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CAPÍTULO II – LINGUAGEM E GÊNERO

2.6 Articulações possíveis

Não pretendemos com esse breve trabalho formular um método de análise em si. Nossa contribuição se dá, basicamente, em produzir pensamentos visando possíveis desdobramentos de ambas as teorias para que os fenômenos possam ser compreendidos de forma emancipatória.

Os conceitos de eventos de letramento e de práticas de letramento, segundo Magalhães (1995), derivam do intercâmbio entre a Antropologia e a Linguística. Ainda de acordo com a autora, práticas discursivas de letramento têm caráter institucional ou comunitário em cada sociedade; variam de acordo com os contextos e comportam crenças e valores constitutivos nos discursos mediados pelos textos. Ademais, correspondem aos usos da cultura escrita permitidos pelas normas sociais e carregam os limites dos discursos relativos à identidade, à estrutura social, e assim por diante.

Práticas discursivas de letramento são, desta forma, um tipo de prática discursiva, relacionada ao controle das práticas de letramento. Em outras palavras, são articulações discursivas que selecionam os eventos que podem ou não ocorrer e o significado que estes textos assumem na sociedade. Nas palavras de Magalhães (1995), são “matrizes históricas que determinam a produção e a interpretação de instâncias concretas de textos falados ou escritos, com emissores e receptores concretos”.

Temos em práticas sociais modos relativamente estáveis de ação social, intermediárias entre as estruturas e os eventos. Em práticas de letramento, temos modos de

organização do uso da leitura e da escrita. Por fim, podemos compreender as práticas discursivas de letramento como os modos leitura e escrita, ordenadas pelo discurso, que influem sobre os eventos e os significados de textos.

O conceito de práticas discursivas de letramento abre o espaço necessário a investigação dos modos sociais que atravessam os eventos em que os textos cumprem um papel. Enfim, podemos partir da premissa de que textos gerados em um local são resultados de outros textos, inter-relacionados, em articulações de práticas sociais. Para o/a investigador/a do discurso, refletir sobre o discurso que ordena os letramentos é lançar luz nas instituições que os produzem, bem como nas ideologias que os sustentam.

No quadro a seguir, apresentamos de forma sucinta as premissas que subsidiam nossa argumentação sobre a articulação ADC e TSL como práticas sociais30:

QUADRO 2.1: Articulações entre ADC e TSL

Perceptivelmente, a adoção da TSL implicará a investigação in loco das práticas discursivas de letramento e na adoção do método etnográfico, a fim de proporcionar ao/à investigador/a a composição do quadro social necessário à análise. Muitas dúvidas são levantadas por linguistas e não-linguistas em relação à caracterização da etnografia na pesquisa com textos.

                                                                                                                         

30  Este  quadro  foi  apresentado  por  (SATO,  D.  T.  B;  BATISTA  JUNIOR,  J.  R.  L.  E  BERTOLDO,  S,  2007),  no  Encontros  

de  Pesquisa  em  Análise  de  Discurso  Crítica,  promovido  pelo  Núcleo  de  Linguagem  e  Sociedade/CEAM/UnB.  

ADC TSL

Reflete sobre a mudança social e a possibilidade de práticas emancipatórias.

Ocupa-se das práticas sociais envolvendo os usos do letramento com vistas às práticas emancipatórias;

Teoria e método de análise textual que propõe uma visão transdisciplinar que a relacione à vida social;

É um estudo da vida social, transdisciplinar que carece de um método linguístico de investigação;

Chouliakari e Fairclough adotam o conceito de discurso como linguagem em uso;

Letramentos são considerados usos específicos da linguagem escrita;

Compreende a articulação entre gêneros, discursos e estilos. As identidades são, assim, formadas nas práticas e nos discursos.

Entende que as identidades são moldadas nas práticas de letramento e nos discursos.

Um dos fatores que caracterizam o estudo etnográfico antropológico é a explanação sobre fenômenos sociais, a partir de uma observação longa de toda a sociedade. Segundo Street (1993), o trabalho etnográfico nos estudos dos letramentos deve buscar a cultura como um processo e não como algo fixo, limitado. Isso tem uma justificativa. Letramentos são múltiplos, mesmo dentro de um agrupamento familiar. A “cultura” a ser explanada tem a ver com os modos, os processos de significação a que os eventos são moldados. Nesse sentido, o/a analista encontrará formas recorrentes de utilização de textos, e trabalhará com a análise da diversidade de gêneros discursivos dispostos na prática.

Esses usos descortinarão o grau de permeabilidade de gêneros de prestígio, bem como a posição dos sujeitos, se de produtor ou de consumidor desses discursos. A forma como os discursos são distribuídos e circulados em textos também contará sobre a percepção das ideologias pelos atores sociais e sobre a operacionalização dos recursos semióticos para a organização dos significados (se textos midiáticos em forma de publicidades, se pedagógicos, na forma de cartilhas, se burocrático na forma de leis e textos regulamentares, ou se institucionais, na forma de textos que orientam seus atos etc.). Enfim, a forma de circulação versará também sobre a linha que separa o que é discurso e o que é a prática, em outras palavras, na forma como os textos operacionalizam a prática.

O foco na cultura como processo reduz o escopo da investigação. Não se ocupará o analista em procurar toda a sociedade, mas uma atividade particular. Nesse sentido, Heath e Street (2008) orientam que, numa triangulação metodológica, a dimensão linguística deve estar associada a aspectos sociais, psicológicos, históricos, e assim, por diante, de forma que o significado de contexto torna-se relevante. Muitos são os sentidos para o termo “contexto” e segundo o autor e a autora, a escolha deverá ser realizada com base no que se procura investigar. Contudo, o contexto deve estar relacionado ao texto e para isso, a autora descreve quatro níveis de análise: i. o nível imediato (aspectos internos do texto ou linguagem); ii. Intertextual e interdiscursivo (relação entre textos, gêneros e discursos); iii. Extralinguístico (variáveis relacionadas a modelos institucionais ou de um contexto de situação)31 e iv. sociopolítico ou histórico (contexto macro, em que práticas discursivas são envolvidas e relacionadas).

Essa relação entre o interno e o externo ao texto também é trabalhada por Oberhuber e Krzyzanowski (2008) no qual os autores esclarecem sobre a necessidade ou não de uma longa permanência, tendo em vista o foco discursivo da investigação. Segundo os autores, uma                                                                                                                          

31 O conceito de contexto de situação foi cunhado pelo antropólogo Bronislaw Malinowski (1935),

investigação linguística não necessita de longa permanência. O objeto é a prática discursiva e não a toda a sociedade. Um único fenômeno não requer longa permanência, uma vez que as práticas são relativamente estáveis, dentro de contextos específicos. Tão logo se perceba os significados dos discursos e a dinamicidade da circulação de textos, o investigador, com base no método discursivo e etnográfico terá material suficiente para sua explanação. Desta forma, os autores mencionam uma permanência média de seis meses, ou caso o objeto exija, um possível prolongamento pode ser utilizado.

Um dos aspectos inerentes a ambas as teorias, ADC e TSL, o foco nas identidades como forma explanatória das operacionalidades do poder e da ideologia, são objetivos compartilhados. Na articulação proposta, temos em Adult Literacy, Numeracy and Language, dos autores Lyn Tett, Mary Hamilton e Yvone Hillier (2006) a relação entre letramento e inclusão como fatores políticos. O movimento de inclusão/exclusão dá-se, em parte, pelo posicionamento dos sujeitos, em que concorrem fatores como atributos econômicos, acesso a múltiplos letramentos e letramentos de prestígio, e os discursos de valoração dos sujeitos.

No mesmo sentido, o controle dos usos da leitura e da escrita, associados às representações de gênero, perpetuam práticas discriminatórias contra as mulheres (LAZAR, 2005) ao estabelecerem diferenças quanto ao acesso e uso de textos e ao atribuir um significado distinto entre os usos da leitura para homens e mulheres. Desta forma, o posicionamento de sujeitos entre incluídos e excluídos encontra raízes nas representações do conhecimento construído por meio da concepção de Letramento32, tanto em âmbito local como no cenário internacional33.

As instituições contribuem para o estabelecimento de determinados usos do letramento e para a veiculação de discursos que sustentam tais usos. A ADC (FAIRCLOUGH, 2003) relaciona o uso da linguagem a significados identificacionais, sendo, neste caso, o uso da linguagem escrita (letramento) uma forma de interação pela qual pessoas são envolvidas.

Segundo Gee (1996), os discursos são compreendidos como formas de comportamento, interação, valorização, compreensão, crenças e, frequentemente, de fala, leitura e escrita aceitas por determinados grupos para definir papéis de atores ou rotular tipos de pessoas. Por sua vez, no alargamento da compreensão sobre eventos de letramento temos que eventos são espaços onde pessoas, concertadamente, criam significados, na interação com os outros a                                                                                                                          

32 Letramento com maiúscula e singular é utilizado por Street para designar o uso da leitura acadêmica na

concepção do letramento autônomo.

33 Para maiores informações sobre o domínio do modelo de avaliação educacional de base anglófona veja o

artigo Education for all: the globalization of learning targets, produzido pelo pesquisador Harvey Goldstein, disponível em <http://www.cmm.bristol.ac.uk/team/hg_personal/full%20publications%20- %20download/2004/Education-for-all.pdf.>

partir de suas histórias individuais e coletivas, em situações pertinentes (BLOOME et al. 2005, p. 6).

Este alargamento permite a articulação entre letramentos, identidades e discursos no sentido de que ao produzir significados nos eventos de letramento as identidades se constroem, recriam seus espaços e possibilitam a quebra, manutenção ou transformação das práticas por meio dos discursos, contribuindo para novas formações identitárias.

Por fim, a investigação etnográfico-discursiva com vistas aos letramentos precisa desenhar certos critérios de organização dos dados. Todos os usos de textos escritos ou eventos em que textos escritos tiveram um papel podem ser objeto de estudos de letramentos. Contudo, investigações institucionais são permeadas por diferentes textos, e envolvem diferentes instâncias de atividades.

No trabalho de análise, não é aconselhável o recolhimento de dados de ambientes muito distintos de uma mesmo domínio, ainda que os contextos de produção e o de recepção sejam investigados. Por exemplo, não é muito producente analisar textos de situações formais e informais, ainda que conversas informais possam, nesse sentido, ser consideradas um evento de letramento. É indicado que a pesquisa trace os contornos dos objetos a serem investigados.

Segundo Oberhuber e Krzyzanowski (2008) entrevistas semi-estruturadas são indicadas para análises com foco em identidades, e podem ser associadas a auto-biografias ou conversas informais, ou ainda, investigações de identidades com base em papéis institucionais podem associar entrevistas com documentos dessas instituições; se ideologia e poder são o foco, é possível buscar dados institucionais e publicidades, associando esses dados ao contexto de produção e recepção de uma prática, enfim, ao ir a campo, o objeto deve estar bem delimitado para que a associação do texto ao seu contexto emirja nas análises. Como todo trabalho etnográfico, os estudos dos discursivos podem produzir dados a partir dos diários de campo, que fornecem uma memória da investigação e subsidiam futuras inferências.

Algumas considerações

Propomos com este estudo um repensar sobre a investigação discursiva. Pretendemos uma investigação na qual textos escritos sejam vistos como modos específicos de utilização da linguagem, portanto, formas de discurso, utilizadas para agir no mundo. Indissociável do ambiente social, a prática discursiva de letramento pertence a configurações sociais que regulam o acesso ou a exclusão de atores sociais, perpetuando situações hegemônicas ou

ideologias de poder. Por meio da articulação entre a Teoria Social do Discurso e a Teoria Social do Letramento, esperamos produzir novos pensares e possibilitar a investigação crítica, cujos produtos possibilitam a reflexividade de atores, em busca de identidades fortalecidas, capazes de rearticular práticas sociais excludentes.