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Trauma e intrusão (impingement) em Winnicott

O cuidado feito por um ambiente como a enfermaria de um hospital, defende Winnicott (1965a/2005), procura reproduzir as mesmas condições que uma família comum busca gerar quando deve criar filhos pequenos. Essas são condições que protegem crianças de experiências traumáticas e a maioria das famílias consegue fornecer à criança que cresce, para quem a dependência ainda é uma necessidade, uma proteção quanto ao trauma. O autor (Winnicott, 1965a/2005) diz que “o funcionamento familiar pode ser encarado como preventivo do trauma, desde que se permita que o significado da palavra ‘trauma’ mude com o crescimento da criança, da primeira

infância para a maturidade plena, com o crescimento que vai da dependência para a independência” (p. 115).

Winnicott (1965a/2005) diferencia o “trauma grosseiro”, fácil de verificar na experiência, como um abuso sexual ou um acidente físico grave, de formas traumáticas mais sutis, “que podem ser piores para as crianças e os bebês do que aqueles traumas grosseiros que chocam os adultos” (p. 103). Algo central na perspectiva de Winnicott (1965a/2005) sobre o trauma leva em conta a situação do ambiente com o indivíduo e não apenas descreve o que poderia ser um evento traumático em si, já que o trauma é um fracasso relativo à dependência.

Há uma dimensão do trauma que parece um paradoxo, um “fracasso adaptativo”, presente na ideia psicanalítica de falha constitutiva, aquela que permite a separação e a individuação (Moreno & Coelho Jr., 2012). Comparece, por exemplo, na ideia de trauma que Figueiredo (2012) apresenta na figura intersubjetiva que separa, interpela e reclama. A separação é traumática ao mesmo tempo em que é necessária para o amadurecimento, se o indivíduo tiver vivido bastante continuidade com a realidade de sua existência, um plano de fundo do qual pode gradualmente se separar, se recortar como indivíduo.

Esse tipo de “trauma benigno” são os fracassos introduzidos na vida do indivíduo de maneira “adaptativa”, quando o ambiente começa a falhar para atender à necessidade que o indivíduo tem de se separar. Para Winnicott (1965a/2005), existe, efetivamente, um aspecto normal do trauma, quando ele é feito para atender às necessidades do indivíduo, compreende uma das funções do cuidado, pertence à saúde. No entanto, algum grau de amadurecimento é necessário antes que o indivíduo venha a ser capaz de vivenciar o desilusionamento. Segundo Green (1988):

Excesso de presença é intrusão; excesso de ausência é perda. O par presença-ausência não pode ser dissociado. Os dois termos estão inter-relacionados, como o estão a percepção e a representação. Mas um esforço tremendo é necessário a fim de se ser capaz de tolerar a ausência, diferenciá-la da perda e dar ao mundo da representação seu pleno papel na imaginação e no pensamento do indivíduo. Somente a ausência do objeto pode ser estímulo para a imaginação e o pensamento, em outras palavras, para a criatividade e a vivacidade psíquicas. O conceito de Winnicott da capacidade de estar sozinho na presença da mãe e a capacidade negativa de Bion vêm à mente (p. 89, grifos do autor).

Ao relacionar o trauma com a dependência, Winnicott nos diz que o significado de “trauma” varia segundo o momento do indivíduo em seu desenvolvimento emocional: um evento traumático na dependência absoluta é diferente do que seria traumático na dependência relativa e assim por diante. Ao pensar a etiologia do sofrimento psíquico na relação do ambiente com o indivíduo, Winnicott amplia a etiologia tradicional, relacionada aos destinos do instinto e os conflitos internos, para incluir também os fracassos do ambiente. Essa ampliação é necessária para incluir a etiologia do sofrimento psíquico não neurótico, não edipiano, no qual o indivíduo ainda não é uma pessoa total, personalizada (conluio psicossomático) e capaz de relação de objeto. O tipo de trauma que importa para a consideração sobre a psicose é aquele que ocorre na área da dependência máxima, quando o indivíduo ainda está em vias de tornar-se, quando o centro de gravidade da experiência não é o indivíduo, mas a situação de cuidado ambiente-indivíduo. O trauma nessa etapa do amadurecimento leva o indivíduo à experiência de agonias impensáveis e não à ansiedade de separação ou castração (Januário & Tafuri, 2011).

Outro sentido para o trauma é a “quebra da fé”, quando a capacidade de acreditar foi apenas construída pelo indivíduo com o seu ambiente “bom”, mas ainda é frágil e pode ser rompida se o ambiente subitamente fracassa em ser bom. Segundo o comentário de Moreno e Coelho Jr. (2012) sobre o trauma em Winnicott, “se a provisão ambiental primeiro se ajusta e depois fracassa, o fracasso incide na construção da capacidade de acreditar. Diferente de uma raiva apropriada, o ódio reativo do bebê divide o objeto idealizado e isso, segundo Winnicott, pode ser experienciado em termos de delírio de perseguição por parte do objeto bom” (p. 711).

Assim, o ambiente é visto como perseguidor porque atravessa as defesas do indivíduo, confrontado com a necessidade de odiar algo que era bom. Como essa concomitância de “bom” e ódio não pode ser suportada, o indivíduo vive o ódio de forma delirada (transferência delirante, Winnicott, 1964/2005), na forma de “ser odiado” pelo ambiente que era bom. A família usualmente faz a “terapia” desse tipo de trauma, ao usar as imperfeições das pessoas para justificar o ódio do bebê: se ele puder odiar apropriadamente, reativamente aos “defeitos” do ambiente, então algo que seria traumático transforma-se em adaptativo e o ambiente de cuidado suporta o ódio. Por

outro lado, o ódio delirante do bebê pode não encontrar sustentação no ambiente ou mesmo ser negado através do sentimentalismo. O indivíduo, então, é entregue a uma experiência cruel e isolada com a parcela agressiva de seu impulso. De acordo com Winnicott:

Quando não há saúde nesse estádio inicial, é o meio ambiente que invade e a força

vital é absorvida pelas reações à invasão, ocorrendo um resultado oposto ao firme

estabelecimento inicial do eu. No caso extremo, quase não se experimenta impulsos, a não ser como reações, e o eu não é estabelecido. Em vez de seu estabelecimento, encontramos um desenvolvimento baseado na experiência de reação à invasão e surge um indivíduo que chamamos falso porque não há impulsividade pessoal. Neste caso, não há fusão dos componentes agressivo e erótico, já que o eu não está estabelecido quando as experiências eróticas ocorrem. O bebê vive porque foi atraído pela experiência erótica mas, além da vida erótica, que nunca parece real, há uma vida puramente reativa e agressiva, dependente da experiência de oposição (p. 372, grifos nossos).

Nas seções seguintes deste capítulo, examinaremos alguns dos elementos presentes na teoria winnicottiana da psicose: distorções do conjunto ambiente-indivíduo resultam de fracassos das funções do cuidado à dependência máxima. Esses fracassos implicam em intrusões, interrupções do ser ou bloqueio da constituição da confiança, as quais levam à ameaça de ansiedades impensáveis, contra as quais o ego organiza defesas psicóticas.

As distorções da psicose, do ponto de vista de Winnicott (1960a/1983), envolvem o conjunto ambiente-indivíduo e as defesas são organizações reativas às ansiedades primitivas, ou ansiedades impensáveis. Essas ansiedades referem a interrupções na continuidade da existência, têm uma qualidade absolutamente negativa (não-ser, não-existir), mostram sua face apenas através das defesas que mobilizam, isto é, as defesas psicóticas. Passaremos a um exame das ansiedades impensáveis em Winnicott.