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Discurso, poder e hegemonia nas representações de gênero

CAPÍTULO II – LINGUAGEM E GÊNERO

2.2 Discurso, poder e hegemonia nas representações de gênero

As ordens de discurso contêm a somatória dos discursos de uma atividade, instituição ou espaço. Dentro da prática discursiva, as posições de sujeitos definem, em parte, o nível de acesso que as pessoas terão ao discurso de prestígio. Ao manipular textos, produzindo-os ou assimilando-os, os sujeitos da prática negociam suas identidades. Identidades, assim, passam a ser reflexo e instrumento de poder (FAIRCLOUGH, 1997). O poder globalizado controla a composição das ordens de discurso globais, que interferem nas políticas dos estados-nação e repercutem na vida das pessoas comuns. Práticas discursivas internacionais regidas por interesses específicos são assimiladas e recontextualizadas em atividades locais. O global e o local misturam-se, transformando a economia, a cultura, o trabalho, a sociedade e, principalmente, os sujeitos.

Os sujeitos são uma dimensão da prática social. Não estão circunscritos aos discursos, mas se formam nele, assim como nas práticas sociais, ao passo em que também interferem na sociedade. A atuação dos sujeitos nas práticas reflete o resultado dos caminhos por eles percorridos em suas vidas, das crenças/valores/desejos, das habilidades, das emoções e de                                                                                                                          

27 Em nossa pesquisa de campo em Goiânia participamos de uma reunião com a diretora, duas policiais militares

do Batalhão Escolar e dois professores. As policiais explicavam que um colega, não identificado, havia feito uma denúncia diretamente ao 190 – telefone de emergência da PM, segundo a qual um aluno estaria vendendo drogas na escola, sendo que naquele dia trazia a droga sob o boné. As policiais foram até a escola e explicaram que não poderiam convidá-lo para sair de sala, nem levar o adolescente a uma delegacia para a revista, nem tampouco poderiam causar quaisquer constrangimentos ao aluno estando ele na escola. A denúncia deveria ser feita formalmente junto ao conselho tutelar para que, depois de investigada, possa ser levada ao Ministério Público que poderia ou não apresentar a queixa para o Juiz da Infância que expediria o mandado de busca na casa do menor ou onde a investigação indicasse como sendo o local da venda. Caso fosse na escola, dificilmente conseguiriam do Juiz a autorização para a abordagem.

seus papéis no interior da prática. Os processos ideológicos que atravessam as práticas também influenciam a constituição desses sujeitos, correspondendo em parte às referências e significados atribuídos às atividades e às próprias pessoas, no valor que atribuem a si e ao outro. Nesse aspecto, a diferença molda também os indivíduos, fomentando as contradições e as negociações que as pessoas encontram no confronto de si mesmas com os outros (WOODWARD, 1997).

A identidade em um mundo globalizado pressupõe um sujeito reflexivo (GIDDENS, 1991). O mundo globalizado permitiu a fragmentação no processo de construção identítária, resultado da mudança de paradigmas produtivos e do acesso das pessoas à comunicação de massa, e em especial, a internet. Discursos, antes dominantes, passaram a coexistir com novas ordens de discursos, que reposicionam sujeitos e os aliciam para novas práticas e novos discursos (como o discurso feminista e dos direitos humanos, por exemplo). O acesso às informações e a capacidade de agência desse ser fragmentado faz com que as construções identitárias tornem-se complexas, e não raro, contraditórias, permitindo desde o início do século passado, mudanças estruturais na formação da identidade de gênero social.

Wodak (1984) esclarece que os atributos que definem o gênero sofrem os impactos dos arranjos sociais de cada cultura, de cada faixa etária, numa tendência crescente de massificação das formas de falar ou se expressar, mas preservando no mundo ocidental diferenciações ideológicas e relações sociais que sustentam ainda as desigualdades de poder. As representações de gênero, contudo, sofrem alterações em seus contornos, de forma que as concepções de feminilidade e masculinidade variam entre as gerações. Na maior parte das sociedades, há uma divisão social baseada no sexo, em que os homens se sobrepõem às mulheres, conhecida como visão androcêntrica. Essa divisão estabelece um tipo de hierarquia, em que mulheres são a expressão desviante ou marcada.

O termo sexismo foi inventado na década de 1960 para se referir à discriminação realizada com base no sexo. A área dos estudos de Linguagem e Gênero28 vem, desde então, buscando em suas investigações, a crítica social na qual as diferenças não sejam tratadas como naturais ou dadas. De um modo geral, segundo Wodak (1984) duas são as questões centrais nos estudos de Linguagem e Gênero:

a. Como as mulheres são representadas no sistema linguístico;

b. Em que o comportamento linguístico de mulheres diferem do comportamento linguís- tico dos homens;

                                                                                                                         

Essas perguntas são importantes para lançar luz em questões que aparentemente são apenas intrínsecas entre os gêneros, como a comunicação e a interação. A autora citada relata uma pesquisa feita no campo da linguagem e gênero em que investigou a comunicação entre mães e filhas na cidade de Londres. Durante as pesquisas, foi verificado que mães conversam de forma distinta quando se dirigem aos filhos e filhas. Também detectou que as meninas utilizavam a linguagem como forma de subversão. Embora costumassem manter a linguagem na modalidade de prestígio, quando não o faziam não significava algo relacionado à posição social/econômica, mas era um processo de autoafirmação, motivado pela quebra ou diminuição na qualidade do relacionamento com a mãe. Esse estudo buscou relações sociais baseadas em gênero, cuja performance relaciona poder e variação linguística.

As relações sociais e os papéis fixam identidades. A cada performance, a cada uso discursivo ou escolha, as representações se solidificam. Nesse sentido, as investigações em Linguagem e Gênero, considerada uma área pós-estruturalista, ocupam-se com o espaço destinado à ação dos sujeitos, com sua capacidade de atuação, com a fixação das identidades, sua formação múltipla, sua fragmentação ou realização. O espaço da escola, da casa, do comércio e mesmo o da maternidade impõem sobre a mulher um papel passivo, no qual a figura feminina realiza-se por meio de padrões, sendo, portanto, destituída de conteúdo (WILSON, 1991). Ideologicamente, são os elementos do espaço, no discurso de gênero, que dão à mulher o contorno de sua identidade. A luta por um espaço de maior poder e também por uma representação de prestígio, não vazia, está no cerne das questões feministas.

Sociedade e identidade são construções contínuas. A sociedade define as características a serem admitidas pelo corpo. A identidade também é moldada pela aparência. As escolhas da vestimenta e dos adereços somam-se à postura, entonação da voz, massa corporal, cor, característica dos cabelos e olhos. O sujeito na modernidade tardia é atento às mudanças do corpo, da aparência, em constantes processos de adaptações, cirurgias, tratamentos que são mudanças também identitárias. Segundo Bordieu (1994) os maneirismos, a entonação da voz, os discursos e as atividades constituem as características do eu ou ethos, que se verifica em todo o indivíduo, seu corpo e sua fala.

O corpo, no processo de inclusão, é algo que choca, que agride, que separa. As deficiências podem trazer deformações, mutilações ou malformações que transcendem a subjetividade e se materializa no corpo. Do ponto de vista da socialização, a presença de pessoas com deficiência no meio escolar é um fator positivo se focarmos na quebra dos aprisionamentos do corpo, na obrigatoriedade da beleza, da perfeição dos gestos. Embora esse

paradigma não seja totalmente modificado na escola, a inclusão evoca valores de aceitação, de compartilhamento e de heterogeneidade construtiva.

Sob o enfoque da divisão do trabalho baseada no gênero, temos um discurso da maternagem, também suscitado pela inclusão, em razão dos cuidados e da aproximação afetiva com que as professoras são convocadas a trabalhar. Essa postura próxima, de aceitação, quase familiar faz com que os discursos maternos ou de mãe sejam trazidos à superfície da prática destoando o aspecto profissional do fazer docente, em aproximações de que o cuidado é “natural”, “espontâneo”, de que a mulher é mais “carinhosa” e, portanto, não necessita de formação ou formalização na inclusão.

São questões de poder, ideologia e gênero que enfraquecem a mulher, mas antes disso, enfraquecem a educação. Na prática inclusiva, a escola se situa no campo da maternagem e não da educação, da formação profissional ou do desenvolvimento coletivo. A falta de profissionais especialistas para o trato e acompanhamento das rotinas fazem com que o/a professor/a perca seu horário de descanso para atuar nessas atividades, e/ou que a criança fique exposta, só. Não há sequer quem as recepcione no portão de entrada da escola e as leve em sala29. O acolher, o educar é indiferente ao gênero e deve ser atribuições de todos/as, inclusive dos/as professores/as. Segundo Geert Hofstede (1991), lugares onde ambos os gêneros sociais se creditam o direito de serem ternos, modestos e preocupados com a qualidade de vida a incidência de diferença de direitos baseada nos gêneros é menor. Contudo, levar ao banheiro, fazer trocas de fraldas, alimentar, conhecer as medicações, seus efeitos e as consequências de sua falta, as necessidades físicas, do corpo, vão além da atividade docente. E, mesmo nos casos de certa autonomia fisiológica, a maioria das pessoas com deficiência intelectual/mental e com distúrbios comportamentais precisa do acompanhamento de rotinas, do cuidar e da orientação que extrapolam o fazer docente nas séries finais do Ensino Fundamental, motivo pelo qual muitas crianças e jovens com Síndrome de Down não frequentam a escola nas séries finais.