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CAPÍTULO II – LINGUAGEM E GÊNERO

2.5 A prática social do Letramento

Gee (2000) discorre sobre o letramento como um tipo de discurso construído a partir de uma linguagem distinta, formas linguísticas elaboradas para a mediação em atividades situadas, também construídas socialmente. Para o autor, os textos escritos são discursos que determinados grupos de pessoas utilizam para interagir, valorizar, fazer acreditar e até mesmo falar (GEE, 2000, p.413). Esses textos formam um conjunto de semioses, que incluem todas as formas de construção de significados (FAIRCLOUGH, 2001, p.122), e que constituem

formas de conhecimento, formas de ser, de estar no mundo. Tais conhecimentos influem no significado pessoal, na identidade, transparecendo em linguagem corporal, imagens visuais que refletem os modos de ser, enfim, a própria identidade.

De acordo com a relação maior ou menor com textos de uma determinada prática específica, os valores contidos e veiculados passam a ocupar maior ou menor importância na mente e no imaginário dos atores. Assim é que a prática docente universitária, por exemplo, com alto grau de letramento científico e acadêmico, acaba por produzir formas específicas de valorização e de identificação de grupos. Tais conhecimentos acadêmicos tornam uma pessoa mais ou menos apta a ocupar espaços dentro de uma instituição universitária. O grau de rigidez e de exigência oscilará de acordo com a estrutura da prática de pesquisa que essa instituição ostentar. Quanto mais se produz textos escritos, maior o grau de exigência. Outro efeito recai sobre a escolha de novos membros. O grupo com o maior grau de saturação individual desses letramentos em suas identidades e no modo como se portam e se comunicam buscarão nos candidatos atributos semelhantes, e essa correspondência determinará maior ou menor aceitação desses candidatos. O valor, o poder, o destaque, serão determinados por esses letramentos, com a saturação no próprio ser, que transparece nos modos de ser, de falar e de agir no mundo em consonância com o que é veiculado nos textos, bem como capacidade de leitura e, principalmente, de escrita.

As diferenças, segundo Silva (2000), participam do processo de aceitação e negação de identidades, de inclusão e de exclusão, compondo parte do que somos. Assim, as lutas pelas identidades são lutas pelo poder e pela posse de representações de prestígio. Nesse sentido, o acesso aos letramentos pode ser visto como uma forma de aquisição dessas representações. Por meio do acesso aos letramentos de prestígio, novos atores podem ser inseridos em práticas constituídas, bem como, por meio da exposição de atributos relacionados aos letramentos de prestígio, pelos atores sociais, novas propostas de mudança podem ocorrer, via processo de identificação. Em outras palavras, atores detentores de um discurso de autoridade podem intervir nas práticas propondo novas formas de significado para um mesmo fenômeno. Como é o caso, no contexto universitário, da adoção de mecanismos adequados a recepção e permanência de alunos deficientes e indígenas.

Aplicando essa concepção de textos escritos como formas específicas de discurso, como formas de agir em sociedade, Gee (1999) observa que pessoas internalizam imagens apropriadas, padrões, e as palavras das atividades sociais de que tenham participado. Atores executam essas atividades com base em posições sociais (FAIRCLOUGH, 2001). As posições sociais dentro de uma atividade interferem na forma como os significados são construídos, de

acordo com os gêneros discursivos a que tenham sido expostos. Gêneros discursivos diferem em graus de poder e ideologia (STREET, 1998). Textos com maior prestígio interferem na pratica ou no conjunto de práticas de um número maior de pessoas do que outros. Textos governamentais regem atividades. Textos publicitários influenciam comportamentos. Textos cotidianos operacionalizam dinâmicas. Textos domésticos determinam o quanto esses outros textos adentram ao lar e de que forma aquela família está inserida em diferentes contextos sociais. Os textos lidos em um ambiente familiar dizem sobre a posição social de seus leitores. Quem os produz demonstra a posição social que ocupa. De igual sorte, a leitura e a escrita vão ser carregadas desses sentidos, e terão uma forma “situada”, ou seja, uma forma ler e de escrever correspondente ao mundo social em que o discurso foi gerado.

Assim como a concepção de discurso crítico, o letramento crítico permite uma ação libertadora, poderosa, em que os atores tomam os textos como metas-discurso, compreendendo as práticas sociais a que estes textos se filiam, e assim, construindo novas formas de situar-se em sociedade (GEE, 1996). Gee, em sua obra de 1999 ainda advoga que os estudos com letramento devem centrar-se no trabalho de percepção de como as pessoas conseguem reconstruir, manter, negociar, resistir a identidades ou situações impostas. Relações assimétricas de poder tendem a constranger pessoas a falar, pensar, agir e posicionar de uma forma particular, a aceitar certas maneiras de ver-se e encarar o mundo, mas os diferentes letramentos, e entre eles os letramentos críticos, são poderosas ferramentas de atuação de que atores locais podem utilizar para romper barreiras impostas pelas estruturas, e alçar-se em busca de novas configurações sociais.

Na década de 1980, muitos estudiosos começaram a questionar uma concepção hegemônica de letramento ou literacy que pregava “a grande divisão” ou a separação dos países em mun- dos desenvolvidos e não desenvolvidos, com base no domínio ou não da escrita. Essa concep- ção originou-se nos Estados Unidos, na década de 1930 e dava legitimidade ao domínio de países tenologizados sobre os demais. Segundo o pensamento vigente, a tecnologia da escrita seria capaz de tornar as pessoas aptas a atuarem no mundo tecnológico. A escrita configuraria como um fator de desenvolvimento cognitivo e social, sendo que as comunidades ágrafas ou cuja cultura escrita não estava totalmente disseminada, estariam em estado de selvageria. Aos estudos que admitiam o uso social da leitura e da escrita como preponderante ao desenvolvi- mento e não seu domínio individual, Gee (1990) denominou como os Novos Estudos do Le- tramento (New Literacy Studies).

Para distinguir a concepção de letramento como sendo fator exclusivo de desenvolvimento do entendimento de letramento como uma atividade situada socialmente,

Street (1984, 1995) desenvolveu os conceitos de “modelo de letramento autônomo” e de “modelo de letramento ideológico”. Para o autor, a representação de pessoas não escolarizadas como cegas, incapazes ou deficientes deu-se pelo processo de exclusão da escrita formal. Street defende que não há incapacidade individual, mas a falta de acesso aos valores, crenças, significados, ou aos bens culturais simbólicos associados aos textos inerentes ao contexto escolar.

Trabalhando com uma concepção de letramento semelhante à de Street, Shirley Brice Heath desenvolveu o conceito de “eventos de letramento” na obra Ways with Words de 1983. Para a autora, eventos de letramento são atividades em que textos exercem algum papel.

Segundo Sato (2008), Street na obra de 1984 apropria-se do conceito de evento de letramento de Heath e propõe o conceito de práticas de letramento. “Práticas de letramento” estariam em um nível mais abstrato, como modos de organização do uso da leitura e da escrita, perceptíveis a partir dos eventos. Para uma investigação, seria possível presenciar um evento de letramento, mas não sua prática.

A Teoria Social do Letramento - TSL foi um desdobramento ocorrido em 1998. Inicialmente trabalhado na Antropologia, o conceito de prática de letramento ganha espaço na Linguística, com a proposta de Barton e Hamilton (1998). Com a adesão do novo campo de investigação, letramento se torna um objeto transdisciplinar. A teoria proposta operacionalizou os conceitos de evento de letramento de Heath (1983) e de práticas de letramento de Street (1984) compreendendo letramento como usos da leitura e da escrita em contextos situados, considerando-o como prática social em que estão envolvidas questões ideológicas e disputas hegemônicas.

A Teoria Social do Letramento busca a análise de elementos sociais que regulam os usos associados à escrita como forma de manipulação, dominação e controle econômico e ideológico. Assim, uma diferença torna-se importante. No Brasil, o termo letramento está fortemente associado à concepção autônoma, ligada à noção de uso funcional da leitura e da escrita em contextos sociais (Soares, 1998). Muito próximo do conceito de alfabetização, letramento no campo pedagógico brasileiro tem a ver com desempenho individual, enquanto que o letramento no campo dos Novos Estudos do Letramento tem a ver com práticas sociais, envolvendo um coletivo, em que ideologias e práticas hegemônicas são o cerne investigativo.

Barton e Hamilton (idem) desenvolveram ainda a metáfora da ecologia que se aproxima do conceito de ordens do discurso. Por ecologia podemos entender a soma dos usos situados da leitura e da escrita, que ocorrem de forma intercambiante (BARTON, 1994). Os usos da escrita e da leitura (letramentos) somam diferentes formas de manifestação em um

determinado contexto, sendo que cada uso se relaciona a uma prática e os usos interligados formam a ecologia. De uma forma crítica, Rios (2002) esclarece que a metáfora da ecologia é apropriada para entendermos que os letramentos coexistem em um dado ambiente social. A população os produz, são interligados, e a metáfora da ecologia permite visualizar a necessidade de se preservar letramentos de menor prestígio, como o letramento de práticas informais, porque são ameaçados por letramentos oriundos de instituições poderosas, como a escola.

Vimos que ambas as teorias possuem raízes na Teoria Social Crítica. O uso de textos é visto nas duas propostas como forma de ação, inserida em uma prática social. Para a articulação em tela, torna-se relevante o conceito proposto por Magalhães (1995) de “Práticas discursivas de letramento”, o qual trabalharemos a seguir.