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Assim como pode ser compreendido já do que aparenta ser uma repetição, intersubjetividades intra, inter e transubjetivas, as figuras de alteridade presentes na metapsicologia do cuidado (Figueiredo, 2012) denotam que o fenômeno do cuidado envolve uma relação entre subjetividades, uma ou mais pessoas em um contínuo fazer relacional, entre si. Compreende-se daí que o cuidar não é nunca um fazer unidirecional, o cuidador modera sua implicação para encontrar um equilíbrio entre o que ele precisa fazer e onde abster-se e ausentar-se. Segundo Figueiredo (2012):

Nesta posição, o cuidador exerce a renúncia à sua própria onipotência e a aceitação de sua própria dependência. Vale dizer: ele consegue pôr limites à sua própria ‘loucura’. Trata-se, enfim, de renunciar às fantasias reparadoras maníacas: é preciso saber cuidar do outro, mas também cuidar de si e.… deixar-se cuidar, pois a mutualidade nos

cuidados é um dos mais fundamentais princípios éticos a ser exercitado e transmitido

(p. 141, grifos nossos).

Em um texto sobre mutualidade, Winnicott (1969/2005) nos recorda de uma cena comum do cuidado materno, também observada por ele na clínica pediátrica: o bebê sendo alimentado ao seio, ou na mamadeira, levanta o polegar em direção à boca da mãe, “brincando” de alimentá-la. Na situação original de cuidado materno, o autor

nos relembra constantemente que não existe discernibilidade entre indivíduo e ambiente. O bebê e o ambiente estão identificados, são tornados idênticos, através do trabalho psicológico feito pela preocupação materna primária. A mãe identifica-se com o bebê e permite igualmente o movimento contrário, isto é, permite que o bebê se identifique com ela.

Essa situação de mutualidade no cuidado infantil não se resume à satisfação instintiva, isto é, à alimentação; ela aparece em muitos outros aspectos da relação de cuidado que passa do físico ao emocional através da identificação da mãe com o filho e de seu trabalho de “ego auxiliar”. Segundo Winnicott (1969/2005), ocorre uma “comunicação entre o bebê e a mãe, algo que é uma questão de experiência e que depende da mutualidade que resulta das identificações cruzadas” (p. 198).

É desta forma que testemunhamos concretamente a mutualidade que é o princípio da comunicação entre as duas pessoas nesse jogo primitivo, com a diferença nascendo da identificação. A mutualidade entre mãe e bebê é o início da comunicação, de modo pré-verbal, direto e silencioso, relacionado ao continuar a ser e à ilusão de onipotência (Marconato, 2001). Comunicar-se é uma conquista do desenvolvimento emocional que depende da capacidade do ambiente de tornar real aquilo que o bebê está prestes a descobrir, criar e devolver ao ambiente como um produto de sua criação.

A mutualidade de que fala Winnicott não é, no entanto, ausente de assimetrias. A mãe identificada com o bebê, se está saudável, não perde sua própria identidade. Nos termos deste texto, ela cuida se for capaz de regredir até a identificação primária sem perder os ganhos maturacionais de etapas posteriores, sobretudo do estágio da preocupação (concern). A identificação ocorre, então, de modos diferentes: o adulto que cuida se identifica porque foi ele próprio um bebê, que fora cuidado por uma mãe e porque brincou de bebês e mães com outras pessoas ao longo da vida; sua identidade carrega essa história no seu modo de cuidar, que ele faz segundo o seu desejo e segundo o que ele julga certo. Por outro lado, o bebê nunca foi mãe, é bebê pela primeira vez e identifica-se com alguém que cuida apenas na medida em que o adulto se mostra capaz de cuidado na realidade atual e não por uma história prévia ou qualquer elemento inato. Uma mutualidade possível, uma comunicação no cuidado materno pertence, portanto,

sobretudo a uma capacidade do cuidado materno. O adulto deseja cuidar, enquanto o bebê necessita de cuidado.

Muito do que foi dito sobre o cuidado materno aplica-se também à psicoterapia, especialmente quando a dependência se torna um fato importante. A mutualidade é uma capacidade a ser buscada na dupla terapêutica, na aquisição de um lugar onde a comunicação é possível, embora uma assimetria tenha de permanecer para que o cuidado seja feito: o terapeuta precisa permitir que o paciente chegue a um desenvolvimento tal que se torna capaz de cuidar do terapeuta. As coisas se dão em virtude das necessidades do paciente e não pela necessidade do terapeuta em cuidar ou ser cuidado, isto é, o terapeuta favorece uma ilusão de encontro entre seu desejo de terapeuta (desejo de cuidar) e a necessidade do paciente (necessidade de cuidado e de tornar-se capaz de cuidado), inicialmente através de uma identificação cruzada. Em um momento da terapia, será necessária uma brincadeira semelhante àquela descrita, do bebê com o polegar na boca da mãe, mesmo que tudo se passe com adultos e seja uma coisa séria.

A dimensão mútua transforma o desejo de cuidado em desejar cuidar e ser cuidado em uma só experiência. Cuidar e ser cuidado coincidem, do ponto de vista da personalidade do terapeuta, no sentido da capacidade de se preocupar (concern) e no sentido da aquisição da capacidade para cuidar, do ponto de vista do paciente. Ao cuidar suficientemente bem, cuidamos para que alguém seja capaz de cuidar de si e dos outros, a nós mesmos incluídos.

5 Psicose e fracasso ambiental

Apresentaremos neste capítulo algumas das principais ideias de Winnicott que dizem respeito à psicose, a sua etiologia e fenômenos mais importantes, de acordo com o que o autor apresenta de suas reflexões sobre a clínica com bebês normais, bem como com crianças e adultos psicóticos. Uma das ideias mais importantes sobre a psicose em Winnicott (1954b/1982) é que os mesmos fenômenos do desenvolvimento emocional primitivo aparecem de modo regressivo na psicose. Segundo o autor (Winnicott, 1952/1982):

Na infância a psicose é algo comum, mas passa despercebida devido ao modo como os sintomas ocultam-se entre as dificuldades normais inerentes à criação de filhos

(child care). O diagnóstico é feito quando o ambiente não consegue ocultar ou

resolver as distorções do desenvolvimento emocional, levando a criança a organizar-se em torno de uma linha de defesa que se torna reconhecível como uma entidade patológica (p. 305).

Essa ideia de Winnicott vai ao encontro de concepções e posicionamentos característicos do Gipsi, como dissemos, que criticam a existência de uma diferença “essencial” entre pessoas normais e psicóticas. Mais ainda, nos ajuda a pensar os mecanismos presentes nas defesas psicóticas a partir do ponto de vista do amadurecimento humano, segundo o qual os processos psíquicos são adquiridos, desenvolvidos, na interação do indivíduo com o seu ambiente.

Como dissemos acima, Winnicott nos convida a mudar de perspectiva e examinar as defesas psicóticas como defesas contra a ansiedade experimentada com um certo tipo de falha ambiental, vivida no período de dependência máxima, isto é, uma falha do cuidado materno que não foi remediada pelo próprio ambiente familiar em etapas posteriores. Essa perspectiva leva em plena consideração o fator ambiental na etiologia da psicose, em vez de descrever os processos em termos puramente internos ao indivíduo em crise. A esse respeito, nos diz Winnicott (1960a/1983):

As bases da saúde mental do indivíduo, no sentido de ausência de psicose ou predisposição à mesma (esquizofrenia), são lançadas por este cuidado materno, que quando vai bem dificilmente é percebido, e é uma continuação da provisão fisiológica que caracteriza o estado pré-natal. Esta provisão ambiental é também a continuação da vitalidade dos tecidos e da saúde funcional que (para o lactente) provê um apoio ao

ego silencioso mas vitalmente importante. Deste modo a esquizofrenia ou a psicose infantil ou uma predisposição à psicose em uma data posterior se relacionam com uma falha na provisão ambiental. Isto não quer dizer, contudo, que os efeitos nefastos de tal falha não possam ser descritos em termos de distorção do ego e de defesas contra ansiedades primitivas, isto é, em termos do indivíduo. Verificar-se-á, portanto, que o trabalho de Klein nos mecanismos de defesa de splitting e de projeção e introjeção e assim por diante é uma tentativa de descrever os efeitos da falha da provisão ambiental em termos do indivíduo. Esse trabalho sobre os mecanismos primitivos nos dá a chave apenas para uma parte da história, e a reconstrução do ambiente e de suas

falhas provê a outra parte. Essa outra parte não pode aparecer na transferência por

causa da falha de conhecimento do paciente do cuidado materno, tanto em seus aspectos bons como falhos, como existiu na situação infantil original (p. 49, grifos nossos).

Essa mudança de perspectiva não invalida descobertas de outros analistas, mas busca ampliar o modo como se compreende a psicose a partir do trabalho psicanalítico. A perspectiva de Winnicott auxilia o trabalho de outras pessoas que compõem o ambiente de cuidado, além dos analistas, como, por exemplo, enfermeiros e assistentes sociais psiquiátricos cujo trabalho segue princípios analíticos (Winnicott 1960b/1983) e pode ser usada no ambiente de cuidado do Gipsi, que direciona sua atenção não apenas ao indivíduo em crise, mas também para cuidar do ambiente, compreendendo a crise em seu aspecto relacional.

A ideia de “reconstrução do ambiente”, proposta na clínica da psicose de Winnicott, pode ter dois sentidos: no acolhimento de um paciente em crise, a “construção do caso” busca compreender a qualidade da falha ambiental, ao passo que a vivência cotidiana do cuidado pode “reconstruir” o ambiente de cuidado para reparar o psiquismo. No entanto, mesmo que o terapeuta seja sensível no momento de sua avaliação inicial do caso, mesmo uma anamnese bem-feita pode não revelar a qualidade da falha ambiental, por ela ser precoce e/ou imperceptível para o ambiente familiar da pessoa em crise. Por esta razão, a “reconstrução” do ambiente, na clínica, pode vincular os dois sentidos descritos acima, em um tipo de “diagnóstico terapêutico”: o ambiente que deve ser oferecido para o cuidar de uma pessoa em crise varia de acordo com as necessidades que ela manifesta na crise e no acontecer da própria clínica.

O conceito de regressão clínica de Winnicott (1964/2005) é muito útil para compreender alguns fatores do acontecer da clínica da psicose e do modo como o setting precisa estar organizado para receber esses acontecimentos e sobreviver a eles

com confiança. No entanto, não propomos uma correspondência exata entre a regressão severa à dependência de pacientes em análise e as crises acolhidas pelo Gipsi, senão algumas semelhanças na área da dependência e das características do ambiente de cuidado. A crise, assim como a regressão no setting analítico, demanda um ambiente capaz de acolher a dependência, de assumir responsabilidades, de tolerar, sobreviver e confiar.

As qualidades do funcionamento psíquico são, em Winnicott, tornadas tais como são em cada indivíduo segundo aquilo que foi permitido e vivido desde o ambiente precoce. No início da vida, quando o psiquismo era ainda um porvir, Winnicott nos aponta uma fragilidade que é própria da condição desamparada do bebê humano, dependente como é do cuidado do ambiente. No fundamento mesmo do psiquismo, o funcionamento psíquico é idêntico à vivência do cuidado; funções do cuidado são internalizadas na forma de capacidades psíquicas. Isso equivale a dizer que, “reconstruído o ambiente e suas falhas”, uma dada função psíquica distorcida pode ser recuperada, contanto que as “condições de possibilidade” dessa função sejam vividas no cuidado. De certa forma, uma capacidade psíquica, como a capacidade de confiar ou de cuidar, pode ser readquirida, ou adquirida pela primeira vez, através da transferência.

Portanto, para compreender como se dá a clínica da psicose, Winnicott nos convida a compreender como se deram, na etapa de dependência absoluta do amadurecimento e através do que se mostra na transferência, as distorções do conjunto ambiente-indivíduo precoce que usualmente aparecem, de modo regressivo, na psicose. Se os mesmos processos da primeiríssima infância normal são manifestados na crise psicótica, então existe algo que nos afasta desses processos primitivos, se, quando adultos, não somos (muito) psicóticos. Esse “algo”, que pertence à saúde porque pertence à maturidade, inclui a capacidade de pensar os fracassos do ambiente, a tolerância às ansiedades deles decorrentes e a introjeção das funções do cuidado como capacidades psíquicas.

Quando o ambiente atende a suas próprias necessidades antes que o indivíduo tenha internalizado algumas de suas funções primordiais de sustentação e confiança, então o ambiente “invade” a experiência do indivíduo com a sua imprevisibilidade e

ambiente porque este se apresentou consistentemente como uma criação do indivíduo no momento da tensão instintiva, ou das necessidades do ego. O ambiente é imprevisível quando não se apresenta às necessidades (instintivas ou egoicas) do indivíduo, mas segue um primado alheio ao indivíduo, deixa de sustentá-lo e o entrega à completa ausência de cuidado.

A existência do indivíduo, que deveria ser apenas uma experiência contínua de ser, é interrompida, pois o indivíduo precisa reagir ao ambiente com a totalidade de seu ser. Trata-se de uma intrusão ambiental (environmental impingement, Winnicott, 1952/1982) que deve ser “compreendida” pelo indivíduo através de mecanismos psíquicos primitivos, ainda não prontos para entender a complicada situação de que existe um ambiente separado e com necessidades próprias. A única maneira de compreender a intrusão é traduzi-la dentro da área de onipotência, isto é, a interrupção da linha de continuidade do ser, experimentada pelo indivíduo, o entrega à aniquilação, é compreendida como perseguição. O indivíduo deve constituir defesas que o protejam de ser aniquilado. Essas defesas poderiam ser entendidas como modos primitivos de proteção contra um ambiente não confiável, constituídas ali onde o cuidado não foi encontrado.

Para compreender melhor como essas defesas são constituídas, faremos um breve exame da teoria do trauma e da intrusão em Winnicott e como ela está relacionada às organizações defensivas classificadas como psicóticas.