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CAPÍTULO II – LINGUAGEM E GÊNERO

2.4 Discurso, identidade e letramentos

A Análise de Discurso Crítica (ADC) ou “Critical Discourse Analisys” (CDA) é uma forma analítica de estudo que tem como objetivo demonstrar os modos pelos quais o abuso de poder, a dominação e as desigualdades são sustentados ou combatidos por meio de textos (escritos ou orais) em contextos específicos (sociais ou políticos) (VAN DIJK, 1999). Ainda que não percebamos, materialmente, em que momento o poder é iniciado ou de que maneira ele é promulgado, sabemos que ele se estabelece por meio da força de instituições como o Estado e a Igreja, e de formas de manipulação ideológica (MAGALHÃES, 2008).

A contextualização do discurso é um desafio aos estudiosos e analistas para que se consiga alcançar a prática discursiva. Os textos não surgem de forma aleatória. Sua produção, o discurso que o veicula, e a recepção atendem a demandas geradas por grupos, pessoas ou instituições. O poder em si não é algo ruim. O poder é parte integrante e organizadora da sociedade. Contudo, mecanismos de poder utilizados para mascarar situações hegemônicas em que a exclusão é o seu objetivo, são situações a serem desveladas e que uma vez esclarecidas, podem gerar a mudança em formato de novas configurações das práticas sociais. Ao analisar um texto, temos em mente que são objetos situados em práticas sociais, que são modos relativamente estáveis de atuação social. Sem a moldura social que permite seu surgimento e sua circulação, os estudiosos acabam permanecendo na imanência do texto, restringindo seus significados, que são socialmente constituídos.

O significado depende do discurso e dos demais elementos da prática. O discurso predispõe os atores sociais a determinadas ações, direcionando-os a assumir comportamentos consoantes com a prática social a que pertençam. Os sujeitos que incorporam as ideias e significados de uma prática, tomam esse espaço como sua realidade (SATO, 2008). Nesse sentido, o conjunto de conhecimentos são formas de interagir com o espaço e ao mesmo tempo são representações que fazem com que os atores sintam-se parte desse ambiente, e é o que torna significativa cada vivência.

Por meio do discurso, instituições transformam ou mantém modos de ver, veicula ideias, inclusive as ideológicas, que são repetidas e incorporadas às identidades. O discurso assume nas práticas sociais seus três significados (acional, representacional e ideacional), sendo, portanto, ação, representação e identificação. Os modos de ver e compreender determinados fenômenos sociais são, portanto, construções sociais complexas, que envolvem também outros elementos da prática, inclusive os não discursivos.

As formas pelas quais os grupos operam o poder definem a inclusão de uns ou a exclusão de outros. A inclusão ou a exclusão ocorre a partir da seleção de conhecimentos e crenças tomados como legítimos e, por consequência, de prestígio. Tais conhecimentos ou

crenças são pilares que sustentam o modus operandi de instituições ou pessoas poderosas, na medida em que tais crenças tornam-se parte da sociedade e “domesticam” as pessoas nos dois lados do poder. Tanto dominadores como dominados, tendo incorporado as ideologias do poder, não percebem a dominação em si. Agem em consonância com o discurso.

Parte da ação social se dá pela linguagem. Para compreender a prática social, a análise de discurso deve incluir em seu objeto de pesquisa tanto a linguagem como a ação ou o social que a estabelecem (BLOMMAERT, 2005). Se o estudo da estrutura do código linguístico não alcançava o social, os teóricos da linguagem foram buscar em outros campos as ferramentas de estudo, como a Crítica Literária, a Sociologia, a Filosofia, a Antropologia, a Semiótica, entre outros. Mas essa proposta de situar a linguagem em seu contexto de uso não é nova. Segundo Gouveia (2002), a percepção de que o foco dos estudos linguísticos não deveria situar-se apenas no código, mas no uso desse código, foi inaugurada com a Linguística Crítica, a partir dos livros Language and Control (FOWLER et al., 1979) e Language as

Ideology (KRESS e HODGE, 1979; Hodge e Kress, 1993).

Os desmembramentos a partir da Linguística Crítica deram ao estudo do discurso como prática social um perfil complexo. Para analistas críticos do discurso, uma questão é pacífica: a visão de que o discurso é uma prática social e que os estudos lingüísticos baseados no discurso poderiam constituir uma ferramenta eficiente para estudos atuais. Fairclough (2003) define o discurso como campo fértil para a análise dos mecanismos da globalização e dos fenômenos sociais da modernidade tardia.

O conceito de discurso na abordagem da ADC inclui a visão de duas possibilidades de significado: a primeira uma idéia, de algo menos abstrato, como o discurso da igreja, ou o discurso feminista. Nesse sentido, discurso configura como uma semiose, carregada de sentidos sociais, que traz modos de ver e interpretar determinados fatos, enfim, o elemento lingüístico que operacionaliza as interações em ambientes específicos. Este elemento é múltiplo, e pode ser, nessa acepção, grafado no plural. Gouveia (2002) explicita que a noção de discurso para a ADC foi fortemente influenciada pela noção foucaultiana de discurso, para quem discurso são os modos, nem sempre lingüísticos, de organizar o significado com base nos sistemas de poder e conhecimento, que, entre outros, posiciona os sujeitos. Os significados, para esse teórico, seriam resultantes das relações socioeconômicas e dos sistemas de conhecimento e poder, impostos por instituições, que por sua vez, concorrem para que os eventos ocorram em determinadas configurações (FOUCAULT, 1980). A preocupação do autor com as práticas discursivas levou-o a refletir sobre as funções constitutivas do discurso (o discurso constrói as formas sociais do eu, os objetos de conhecimento, as relações

sociais e as estruturas conceituais, portanto, constrói/constitui a sociedade) e sobre a interdependência das práticas discursivas (um texto sempre recorre a outro, transformando-o).

Discurso no sentido mais abstrato, singular, corresponde a totalidade das práticas discursivas associadas a uma instituição ou a um domínio (FAIRCLOUGH, 2000, p.170). As práticas discursivas do Ensino Superior, por exemplo. Esse domínio apresenta como práticas discursivas a produção de livros, publicações em periódicos, leitura burocrática, ensino a distância, produção de textos pedagógicos, apresentações em seminários ou congressos, atas de reuniões, enfim, são muitas as práticas discursivas ligadas a diferentes atores dentro da prática social do Ensino Superior. Discurso, nesse sentido mais amplo, é um elemento da prática social, interconectado a outros elementos como atividades, instrumentos, objetos, pessoas e suas relações sociais, tempo, espaço, formas de consciência, valores e o discurso.

Discurso, assim, conecta-se a um conjunto de articulações, pelas quais a linguagem cruza fronteiras, estabelecendo configurações com diferentes discursos, que por sua vez, influenciam ou constrangem a atividade de atores sociais nos eventos. Discurso como prática social constitui as “ordens do discurso” (FOUCAULT, trad. 2001, FAIRCLOUGH, 2003). Ordens do Discurso são formações sociais de linguagem, relativamente duráveis, que em si mesmas são parte de estruturas de um conjunto de práticas sociais. Segundo Blommaert (2005), discurso como prática social é algo que as pessoas produzem, fazem circular, distribuem e consomem em sociedade. Por fim, as ordens do discurso são a totalidade de práticas discursivas dentro de uma instituição, ou sociedade e o relacionamento entre elas é, para Fairclough (trad. 2001), decisivo, porque define o cerne de qualquer formação discursiva.

A linguagem é uma estrutura, assim como a raça, o gênero social (condição pela qual a pessoa denomina-se como homem ou mulher), a nacionalidade, ente outros. O conjunto de estruturas possibilita a instituição das articulações sociais, ou das práticas sociais. A prática social como elemento abstrato liga diferentes elementos de onde emergem os eventos sociais. A prática social é relativamente estável, e funciona como intermediária entre as estruturas e os eventos. O evento social, por sua vez, é a materialização das possibilidades geradas socialmente, pelo qual inferimos sobre as práticas sociais. Porém, não há condicionamento total. Sempre há possibilidade de um discurso emancipatório, de uma atuação contra- hegemônica.

Trazendo isso para a dimensão discursiva, temos na linguagem a estrutura. Nas ordens do discurso as articulações que formam as práticas sociais discursivas, ou o discurso como

prática social. Nos eventos encontramos os textos, objetos discursivos, orais ou escritos, emergidos de um contexto mais amplo, regulado pelas ordens do discurso e pela linguagem.

Entender o discurso como uma prática social implica reconhecer que além da análise de vocabulário, gramática, coesão e estrutura textual, por exemplo, o/a analista deve dedicar sua atenção a aspectos como atos de fala, coerência e intertextualidade – que são aspectos que ligam o texto ao contexto (FAIRCLOUGH, 2003) e as estruturas de distribuição, consumo e produção discursiva.

Na obra Discourse in Late Modernity, Chouliaraki e Fairclough prevêem o estudo dos obstáculos de um problema social. Carvalho (2006, p.8) explicita que os autores visualizam, além da análise da conjuntura (redes de práticas) e das semioses (formas de produção de significados), o estudo acurado dos fenômenos discursivos. A análise do discurso (discurso como prática social) corresponde a três níveis de investigação: (i) a análise do texto como ação - etapa de descrição que se localiza no âmbito dos eventos; (ii) análise do texto como representação e dos mecanismos de produção, distribuição e consumo localizado no âmbito das práticas - corresponde à etapa de explicação; e (iii) análise das estruturas – ordens do discurso, relacionando-as aos discursos e aos aspectos identitários que correspondem à etapa explanatória. Contudo, falta à ADC mecanismos de investigação in loco, os quais Fairclough (2003) reconhece e como medida recomenda a triangulação com métodos etnográficos, sem ater-se a maiores detalhamentos de como tais estudos se processariam.

Essa noção elementar e sucinta da ADC foi necessária para uma reflexão sobre aspectos supratextuais que concorrem na formação das ordens do discurso. Com isso, advogamos uma articulação possível da ADC a Teoria Social do Letramento, cujo foco está nos usos da leitura e da escrita e sua produção, distribuição e consumo, relações que passaremos a descrever nas próximas seções.