• Nenhum resultado encontrado

Antes de seguirmos com uma abordagem sobre o ambiente de cuidado à crise psicótica, examinaremos ainda um importante conceito para compreender dificuldades clínicas no manejo da psicose, que é a contratransferência. Winnicott (1947/1982) nos relembra que, em psicanálise, a contratransferência tem sido o nome utilizado para dois tipos diferentes de fenômenos. Primeira e originalmente, a contratransferência seria uma anormalidade na técnica psicanalítica, decorrente da ação do analista pautada em seus próprios conteúdos reprimidos, os quais originam um tipo particular de relações e identificações no amor de transferência que não tem necessariamente a ver com os conflitos do paciente. Também o analista ama em transferência e pode, inconscientemente, priorizar seus próprios conflitos no tratamento que faz desse amor. Esse tipo de fenômeno é muito difícil de identificar sem o auxílio da análise e a supervisão do analista; quando vemos esse tipo de contratransferência, ela é indício de que o analista precisa de mais análise, isto é, precisa de um espaço seu para amar em transferência e assim não invadir o enquadre de seus pacientes com seus (do analista)

Além disso, a contratransferência compreende também capacidades e tendências que pertencem ao psiquismo do analista (Winnicott, 1947/1982). O psiquismo do analista, a liberdade de suas emoções, seus pensamentos, seus interesses, seu senso de humor, enfim, suas reservas psíquicas, fazem parte do setting analítico e formam as possibilidades e limites desse setting. Isto é, o limite do analista é o limite do ele está disponível ou é capaz de fazer no atual momento de seu desenvolvimento pessoal. Esse tipo de contratransferência pode indicar quando o analista precisa, por exemplo, interromper a análise, ao perceber-se incapaz de atender às justas exigências de um caso específico, como ocorre no caso de um paciente não bem selecionado para um analista em treinamento.

Encontramos aqui um elemento que pertence à profissão do analista e que pode representar um importante impasse para outros profissionais que cuidam de crises psíquicas. Diferentemente do analista, outros tipos de profissionais podem não se sentir no direito de interromper o tratamento, pois aquele é seu trabalho e ele deve cuidar por uma obrigação profissional. Além disso, a interrupção de um tratamento pode significar um paciente clínico desassistido, pois não há exatamente um outro psiquiatra ou enfermeiro para quem o caso pode ser encaminhado; ou pode dar-se que um assistente social seja designado para o cuidado de pacientes psiquiátricos sem ainda conhecer as exigências específicas dessa clientela e sem compreender verdadeiramente os limites de sua capacidade e disponibilidade pessoal (como conhecer os limites, se estes ainda não foram traçados?). O ambulatório de saúde mental não pode abrir mão da indispensável contribuição de um profissional de serviço social, mas aquele assistente social, como pessoa, pode adoecer em função da necessidade de uma disponibilidade emocional grande demais em um determinado caso e para a qual ele se revela, no seu trabalho, incapaz ou ainda despreparado.

Em seu trabalho com a psicose, Winnicott (1947/1982) descobre um terceiro tipo discernível de fenômeno contratransferencial, denominado pelo autor de contratransferência objetiva. Nesse fenômeno, ocorre a emergência reativa de amor e/ou ódio na realidade psíquica do analista a partir de sua viva relação com a personalidade de seu paciente, baseada em sua observação objetiva. No trabalho clínico com mulheres notáveis e sedutoras, como podem ser algumas histéricas, por exemplo, pode existir

uma “contratransferência objetiva” amorosa, possivelmente presente nos processos pelos quais Breuer apaixonou-se pela sedutora Anna O, Jung por Sabina Spielrein.

No trabalho clínico com pessoas psicóticas, ainda existe a possibilidade de uma “contratransferência objetiva” odiosa. Em outras palavras, a observação objetiva feita pelo analista da personalidade do seu paciente psicótico, tal qual o analista pode experienciar no setting, resulta em um sentimento justificado de ódio ou repulsa pelo paciente. Segundo Winnicott (1947/1982):

O manejo (management) de um psicótico é inevitavelmente irritante

(irksome), e aqui não me refiro ao tratamento psicanalítico. De tempos em

tempos tenho feito críticas contundentes às atuais tendências da psiquiatria com seus choques elétricos fáceis demais e suas leucotomias drásticas demais (Winnicott, 1947, 1949). Justamente em razão dessas críticas por mim expressas, gostaria de ser o primeiro a reconhecer a extrema dificuldade inerente ao trabalho do psiquiatra, e especialmente da enfermagem psiquiátrica. Os pacientes insanos representam sempre uma pesada carga emocional para os que deles cuidam. (...) A fim de ajudar aos que praticam a psiquiatria geral, o psicanalista deve estudar os estágios primitivos do desenvolvimento emocional do indivíduo enfermo, mas deve

estudar também a natureza da carga emocional que recai sobre o psiquiatra ao fazer o seu trabalho. O que nós psicanalistas chamamos de

contratransferência é algo que precisa ser compreendido também pelos psiquiatras. Por mais que estes amem os seus pacientes, não podem evitar odiá-los e temê-los, e quanto melhor eles o souberem mais difícil será para o medo e o ódio tornarem-se os motivos determinantes do modo como eles tratam esses pacientes (pp. 277-278, grifos nossos).

Nesse parágrafo, autor defende que o manejo de uma pessoa psicótica forçosamente perturba as pessoas que cuidam dela, especialmente o psiquiatra e o enfermeiro. São sobretudo as qualidades da personalidade do paciente que motivam reações emocionais poderosas em pessoas que, por seu lugar social, esforçam-se em trabalhar profissionalmente. Neste ponto de vista, até mesmo o profissional mais bem- intencionado e conscientemente responsável com sua clínica está suscetível a, sub- repticiamente, reagir diante de seu paciente psicótico com um comportamento cruel, injustificável senão por uma razão emocional não consciente.

Não podemos, todavia, fazer as vezes de um analista do profissional de saúde mental e buscar interpretar seu comportamento, afinal, o profissional não é nosso analisando. Ainda assim, nos diz Winnicott, o analista pode contribuir ao estudar o particular fardo inerente ao cuidado que esses profissionais fazem no manejo de pessoas psicóticas. Para isso, o conceito de contratransferência pode servir de muito auxílio.

Retomemos, brevemente, os três sentidos da contratransferência apontados por Winnicott (1947/1982), tendo em mente a questão da psicose:

1) Na contratransferência “nociva”, conflitos pessoais inconscientes do profissional podem invadir o setting e tornar-se mais centrais no tratamento do que os conflitos do paciente. No manejo da psicose, esses conflitos pessoais são elementos psicóticos do terapeuta que exigem cuidado em um ambiente específico, como a supervisão clínica e a terapia pessoal do terapeuta.

2) Na contratransferência “pessoal”, que refere às características e tendências psíquicas do terapeuta, ele será enviado a reconhecer suas capacidades e limites pessoais, as qualidades de seu atual momento pessoal e profissional, enfim, seu grau de liberdade, conforme são exigidos pelas necessidades do paciente. No trabalho clínico com a psicose, essas características pessoais necessárias incluem a tolerância à destrutividade, à estranheza e ao caos e a capacidade de sobrevivência.

3) No fenômeno da “contratransferência objetiva”, o terapeuta confronta-se com afetos ou ideias despertados por uma observação justa, objetiva, de como é a uma relação íntima com a pessoa que é seu paciente. No manejo da psicose, esses afetos podem ser terrificantes e levar à repulsa, ao ódio e a ideias de rejeição.

Segundo Winnicott (1947/1982), uma pessoa em crise psicótica possui, por vezes, um funcionamento psíquico primitivo, dada sua posição regredida à dependência. Se encontramos um bebê fazendo exigências primitivas, agindo com a agressividade e o egocentrismo próprios do bebê, encontraremos por perto certamente uma mãe ou sua substituta, que se adapta às exigências conforme sua devoção comum. Entretanto, se encontramos uma pessoa adulta fazendo essas mesmas exigências, não hesitamos em chamá-la insana e repudiá-la por sua imaturidade. Essa qualidade da psicose fala da agressividade primitiva e de uma incapacidade (temporária ou prolongada) em reconhecer a alteridade. A realidade de uma pessoa em crise é a realidade psíquica, não a realidade compartilhada, ela não pode usar, no sentido winnicottiano, as intervenções feitas por pessoas que buscam ajudá-la, como as interpretações do analista ou outras técnicas psicológicas (Versiani & Celes, 2015).

Portanto, ao conhecer a natureza de sua própria repulsa, seu próprio ódio reativo ao egoísmo, à teimosia e à passividade do paciente psicótico, o terapeuta pode conhecer

melhor alguns elementos da personalidade dele. Nesse sentido, cuidar dele não seria reagir no ódio, como faríamos em uma situação cotidiana ao afastar-nos de alguém agressivo ou “louco”, mas, no cuidado profissional, o terapeuta é levado, pelos seus sentimentos (muitas vezes justificadamente negativos) a aprender quais são as necessidades comunicadas através dos comportamentos estranhos que o perturbam.

As necessidades comunicadas através das manifestações de uma crise psicótica são primitivas, incluem a necessidade de tornar-se tão dependente que outras pessoas devem cuidar da realidade compartilhada e suas complicações até que a pessoa em crise se torne capaz de entrar em uma relação de realidade psíquica intermediária, até que possa lentamente reconhecer que existem outras pessoas, as quais o paciente atacou quando estava doente, e se elas estão ou não prontas para receber o gesto construtivo correspondente. Ao pensar em alguns de nossos pacientes, compensados depois de um período de sintomas muito intensos e perturbadores, podemos perceber algo da vergonha e culpa a que eles chegam, uma vez que consigam lentamente reconhecer que foram os autores de atos vis, egoístas ou incompreensíveis. Essas pessoas possuem a difícil tarefa de reconhecer a realidade do que poderia ser vergonhoso e culpável na crise ou no sintoma, mas que possui um importante componente de verdade e espontaneidade.

O fato de o terapeuta ter-se afetado com a verdade da agressividade (primária ou reativa ao trauma) de seu paciente em transferência psicótica é a prova da realidade objetiva da existência do terapeuta. Sua postura de confiança e benevolência atrela essa qualidade emocional ao mundo objetivo para o paciente.

Winnicott (1947/1982) nos diz que, quando o bebê, um ser ainda não integrado e com um ego primitivo, é cruel com sua mãe, ele não o faz por ódio dela. Seu instinto ama de modo primitivo, irresponsável, mas o instinto não odeia, quem odeia é o ego de uma pessoa inteira7. O mesmo pode ser dito do paciente psicótico: quando ele chega a ser capaz de odiar a pessoa total de seu terapeuta, isto quer dizer que muito progresso já foi feito em termos de amadurecimento do ego.

7O autor cita, a propósito, a seguinte passagem do texto de Freud (1915/1996): “Poderíamos, num caso

de emergência, dizer que um instinto ‘ama’ o objeto no sentido do qual ele luta por propósitos de satisfação, mas dizer que um instinto ‘odeia’ um objeto, nos parece estranho. Assim, tornamo-nos cônscios de que as atitudes de amor e ódio não podem ser utilizadas para as relações entre os instintos e

No caso de uma mãe, todavia, encontramos, no mais das vezes, uma mulher adulta, capaz de odiar seu filho e que possui mesmo muitas razões para odiá-lo8. No entanto, uma mãe devotada comum consegue adiar essa tendência a odiar logo de início seu filho recém-nascido, por mais que ele pareça, para um observador externo, um ser insuportável. Na posição da preocupação materna primária, a mãe ama seu filho através de uma identificação total, uma fusão, durante a qual mantém, ao mesmo tempo, uma orientação psíquica para a maturidade e a realidade externa. Januário (2012) argumenta que essa sobreposição de estados maturacionais contraditórios é permitida, para a mãe em preocupação materna primária, através da capacidade de transicionalidade. A mãe em preocupação materna primária é uma mulher adulta e é seu bebê ao mesmo tempo.

Por essa razão, ela é capaz de perceber que seu filho recém-nascido, por mais “insuportável” que pareça, não pode ser odiado a priori. Ela tolera aquilo de seu filho que, ao encontrá-la, adquire uma qualidade agressiva, até que o bebê seja capaz de reconhecer que a mãe é uma pessoa separada e que se irrita com os comportamentos egoístas ou crueis dele. Essa tolerância da mãe é indispensável para a experiência da ilusão, necessária para a ab-rogação da onipotência e para os fenômenos transicionais.

No caso do terapeuta, se, da mesma forma, em um dado momento do cuidado o que importa mais não é o amor e sim elementos que fazem suscitar o ódio e o ataque aos vínculos, uma importante capacidade psíquica necessária é a tolerância da atmosfera emocional de ódio e ataque, com benevolência e esperança. Nem a mais profunda leitura de textos psicanalíticos e filosóficos, nem o mais rigoroso treinamento técnico podem ensiná-lo a isso. O terapeuta torna-se capaz de tolerar a agressividade sem reagir no ódio através de relações de cuidado em sua própria história pessoal (sua família, por exemplo), com os “ambientes suficientemente bons” que encontrou e criou ao longo de sua vida.

Assim, compreendemos com Winnicott que o trabalho psíquico relacionado com a capacidade de tolerar e sobreviver à destrutividade envolve características do ambiente propício para a emergência da preocupação materna primária. A seguir,

8Winnicott (1947/1982) apresenta uma longa lista de motivos pelos quais uma mulher pode odiar seu

recém-nascido, mesmo quando ele é um menino. Para o autor, o que o analista de uma pessoa psicótica descobre em seu próprio ódio contratransferencial é que a mãe odeia o bebê antes que o bebê possa odiar a mãe, antes que o bebê possa saber que existe uma mãe e que existe ódio. O tipo de ressentimento da mãe e sua recusa emocional diante de sua tarefa marcam o recém-nascido com ansiedades impensáveis.

examinaremos como compreender a preocupação (concern) para além de uma capacidade psíquica, mas na efetiva constituição do ambiente de cuidado necessário para o acolhimento e manejo de crises psicóticas.