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Psicose e crise do tipo psicótica: elaborações com Winnicott

Como podemos ver desde o nome do grupo até as práticas da equipe, a palavra “psicose” é usada na condição de questionar os conceitos a ela associados. Costa (2003, 2010) afirma que, do ponto de vista filosófico e científico, “psicose” é um conceito impreciso, utilizado em uma polissemia que pode contribuir para algumas das arbitrariedades presentes no modelo tradicional de tratamento em saúde mental.

Um dos principais problemas é a noção de fenômeno elementar, presente nas ideias de “signo patognomônico”, na proposição de um ou mais sintomas ou sinais essencialmente psicóticos, ou uma estrutura de personalidade específica, uma “doença mental” ou cerebral, enfim, uma compreensão que toma uma pessoa “psicótica” como fundamental e irremediavelmente diferente das outras, ditas “normais”. Nessa perspectiva, se uma pessoa manifesta, durante uma crise psíquica, algum desses supostos fenômenos elementares (usualmente alucinação auditiva, ideia delirante, comportamento desorganizado, “embotamento afetivo” ou paranoia estruturada, por exemplo), então a possibilidade de cuidado limitar-se-ia a intervenções medicamentosas de controle, diríamos de cunho quase “paliativo”, de manejo de sintomas e agravos, já que a doença ou estrutura não pode ser modificada, não tem “cura”.

A imprecisão no conceito de psicose e o consequente modelo “ineficaz” de tratamento vêm questionados na elaboração de uma intervenção que busca localizar as alterações terapêuticas necessárias também no ambiente da pessoa em crise e não em uma sua estrutura interna não exatamente localizável ou modificável. Ao buscar adaptar o ambiente a necessidades emocionais e sociais identificadas na pessoa em suas primeiras crises graves, não impedimos outras disciplinas de buscarem a seus próprios modos contribuir com o tratamento da psicose, mas tentamos oferecer cuidado de modo que um diagnóstico individual de doença psicótica incurável não seja o centro da vida emocional do paciente.

Por essas razões, o Gipsi usa o termo “do tipo psicótico” para questionar a ideia de um fenômeno elementar, propondo que o específico da crise é a intensidade e potencialidade desorganizadora do sofrimento, tanto para o indivíduo quanto para seu ambiente. O grupo refere-se a algumas das qualidades da crise psíquica grave para

nortear o acolhimento e sensibilizar os terapeutas: distanciamento do mundo compartilhado; intenso medo de ser perseguido sem razões aparentes ou lógicas; estranheza na fala ou nos hábitos; inibição das atividades e/ou da afetividade; localização no mundo externo de falas ou julgamentos que outras pessoas não percebem (não veem, não ouvem); outros medos absurdos ou incompreensíveis, enfim, toda uma miríade de vivências humanas usualmente presentes apenas em sonhos (ou pesadelos) aparecem de modo assustadoramente vivo na crise grave. Essas vivências podem ser devastadoras, mas são inegavelmente humanas. Na crise, são alterações percebidas pelo paciente ou pela sua família e comumente recebem, em uma avaliação psiquiátrica, o nome de sintomas psicóticos, positivos ou negativos, ou “pródromos” de psicose (N. Carvalho & Costa, 2008; Costa, 2013)3.

Pretendemos contribuir com o critério diagnóstico e terapêutico do Gipsi a partir de uma leitura da teoria da psicose de Winnicott. Segundo ele (1952/1989): “ao observarmos as crianças, vemos de novo a gradação natural que vai dos predicamentos comuns da natureza humana até as doenças psicóticas. Essas doenças psicóticas não representam mais do que exageros aqui e ali, não implicando qualquer diferença essencial entre a sanidade e a insanidade” (p. 382). Essa afirmação se coaduna com a proposta de Costa a respeito da psicopatologia, pois põe em evidência a gradação que vai do que é comum até o exagero da patologia, sem fazer diferenças essencialistas ou estruturalistas de uma personalidade especificamente psicótica e outra não-psicótica.

De fato, encontramos, em um rodapé, a seguinte afirmação de Winnicott (1959- 1964/1983):

Reconheço que a palavra ‘psicose’ apresenta muitas dificuldades. De certo modo, estou reivindicando um significado para essa palavra no momento em que muitos gostariam que ela fosse abandonada. Sugiro, contudo, que esse termo ainda possa ser empregado para designar a desordem emocional (emotional disorder) que não está incluída nos termos neurose ou depressão neurótica. Sei que, em psiquiatria, o termo psicose é usado para descrever várias síndromes que têm base física. Essa é outra

3 Na linguagem psiquiátrica, esses fenômenos são denominados prodrômicos, para o caso de

manifestações sem bastante intensidade para preencher os critérios diagnósticos da psicose e que podem ou não chegar à intensidade para configurar um transtorno psicótico franco; ou do primeiro episódio psicótico, para o caso de manifestações que sejam, de fato, sintomáticas, preencham os critérios diagnósticos e sejam vivenciadas pela primeira vez na vida do paciente, muito frequentemente na adolescência ou início da vida adulta. Essas são concepções centrais para o modelo tradicional de

fonte de confusão. Não vejo, contudo, como se pode lucrar inventando uma palavra nova (p. 120).

O autor segue, portanto, utilizando a palavra “psicose” para permitir uma continuidade no desenvolvimento de conceitos psicanalíticos, especialmente com teorias do desenvolvimento emocional e da primeira infância. Para Winnicott (1959- 1964/1983), “psicose” indica que um indivíduo não foi capaz de atingir um grau de maturidade, em seu desenvolvimento, que faça sentido em termos de complexo de Édipo, ou que seu psiquismo tem fraquezas importantes, as quais se revelam quando o indivíduo deve confrontar tensões relacionadas ao conflito edípico, notadamente a ambivalência entre amor e ódio numa situação triangular entre pessoas inteiras (usualmente, mãe, pai e filho) e a ansiedade de castração. Assim sendo, a psicose entra em questão quando nem a ambivalência e nem a ansiedade de castração podem ser sentidas, já que o psiquismo falha em formar um todo unificado, em relacionamento com pessoas totais, separadas.

Segundo Winnicott (1952/1982), os fenômenos que acontecem em etapas primitivas do desenvolvimento emocional, isto é, nos momentos iniciais da vida do bebê, quando o existir como entidade separada ainda não é possível, esses fenômenos referem exatamente àqueles que aparecem no estudo da psicose do adulto, nos assim chamados estados esquizofrênicos, esquizoides, paranoides e nas defesas organizadas contra a confusão, a irrealidade e a futilidade. Em sua obra, Winnicott nos lança nos caminhos por ele percorridos para estudar o desenvolvimento emocional primitivo a partir da condição originária de dependência absoluta que marca a vida humana. Ao lançar até a perspectiva de um bebê de poucos dias de vida, o analista nos relembra que, no início, o indivíduo não é a unidade, mas sim o conjunto meio ambiente-indivíduo (Winnicott, 1952/1982).

Existe, no pensamento de Winnicott, uma consideração muito grande pelo fator da temporalidade (Safra, 1999), crucial no estudo sobre o desenvolvimento humano (por exemplo, na pediatria) e também no manejo da crise psicótica. O autor insiste na qualidade gradual dos processos no início da vida e no desenvolvimento desde a dependência, relacionada ao desamparo originário, rumo à independência, horizonte do amadurecimento humano. Outro fator em evidência é a questão do ambiente que, ao

reconhecer a seriedade da condição de dependência, organiza-se na forma de uma unidade ambiente-indivíduo, a partir da qual o indivíduo pode emergir e criar uma realidade externa. Se essa emergência do indivíduo se dá na dimensão da confiança ou da desconfiança, na integração ou na insegurança, na previsibilidade ou no caos, essas são qualidades adquiridas dentro do conjunto ambiente-indivíduo. Se tudo vai bem, o ambiente adapta-se às necessidades do indivíduo através da identificação com ele.

Essa descrição da tarefa do ambiente ao identificar-se com o indivíduo aproxima-se da descrição que fizemos acima das tarefas do “gerenciamento de caso”: identificar as necessidades e mobilizar reservas ambientais adequadas às necessidades, com o fator tempo em questão. Winnicott (1952/1982) defende que a psicose pode ser acolhida e cuidada em um ambiente organizado para esse fim.

O particular relacionado à psicose é quando, no desenvolvimento do indivíduo, o ambiente fracassa com a identificação no início. Ser idêntico demanda, seguramente, muito trabalho e sacrifício e não está longe de ser uma tarefa quase impossível, a qual, contudo, é cumprida de modo bastante satisfatório por tantas famílias em todo o mundo. A distorção psicótica, a qual aparece para o psiquiatra como se fosse uma característica do indivíduo, é, em Winnicott, a defesa organizada pelo indivíduo diante do fracasso ambiental na identificação primária. O indivíduo, assim separado precocemente, organiza defesas cuja qualidade remete à impensável agonia de um recém-nascido que não encontra o mundo ou não é por ele sustentado. Mecanismos primitivos sustentam essa organização defensiva, tão cara para o indivíduo quanto ele acreditar ser indispensável defender-se do fracasso do ambiente. Afinal, abrir mão dessas defesas significa expor-se à ansiedade decorrente do fracasso no narcisismo primário, insuportável e impensável, relacionado não com a castração, mas com a aniquilação.

No entanto, por mais importantes e rigidamente protegidas que sejam essas defesas primitivas, elas são insatisfatórias para dar conta dos fenômenos que se seguem no amadurecimento do indivíduo. Em um dado momento, seja na infância ou na fase adulta, a organização defensiva pode entrar em colapso, ameaçando expor plenamente a experiência impensável original. A possibilidade de um colapso das defesas confronta o indivíduo com uma situação aterrorizante, a emergência de uma ansiedade intensa, que

é igualmente uma manifestação de esperança, uma tendência à saúde e ao amadurecimento.

Essa é uma das ideias paradoxais presentes em Winnicott e nos auxilia a compreender a necessidade aparentemente “repetitiva” ou “compulsiva” de entrar em crise, episódio após episódio, como parte da saúde do indivíduo. A crise conclama o ambiente de cuidado no qual o cuidado pode se efetivar; no entanto, o cuidado depende do fracasso das defesas até então utilizadas, que é a crise.

O indivíduo em colapso, ou em crise, precisa ser cuidado para que novas defesas sejam desenvolvidas (Winnicott, 1959-1964/1983). Enquanto está “sem defesas”, encontra-se em uma condição análoga à do bebê: desamparado e dependente. Assim sendo, o cuidado necessário para a crise psicótica possui semelhanças importantes com cuidado materno: envolve aceitar o paciente com suas imaturidades atuais e acolher a dependência mais extrema, oferecendo a ele um ambiente que assuma as responsabilidades tal qual uma “mãe devotada comum” (Winnicott, 1966/1988). Como sugere Sousa (2003, citado em Moreno & Coelho Jr., 2012), “antes que a responsabilidade seja um assunto do sujeito que nasce, ela é assunto do ambiente que acolhe” (p. 718).

Passamos, a seguir, a uma proposta de leitura das ideias de colapso e dependência, em Winnicott, relacionadas às ideias de crise e cuidado advindas a partir da experiência no Gipsi, na criação do ambiente de cuidado adequado às necessidades próprias de crises psicóticas.