoria para os/as alunos/as e estabelece mecanismos de adaptação da frequência escolar para públicos diferenciados como crianças e jovens em privação de liberdade e em situação de rua.

processo de ensino no bojo da atividade docente é repudiado por Gilmar, à conta de desprestígio, numa contradição entre escrita/poder versus ensino/cuidar.

A partir dessa análise, verificamos que a atividade escrita faz parte da construção identitária porque posiciona seus participantes, No entanto, ocupar a posição não é suficiente para a construção identitária. É preciso dominar a prática, estar imersa em seus mecanismos e atuar de forma satisfatória em relação aos seus padrões e/ou representações. A atuação docente na fala de Gilmar, demonstra que ele não está totalmente adaptado à prática docente como em “Eu acho que como professor, ainda não, porque eu estou começando agora, no terceiro ano, mas eu procuro fazer o meu melhor. Só que ainda não estou melhor”. Gilmar se recorda de ocupar o papel de professor quando brincava de escolinha. Contudo, ao ser interrogado sobre seus papéis sociais, não se refere à profissão como sendo um papel central. Seu argumento é a inexperiência.

Uma atividade para a qual foi formado em uma universidade, atividade que exerceu na infância em seus brinquedos e ao ser defrontado em fase adulta não se reconhece como tal tem a ver com suas dificuldades de autoria e com as mudanças em que a escola se deparou. Gilmar não se sente preparado para o exercício de sua docência no novo contexto porque sua referência de quando era criança não é a mesma de agora. Embora domine os gêneros – quando fala de seus escritos, não se sente confortável em seu desempenho. Não consegue ter maestria em sua atividade. Assim, discursos e práticas em transformação podem gerar, como no caso de Gilmar identidades hibridas, fragmentadas. Contudo, tanto Gilmar como Diana e outros entrevistados não se sentem preparados/as para o exercício na inclusão. A partir dos conceitos de cuidado e de atenção às necessidades especiais, eles/elas tentam superar as suas próprias cobranças individuais, sem, contudo, obter todas as respostas que procuram. Nesse contexto da educação, a prática se mostra fluida e seus parâmetros pouco definidos, fragilizando ainda mais a identidade docente.