• Nenhum resultado encontrado

Ideologias e o discurso de gênero na prática da inclusão

CAPÍTULO V – REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NO AEE

5.4 Ideologias e o discurso de gênero na prática da inclusão

O discurso é uma prática social envolvida em suas próprias regras. Quem pode dizer e quem deve consumir o dito por meio dos textos compõem a rede discursiva determinada pelo poder que orienta o discurso. O discurso se caracteriza pela escolha e pelo modo de apresentação do dito, do enunciado. Na prática discursiva de letramento, os argumentos e as concepções sobre educação são distribuídos por meio da política nacional e meios de

comunicação. A educação é uma prática política. As concepções sobre educação e currículo variam de acordo com o tipo de mão de obra que se pretende formar e com a qualidade que se pretende oferecer nos serviços públicos de educação. Carvalho (1998) comenta sobre a política educacional:

[...] É do âmbito propriamente político, por exemplo, a decisão fundamental acerca de qual a abrangência desejável das nossas instituições escolares. A escolha de escolarizar a totalidade ou certas parcelas da população, bem como a duração da escolaridade mínima obrigatória, não repousam preponderantemente sobre argumentos pedagógicos, mas sobre decisões valorativas e políticas que, por sua vez, implicam problemas pedagógicos. Neste sentido, elas não são decisões internas da comunidade escolar, mas concernem a toda a sociedade e expressam suas visões e seus desejos no tocante aos direitos do cidadão e, por isso mesmo, são decisões eminentemente políticas. (CARVALHO, 1998).

Dois foram os discursos basilares que permearam a política educacional na perspectiva inclusiva – o discurso do direito e o discurso da diferença. Em 2001 o Plano Nacional de Educação lançou a política Educação para Todos, como resposta à política internacional de Educação. Segundo Sardagna (2006) a lógica capitalista depende da exploração do trabalho que se opõe à proposta inclusiva. Desse modo, a inclusão no projeto de Educação para Todos corresponde a uma proposta capitalista de inclusão. Ainda, segundo a autora, os principais fundamentos são:

[...] apelo às parcerias; deslocamento das responsabilidades da União para outros setores; definições de padrões mínimos nacionais; metas e prazos em sintonia com metas de organismos internacionais; acesso e expansionismo da democracia; sujeitos com mobilidade para um mundo em mudanças.

Essas premissas foram trabalhadas pelas políticas públicas e caminhavam para a asserção de que a permanência/acesso do/a aluno/a na escola corresponderia à igualdade de oportunidades, tomadas como democracia. Assim, por meio do programa “Educação inclusiva: direito à diversidade”, lançado em 2003, uma nova proposta de atuação educacional surgiu, baseada fortemente na prática docente, como no trecho de Brasil (2005) “A concepção de educação inclusiva pressupõe uma nova maneira de entendermos as respostas educativas com vistas à efetivação do exercício da docência no acolhimento da diversidade”.

Ora, no texto da publicação “Programa de educação inclusiva: direito à diversidade”, temos que a concepção de educação inclusiva objetiva o exercício da docência no acolhimento da diversidade. É no fazer docente que a política se fundamenta e justifica as

mudanças ocorridas na migração do sistema especial para o inclusivo. O investimento na política inclusiva deverá ter como baliza, como referência de sucesso, a matrícula na sala comum de crianças com deficiência, sem que haja metas e/ou parâmetros outros como a aprendizagem ou acompanhamento desse/a aluno/a.

O programa Educação inclusiva: direito à diversidade está formulado na seguinte estrutura: como tema - o título Educação inclusiva e como rema – Direito à diversidade. Ao posicionar a modalidade inclusiva como conhecimento prévio, como informação dada, há uma estratégia de reforço na naturalização82 do conceito. O discurso do direito, contido na posição de rema - Direito à diversidade, atua segundo do conceito de ideologia na Legitimação por universalização83, por meio do qual totaliza as diferentes pessoas e

necessidade educacionais sob um mesmo grupo (pessoas com deficiência) e oferece a esse grupo uma única resposta – a educação inclusiva.

Sob esse aspecto a palavra “direito” leva à formulação de igualdade de condições, contudo, a atenção às necessidades especiais não é realizada, segundo a política, em sala de aula. Logo, não há uma igualdade de oportunidades, e sim, a massificação da oferta do ensino, para diferentes públicos, como uma “camisa” tamanho único.

Por evocar o direito, a legitimação se torna ideológica, pois aciona os conceitos de justiça, de igualdade, de honestidade e de valor humano em associação com o correto e o moralmente justo, escondendo efeitos da proposta inclusiva quando comparados à diminuição dos serviços anteriormente prestados pela Educação Especial.

O governo federal, por meio do MEC, trabalhou, assim, com dois conceitos: o de educação inclusiva como direito e o de educação como atenção às pessoas diferentes. A palavra diversidade como sinônimo de diferença amplia o sentido da inclusão. Se antes a diferença pressupunha que havia um tipo padrão e um que divergia, o termo diversidade opera ideologicamente por meio da dissimulação/deslocamento84 ao trazer para a diferença as nuanças da diversidade – da variedade não mais desviante, mas sim abundante. Diferentes expressões humanas que convivem entre si de forma harmônica. Assim, sob o prisma do discurso da diferença, deslocada para o termo diversidade, a política quis estruturar o viés de que o atendimento educacional nas escolas deve focar na pessoa que é a expressão da diversidade e não nos métodos e nos recursos. Ora, ninguém quer excluir nenhuma pessoa.                                                                                                                          

82 Modos de operacionalização da ideologia segundoThompson (1995).

83 A Legitimação representa uma situação de dominação em algo digno, correto. Adotamos a concepção de

ideologia de Thompson (1995), segundo o qual a ideologia são as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação.

84 Na Dissimulação as relações de poder ficam obscurecidas por formas que desviam a atenção. O deslocamento

Assim, sob a ideologia da diferença/diversidade, a prática opera a partir do discurso humanitário, sob a alegação da equidade e da justiça, silenciando os problemas gerenciais, burocráticos e estruturais de se propor uma educação inclusiva de base econômica.

De acordo com a política da diferença, professores/as são convidados/as a realizar uma inclusão como autores desse processo – porque cabe a eles/elas oferecer a escolarização, e na proposta inclusiva, independentemente da modalidade. Enquanto isso, a sociedade mergulhada nas propostas de igualdade de oportunidades, na justiça e na equidade de atendimento não consegue vislumbrar que questões como capacidade para atendimento nas diferentes modalidades, necessidade de conheciemntos específicos, a necessidade de formulação de políticas de formação docente, a construção de estruturas de auto- gerenciamento por meio da distinção de professores comuns e especialistas, falta de estrutura física e material, necessidade de formação de equipes de apoio por meio de concursos que estruturem a profissão docente, porque em meio ao politicamente correto veiculado pelo discurso neoliberal, tais questões são consideradas de menor interesse. Contudo, ao universalizar o grupo de estudantes e as modalidades, o Governo camufla a política de redução de custos.

O direito ao atendimento educacional em escolas comuns é divulgado sem que se debata a falta de planejamento e estruturação, porque o discurso prega o serviço como um direito e não como uma violência. Mais que isso, prega a mudança a partir da aceitação desse atendimento, como algo naturalmente decorrente da presença das pessoas com deficiência na escola. Se a inclusão for um direito deve ser algo bom, justo, correto (GARCIA, 2004). Assim, a ideologia da diferença age por meio da Dissimulação – eufemização. A eufemização está no uso de termos como adequação curricular, valorização das potencialidades e terminalidade para designar o processo pelo qual a escola comum diminui o currículo, fragmenta a avaliação, aprova assistematicamente e expulsa o/a aluno/a com deficiência da escola comum que não obtiveram bons níveis de escolarização num prazo excelente de nove anos, sob a alegação de que as diferenças precisam ser valorizadas e de que a diversidade é um direito.

Para tanto, a Educação Especial produz seu próprio discurso. Uma atividade humana pode constituir um campo de investigação que produz seu próprio conjunto de saberes, seus próprios termos. Essas palavras carregadas de sentido são trazidas à pratica, construindo um novo conjunto de crenças, promovendo mudanças na articulação que garante o poder hegemônico. Nesse sentido, eficiência, produtividade, oportunidade, independência e sucesso são valores ligados à globalização que foram organizados nos discursos da Educação

Especial, produzindo seus próprios termos: terminalidade, adequação curricular, diferença, saberes múltiplos, heterogeneidade, especialistas, professores comuns, atenção às necessidades especiais, entre outros. Essa junção resultou na utilização de termos comuns às duas áreas, dentre os quais destacamos flexibilidade e autonomia.

A flexibilidade e a autonomia trazidas como discursos e ideologias no campo da educação pressupõe que por meio da flexibilidade de métodos, conteúdos e avaliação se alcançará uma autonomia econômica e social por parte da população com deficiência porque escolarizada estará apta ao trabalho e à independência. Sem dúvidas, para uma parcela considerável de pessoas cujas limitações são leves, tal objetivo deve ser perseguido. Contudo, o deslocamento da deficiência para diferença ou diversidade dissimula a realidade porque distorce a natureza dos serviços e dos atendimentos. Assim, os ideais de autonomia e o processo de flexibilidade dizem mais respeito ao programa neoliberal de redução de serviços públicos e mercantilização do conhecimento do que a atenção aos deficientes em si.

A ideologia que opera na diminuição da oferta dos serviços, na alocação de pessoas com deficiência sob a orientação de professores/as não capacitados/as e que adota como parâmetro de eficiência a prática docente na qual o atendimento é realizado ainda que precariamente, tem a ver com a ideologia e a identidade de gênero. Olioni (2004) ao comentar Butler (2003) tece as seguintes considerações sobre discurso e identidade:

Butler (2003) afirma requerer a ação do gênero uma performance repetida que se constitui como reencenação de significados construídos socialmente, fato que os legitima. O efeito do gênero, produzido pela estilização do corpo, constitui-se como identidade em permanente construção, e, portanto, não estável, formando-se por meio da repetição estilizada de atos ao longo do tempo – gestos, movimentos, estilos corporais; isso propicia a ilusão de um “eu” permanente marcado pelo gênero.

A repetição quando ecoa de diferentes esferas e, principalmente, nas leis e pela mídia tem o poder de construir o imaginário, e na educação não seria diferente (RICARDO FILHO, 2005). A proposta de Educação Inclusiva que diferencia professores/as comuns de professores/as especialistas cria uma estrutura de poder hierárquico na escola. A equipe especializada detém o poder de acompanhar, orientar e propor materiais e currículos aos/as professores/as comuns.

Sem possuírem formação adequada para a prática pedagógica em Educação Especial, a maioria das professoras lança mão de práticas domésticas, atribuindo o discurso do cuidado, do afeto e da maternidade para justificar sua presença em sala de aula. Essa repetição do fazer

feminino cria e sedimenta uma identidade docente em consonância com a identidade de gênero tradicional, em repetições manifestadas na prática que foram veladamente propostas na política inclusiva. Nesse sentido, o fazer docente em Educação Inclusiva tem se mostrado em sua concepção, antes de tudo, como um fazer feminino.

Transformar a ação docente em cuidado não especializado é o principal efeito da falta de formação para a Educação Especial. Esse cuidado desvalorizado que é praticado em grande parte nos ambientes domésticos está sendo institucionalizado nas escolas, não só por meio da educação inclusiva, mas também pela prática da educação em tempo integral sem organização física e material85 para tanto.

Diante desse quadro, a prática docente no projeto inclusivo tem, igualmente, outro efeito ideológico que é a construção de uma necessidade de atualização profissional, de complementação de saberes que alimenta a venda de serviços especializados pelas empresas, consultorias e assessorias do tipo Think Tanks, inclusive, aquelas que vendem os sistemas de avaliação internacional. Com o estabelecimento de diferentes níveis de professores/as – comuns e especialistas, contribui-se para uma percepção profissional vinculada ao déficit. Professores/as sem formação acabam buscando conhecimentos por conta própria, alimentando a venda de serviços de formação continuada. Contudo, a percepção de déficit e de incapacidade ligadas à identidade de gênero é também alimentada pela prática e pelo discurso, estendendo-as às formações identitárias de desprestígio e de desempoderamento de toda a classe de professores/as que atuam em escolas comuns.

Algumas considerações

As representações docentes de poder ligadas ao domínio do conhecimento convivem com a falta de estrutura, segurança e com a presença de práticas de desempoderamento docente promovidas pela política de universalização do ensino público. Tais políticas fizeram com que padrões avaliativos e de comportamento atrelados à valorização do formal e do erudito fossem paulatinamente substituídos por ideais de justiça e de equidade na oferta de serviços, com a consequente transformação da prática educacional que agora deve contemplar                                                                                                                          

85 Em uma de nossas entrevistas vimos em Brasília o educador físico com um grupo de alunos/as que aderiram

ao programa de tempo integral. As atividades realizadas num parque próximo ao colégio tinham por finalidade a recreação. Contudo, a permanência dos/as alunos/as no ambiente da escola ou do parque não é obrigatória. A criança ou o jovem pode dele se ausentar sem que o/a professor/a tenha domínio da situação. Para os pais/mães a criança está sendo tutelada pela escola, mas isso não é uma realidade. Na maioria das unidades não há espaço, equipamentos, recursos nem propostas pedagógicas que estruturem a oferta dos serviços educacionais, se aproximando da prática de creches ou cuidadores/as para crianças e jovens maiores de 6 anos.

grupos que antes não tinham acesso à escola, como crianças de famílias desestruturadas, jovens dependentes químicos e em situação de privação de liberdade.

Igualmente, o processo de flexibilização adotado para toda a política educacional tem repercutido em uma crescente dificuldade de reajustamento da identidade docente pela fragmentação do ensino e da qualidade das relações interpessoais na escola. Tal situação ou realidade tem feito com que famílias que em um momento anterior desejassem a profissão para suas filhas agora a rejeitem em razão do baixo prestígio da profissão.

Em um processo constante de desvalorização docente, a profissão tem atraído pessoas que necessitam de trabalho e/ou tem dificuldade em obter uma formação de nível superior de maior prestígio, funcionando como uma profissão de transição para concursos. Nesse sentido, o espaço tornou-se majoritariamente feminino em um processo de formação de um gueto para mulheres.

Dentro desse quadro social, encontramos a política de inclusão que preconiza a não necessidade de formação específica docente, em uma construção social da educação baseada no cuidado, no afeto e nos sentimentos de justiça e equidade, que não se transubstanciam na prática em razão da precariedade do ensino e das condições de trabalho.

Professoras são tomadas como maternais, amorosas e moralmente mais preparadas para a docência na inclusão e são levadas à aceitação por meio legal de tal situação, sem que haja possibilidades de contra argumentação. Diante do quadro, como mulheres, dedicam-se ao cumprimento da tarefa e buscam formação por conta própria para o exercício do magistério sem muita esperança de melhorias. Nesse aspecto, adaptam-se à proposta em processos de desconstrução da identidade docente, que repercutirá, mais tarde, fragilização ainda maior da própria educação.

CAPÍTULO VI – IDENTIDADES DOCENTES E DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO